25/11/2022 - 7:44
Fósseis de uma pequena criatura marinha que morreu há mais de meio bilhão de anos podem levar a uma revisão de como os cérebros evoluíram nos livros científicos.
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Um estudo publicado na revista Science – liderado por Nicholas Strausfeld, professor do Departamento de Neurociência da Universidade do Arizona (EUA), e Frank Hirth, professor de neurociência evolutiva no King’s College London (Reino Unido) – fornece a primeira descrição detalhada do Cardiodictyon catenulum, um animal semelhante a um verme preservado em rochas na província de Yunnan, no sul da China. Medindo menos de 1,5 centímetro de comprimento e inicialmente descoberto em 1984, o fóssil escondia um segredo crucial até agora: um sistema nervoso delicadamente preservado, incluindo um cérebro. “Até onde sabemos, este é o cérebro fossilizado mais antigo que conhecemos, até agora”, disse Strausfeld.
O Cardiodictyon pertencia a um grupo extinto de animais conhecidos como lobopodianos blindados, que eram abundantes no início do período Cambriano, quando praticamente todas as principais linhagens de animais apareceram em um curto intervalo entre 540 milhões e 500 milhões de anos atrás. Os lobopodianos provavelmente se moviam no fundo do mar usando vários pares de pernas macias e atarracadas que não tinham as articulações de seus descendentes, os euartrópodes – grego para “pé articulado real”. Os parentes vivos mais próximos dos lobopodianos são os vermes aveludados (Udeonychophora) que vivem principalmente na Austrália, Nova Zelândia e América do Sul.
Debate de mais de um século
Fósseis de Cardiodictyon revelam um animal com um tronco segmentado no qual existem arranjos repetidos de estruturas neurais conhecidas como gânglios. Isso contrasta fortemente com sua cabeça e cérebro, os quais carecem de qualquer evidência de segmentação.
“Essa anatomia foi completamente inesperada porque as cabeças e os cérebros dos artrópodes modernos, e alguns de seus ancestrais fossilizados, foram considerados segmentados por mais de cem anos”, disse Strausfeld.
Segundo os autores, a descoberta resolve um longo e acalorado debate sobre a origem e a composição da cabeça dos artrópodes, o grupo mundial mais rico em espécies do reino animal. Os artrópodes incluem insetos, crustáceos, aranhas e outros aracnídeos, além de algumas outras linhagens, como milípedes e centopeias.
“A partir da década de 1880, os biólogos observaram a aparência claramente segmentada do tronco típico dos artrópodes e basicamente extrapolaram isso para a cabeça”, disse Hirth. “Foi assim que se chegou a supor que a cabeça é uma extensão anterior de um tronco segmentado.”
“Mas o Cardiodictyon mostra que a cabeça inicial não era segmentada, nem seu cérebro, o que sugere que o cérebro e o sistema nervoso do tronco provavelmente evoluíram separadamente”, disse Strausfeld.
Cérebros fossilizam, sim
O Cardiodictyon fazia parte da fauna de Chengjiang, um famoso depósito de fósseis na província de Yunnan descoberto pelo paleontólogo Xianguang Hou. Os corpos macios e delicados dos lobopodianos foram bem preservados no registro fóssil, mas, além do Cardiodictyon, nenhum deles foi examinado em busca de sua cabeça e cérebro, possivelmente porque os lobopodianos em geral são pequenos. As partes mais proeminentes do Cardiodictyon eram uma série de estruturas triangulares em forma de sela que definiam cada segmento e serviam como pontos de fixação para pares de pernas. Aqueles foram encontrados em rochas ainda mais antigas, datando do advento do Cambriano.
“Isso nos diz que os lobopodianos blindados podem ter sido os primeiros artrópodes”, disse Strausfeld, antecedendo até mesmo as trilobitas, um grupo icônico e diversificado de artrópodes marinhos extinto há cerca de 250 milhões de anos.
“Até muito recentemente, o entendimento comum era de que ‘cérebros não fossilizam’”, disse Hirth. “Portanto, você não esperaria encontrar um fóssil com um cérebro preservado em primeiro lugar. E, em segundo lugar, esse animal é tão pequeno que você nem ousaria olhar para ele na esperança de encontrar um cérebro.”
No entanto, o trabalho dos últimos 10 anos, em grande parte feito por Strausfeld, identificou vários casos de cérebros preservados em uma variedade de artrópodes fossilizados.
Plano básico genético
Em seu novo estudo, os autores não apenas identificaram o cérebro do Cardiodictyon, mas também o compararam com os de fósseis conhecidos e de artrópodes vivos, incluindo aranhas e centopeias. Combinando estudos anatômicos detalhados dos fósseis lobopodianos com análises de padrões de expressão gênica em seus descendentes vivos, eles concluem que um modelo compartilhado de organização cerebral foi mantido desde o Cambriano até hoje.
“Ao comparar padrões de expressão genética conhecidos em espécies vivas”, disse Hirth, “identificamos uma assinatura comum de todos os cérebros e como eles são formados”.
No Cardiodictyon, três domínios cerebrais estão associados a um par característico de apêndices cefálicos e a uma das três partes do sistema digestivo anterior.
“Percebemos que cada domínio do cérebro e suas características correspondentes são especificados pelos mesmos genes de combinação, independentemente da espécie que examinamos”, acrescentou Hirth. “Isso sugeriu um plano básico genético comum para fazer um cérebro.”
Lições para a evolução do cérebro dos vertebrados
Hirth e Strausfeld afirmaram que os princípios descritos em seu estudo provavelmente se aplicam a outras criaturas além dos artrópodes e seus parentes imediatos. Isso tem implicações importantes ao comparar o sistema nervoso dos artrópodes com o dos vertebrados, que mostram uma arquitetura distinta semelhante na qual o prosencéfalo e o mesencéfalo são distintos, em termos genéticos e de desenvolvimento, da medula espinhal, disseram eles.
Segundo Strausfeld, suas descobertas também oferecem uma mensagem de continuidade em um momento em que o planeta está mudando dramaticamente sob a influência das mudanças climáticas. “Numa época em que grandes eventos geológicos e climáticos estavam remodelando o planeta, animais marinhos simples, como o Cardiodictyon, deram origem ao grupo mais diversificado de organismos do mundo – os euartrópodes –, que posteriormente se espalharam para todos os habitats emergentes da Terra, mas que agora estão sendo ameaçados por nossa própria espécie efêmera”, observou ele.