Menina tocando em um dos tambores da Torre dos Tambores, construção que marca a entrada do bairro islâmico.

Se acreditarmos na força dos números e na prosperidade trazida pelo algarismo 8, o evento será um sucesso. Uma tocha acenderá o caldeirão olímpico no dia 8 do oitavo mês de 2008, às 8h08 da noite. Mas os chineses vão precisar mais do que sorte para que a densa poluição existente não estrague a festa.

Como Pequim receberá centenas de milhares de visitantes, transitar pela megacidade, o que hoje já não é fácil, pode se tornar ainda mais difícil. Por isso, entre um jogo e outro, o visitante deve escapar da capital e de seu calor abafado de verão para descobrir uma das pérolas do país: Xi’an.

Embora Xi’an esteja situada a 1.200 km de Pequim e que esta distância justificasse uma ida de avião, preferi fazer o trajeto de trem. Uma viagem confortável, barata e segura. E não foi qualquer trem: o Z-20 é um noturno que liga as duas cidades sem fazer nenhuma parada. Comprei um bilhete soft sleeper, o leito suave, uma espécie de primeira classe.

A cabine de quatro pessoas oferece ar condicionado, música, monitor de televisão e quatro beliches. Meus companheiros de compartimento eram todos chineses, viajando a trabalho. Cordiais e sorridentes, mas, como não f™alavam inglês, de pouca conversa. A viagem levou 11 horas, dormi bem e cheguei ao meu destino pronto para alguns dias de descoberta.

Xi’an, durante mais de um milênio, foi a capital do império unificado e sede de 11 dinastias chinesas. A cidade era um encruzilhada na Rota da Seda e recebia gente de todas as direções. No ano 742, muçulmanos edificaram uma mesquita e uma importante colônia islâmica cresceu ao redor.

Hoje, vivem no bairro Hua Jue Xiang 60 mil chineses muçulmanos da minoria Hui, cujos ancestrais teriam vindo da Pérsia. Com a desculpa de procurar o templo, passei horas a perambular pelas ruelas. O mercado coberto oferecia de tudo: de antiguidades e bibelôs chineses a roupas ocidentais. Os cheiros, as cores e os labirintos lembravam- me as kasbahs árabes.

QUANDO ENCONTREI a Grande Mesquita, custei a acreditar que aquele conjunto de edificações era um templo islâmico. Onde estavam os domos e os minaretes? Para um árabe, o estilo arquitetônico era quase irreconhecível, a não ser pelas frases do Corão esculpidas nas pedras. Todo o resto – da forma do telhado à configuração dos jardins – assemelhava- se a um santuário chinês.

Como o movimento do bairro árabe era mais intenso à noite, fiquei por lá. Ao escurecer, suas ruas lotaram. Vendedores ofereciam os produtos mais inusitados. Fiquei muito intrigado com os grilos cantantes, considerados animais de estimação e vendidos a R$ 10. Mas a grande atração mesmo era a enxurrada de restaurantes – afinal, chinês tem paixão por comida.

Acima, a Rua Bei Yuan Men é a principal artéria do bairro islâmico Hua Jue Xiang de Xi’an. À direita, a Grande Mesquita de Xi’an não tem domos nem minaretes e se assemelha mais a um templo chinês. Apenas as inscrições do Corão lembram a cultura islâmica. À esquerda, uma chinesa da minoria Hui, com seu véu islâmico, vende antiguidades no bazar árabe de Xi’an.

Como vegetariano, encontrei um lugar per feito, do tipo self-service. Eu poderia escolher e ver os pratos antes de comer; uma versão chinesa da nossa “comida a quilo”, mas com espetinhos. Eu pagaria quantos espetinhos consumisse. O preço de cada um era irrisório: 20 centavos de yuan, ou seja, R$ 0,05! O local era limpo e acolhedor e fui me servir imediatamente. Havia meia dúzia de variedades de folhas – de espinafre a agrião – e inúmeros tipos de cogumelos. Tofus de todas as formas e consistências. Sem contar tomatinhos, batatas, pedaços de abóbora e algas marinhas. Um verdadeiro banquete!

Quando cheguei à mesa, encontrei um fogareiro a gás. O panelão com um caldo fervente estava pronto para receber os espetinhos. Em chinês, essa comida é chamada “Ma La Tang”, ou Panelão Quente, um nome bem apropriado, tanto pelo calor que exala como pelo sabor picante. Depois de cozidos, os espetinhos passavam por um delicioso molho de amendoim – apimentado ou não. Gostei tanto da fondue chinesa que o jantar no dia seguinte foi no mesmo lugar!

A RAZÃO PRINCIPAL da minha visita a Xi’an foi visitar um dos mais excêntricos mausoléus do mundo. Percorrer cemitérios não é meu forte, mas a verdade é que o imperador Qin Shihuangdi edificou uma tumba que entrou para a história, tão importante como as Pirâmides de Giza e o Taj Mahal. Qin Shihuangdi foi o primeiro imperador da dinastia Qin e responsável pela unificação inicial da China no ano 221 a.C. Era um tremendo déspota e tentaram assassiná-lo três vezes.

Mas seu currículo de obras é tão grandioso como a Grande Muralha, a qual foi reforçada durante seu reinado, para proteger a fronteira norte dos ataques mongóis. O imperador abriu novas estradas, ergueu palácios, criou sistemas de irrigação e instituiu um severo código penal. Pesos, medidas e moedas foram unificados. O desenho da famosa moedinha chinesa com um buraco no centro data dessa época. Para melhor organizar o movimento nas vias do reino, Shihuangdi chegou a estipular uma norma para a largura do eixo das carroças – deveria ser de dois metros. O delírio de grandeza de Qin Shihuangdi fez com que ele começasse a construir o seu mausoléu logo que entronado, no ano 246 a.C., com apenas 13 anos de idade.

Como parte da crença, ele aspirava levar consigo, no momento de morrer, tudo que fosse importante. Para ele, o principal era o seu exército. Por isso, quando faleceu em 210 a.C., com 49 anos, toda uma hoste de guerreiros em terracota, em tamanho original, acompanhou- o na vida seguinte vida. Mais de 700 mil pessoas trabalharam para montar sua majestosa tumba.

VER FOTOGRAFIAS ou ler sobre os guerreiros de terracota é uma coisa, estar dentro do pavilhão que protege as escavações é outra. As imagens que eu havia visto geralmente eram de detalhes e, por isso, nunca pensei que o conjunto não pudesse caber nem mesmo dentro de uma foto.

No alto, à esquerda, fossa no 1 do sítio arqueológico dos Guerreiros de Terracota de Xi’an. Uma das 11 colunas de guerreiros, acompanhados de cavalos. À direita, a fossa do sítio arqueológico do mausoléu de Liu Qi, em Yangling. Um grupo de servidores em tamanho reduzido (três vezes menor do que o natural). Ao lado, fossa no 1 do sítio arqueológico dos Guerreiros de Terracota de Xi’an. Dois guerreiros com seus cavalos.

Três enormes fossas escavadas revelavam o estonteante conteúdo. Fui direto na primeira, a maior e a mais rica. Deparei-me com um imenso retângulo aberto no solo de 62 por 230 metros. Boquiaberto, comecei a balbuciar palavras de admiração, impressionado pela visão. Eram mais de mil soldados de pé, todos olhando para a frente, como se prestes a um ataque.

Formavam 11 colunas na direção leste. A altura das figuras humanas variava de 1,72 metro a 2 metros. Cada soldado tinha uma fisionomia diferente: alguns sorriam, outros eram mais sisudos. Uns tinham barba, outros, bigodes. O adorno na cabeça identificava o status: quanto mais sofisticado, maior a posição. Enquanto o torso, os braços e a cabeça eram ocos, as mãos e as pernas foram moldadas com barro maciço. Cada peça de terracota era decorada de forma distinta.

Consegui discernir alguns traços de pintura vermelha e amarela que resistiram ao tempo. Segundo os arqueólogos, a tinta foi confeccionada à base de minerais e fixadores, tais como sangue animal ou clara de ovo. Outra análise mostrou que as peças foram cozidas em fornos de até 1.000oC de temperatura, demonstrando uma grande habilidade na arte da cerâmica.

Originalmente, os soldados portavam armas verdadeiras, como arcos, flechas, aniespadas e lanças. Os artefatos de madeira não chegaram aos nossos dias, mas os de bronze e outras ligas foram desenterrados em perfeito estado. Os cavalos em terracota, também em tamanho original, pareciam estar vivos e suas bocas abertas sugeriam relinchos.

Arqueólogos consideram que, se totalmente escavada, essa primeira fossa desvendaria cerca de seis mil guerreiros, 160 cavalos e 40 carros de guerra. Fascinante mesmo era o fato de que o lugar, Qin Ling, a 30 km a leste de Xi’an, só tenha sido descoberto 22 séculos depois de construído. Em março de 1974, um camponês que furava um poço encontrou um pedaço de cerâmica. Os arqueólogos ficaram atônitos quando ampliaram suas buscas: guerreiros e cavalos brotaram da terra dia após dia.

Xi’an está rodeada de sítios arqueológicos. Aproveitando a proximidade (está a 20 km ao norte da cidade), fui conhecer em Yangling o mausoléu de Liu Qi, um sábio imperador da dinastia Han. Ele iniciou seu reinado 53 anos após a morte de Qin Shihuangdi, em 157 a.C. Adepto do taoísmo, deixou um grande legado espiritual e seu objetivo foi evitar conflitos e pacificar adversários. Para manter a tradição, também construiu um gigantesco mausoléu, onde ele e a esposa foram sepultados.

Os Guerreiros de Terracota de Xi’an são um dos 150 Lances do Teste de Viajologia Mundial

Haroldo Castro viaja como jornalista, fotógrafo e conservacionista. O fundador do Clube de Viajologia já documentou 136 países.

Como foi aberto ao público só em 2006, o lugar é ainda pouco conhecido. Mas, com a proximidade da Olimpíada, os curadores do mausoléu esperam atrair curiosos que queiram descobrir os segredos do imperador. Ao contrário de Qin Shihuangdi, Liu Qi não se enterrou junto a um exército inteiro em terracota. Mais do que buscar proteção de guerreiros armados, o sábio Liu Qi levou consigo para outra vida muitas ferramentas e utensílios, assim como vários rebanhos de animais domésticos, tudo em terracota. Está claro que, no Além, ele não pretendia lutar, mas sim viver com grande conforto e se alimentando bem.

 

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