08/06/2025 - 7:24
França aprova três novas iniciativas que tentam reconhecer e sanar injustiças históricas cometidas na Indochina, no Haiti e na condenação do militar judeu Alfred Dreyfus.Dois anos após aprovar um polêmico aumento da idade mínima para aposentadoria, a Assembleia Nacional da França aprovou uma resolução não vinculante pedindo o fim da reforma da previdência. A notícia teve grande repercussão política, já que o partido de ultradireita Reunião Nacional ajudou a oposição de esquerda a conquistar maioria na votação, ainda que a decisão não tenha efeitos legais.
A situação reflete a dificuldade contínua do país em avançar com reformas estruturais desde as eleições parlamentares passadas, que deixaram o governo sem maioria absoluta.
No entanto, em apenas uma semana, os parlamentares entraram em um novo consenso e adotaram três textos que reclassificam eventos históricos ou abrem caminho para reparações.
Alfred Dreyfus promovido postumamente
Em 2 de junho, o Parlamento francês votou por unanimidade para conceder postumamente a Alfred Dreyfus o posto de general de brigada. O oficial judeu foi acusado injustamente de traição em 1894, com base em provas falsificadas que sugeriam que ele havia revelado segredos militares à embaixada alemã em Paris. Dreyfus passou quatro anos preso na colônia penal da Ilha do Diabo, na costa da Guiana Francesa.
A dimensão franco-alemã do caso teve implicações explosivas na política externa já naquela época. A origem judaica de Dreyfus, sua ligação familiar com a região da Alsácia e Lorena, então sob domínio alemão após a Guerra Franco-Prussiana, e as tensas relações com a Alemanha fizeram dele um alvo da desconfiança nacionalista que muitos franceses nutriam.
O escritor Émile Zola ficou famoso ao defender Dreyfus em seu ensaio “J’accuse…!” (“Eu acuso”), que teve papel crucial na reabilitação militar e exoneração de Dreyfus em 1906. Ainda assim, após servir na Primeira Guerra Mundial como tenente-coronel, ele foi reintegrado apenas com uma patente inferior.
A promoção póstuma ainda precisa ser aprovada pelo Senado. O deputado francês Charles Sitzenstuhl, do partido do presidente Emmanuel Macron, que apresentou a proposta, defendeu que “O antissemitismo que atingiu Alfred Dreyfus não é algo do passado distante”.
Reconhecimento aos repatriados da Indochina
Um dia após a votação sobre Dreyfus, a Assembleia Nacional repatriados da Península da Indochina, após o fim do domínio colonial francês nos atuais Vietnã, Laos e Camboja, em 1954. Na ocasião, cerca de 44 mil pessoas foram levadas à França, entre elas, funcionários coloniais, soldados e suas famílias, tropas aliadas e descendentes de colonizadores franceses com a população local.
Entre 4 mil e 6 mil desses repatriados foram colocados em instalações temporárias, muitas vezes compostas apenas por barracões de madeira sem aquecimento ou saneamento. Eles também foram submetidos a políticas degradantes, como a proibição de sair ou possuir carros e bens de luxo, e sofriam discriminação racial e institucional.
A nova lei prevê apoio financeiro proporcional ao tempo de permanência nestes campos temporários. Estima-se que até 1,1 mil pessoas ainda possam solicitar a compensação.
Reparações ao Haiti?
Em 5 de junho, a Assembleia adotou uma resolução tratando de uma “dívida dupla” com o Haiti, que remonta a 1825. Naquele ano, a França forçou o país, que havia declarado sua independência em 1804, a pagar uma compensação de 150 milhões de francos ouro.
O valor pagaria o reconhecimento da independência haitiana e visava ressarcir a França pela perda de suas posses coloniais, incluindo os lucros com a escravidão. O Haiti teve que quitar essa “dívida da independência” ao longo de décadas – um fardo econômico considerável que contribuiu para a pobreza e instabilidade na ilha.
A resolução exige reconhecimento, reembolso e reparações ao Haiti. No entanto, o texto não prevê medidas políticas ou financeiras concretas.
Uma tradição de revisitar a história
A França possui tradição em adotar políticas que confrontam o passado. Em 2001, a chamada Lei Taubira, nomeada em homenagem à parlamentar que a propôs, reconheceu o tráfico e a escravidão como crimes contra a humanidade. O tema passou a integrar os currículos escolares no país.
Em outubro de 2006, a Assembleia aprovou um projeto que criminalizava a negação do genocídio armênio de 1915, no Império Otomano, com pena de até um ano de prisão ou multa de 45 mil euros (R$ 285 mil). A proposta não entrou em vigor após ser rejeitada no Senado. Outra iniciativa similar durante o governo do ex-presidente francês Nicolas Sarkozy, embora aprovada nas duas casas, foi declarada inconstitucional pelo Conselho Constitucional em 2012, por violar a liberdade de expressão e de pesquisa.
Outro exemplo envolve os chamados “tirailleurs senegalais” – soldados africanos que lutaram pela França nas duas guerras mundiais. Durante décadas, muitos receberam pensões significativamente menores do que os colegas franceses, especialmente se moravam fora da França após a descolonização. Só em 2009, o então presidente Sarkozy determinou a equiparação dos benefícios.
Maturidade política ou gestos vazios?
O recente aumento dessas iniciativas gerou interpretações variadas entre cientistas políticos. Alguns veem a disposição de assumir responsabilidades históricas como sinal de maturidade política. Outros destacam que, diante de um Legislativo paralisado politicamente, é mais fácil aprovar iniciativas simbólicas do que reformas estruturais em áreas como aposentadoria, educação ou orçamento.