13/09/2025 - 15:34
Para especialistas, fatores políticos, atuação de Moraes e instabilidade dos tribunais podem levar a revisões das sentenças impostas aos líderes da trama golpista.Antes mesmo de o Supremo Tribunal Federal (STF) condenar o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete réus por tentativa de golpe de Estado, a oposição no Congresso Nacional já se mobilizava para contestar a decisão e anular seus efeitos.
A sentença da Primeira Turma do STF, porém, escalou a pressão para que uma anistia legislativa aos envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 seja pautada. Apoiadores de Bolsonaro também já avaliam outras alternativas para reverter a pena de 27 anos e três meses de prisão imposta ao ex-presidente.
Entre elas, bolsonaristas miram a possibilidade de um “indulto” presidencial ou mesmo uma revisão da sentença diante de uma futura nova composição do STF. A expectativa dos apoiadores é que a atuação do ministro Alexandre de Moraes em um processo que também foi vítima abra brechas para contestações futuras.
Para juristas ouvidos pela DW, o acórdão pela condenação de Bolsonaro tem fundamento sólido, mas fatores políticos e idas e vindas recentes da justiça brasileira despertam incertezas sobre sua vigência.
Anistia parlamentar teria validade?
Na semana anterior ao julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), parlamentares bolsonaristas apresentaram projetos de lei variados, como a anistia “ampla, geral e irrestrita” que buscava perdoar atos praticados contra a democracia desde 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro.
Nenhum dos projetos foi acolhido até o momento, mas a pressão para que seja pautado, endossada pelo governo americano, voltou a dominar a discussão no Congresso. O presidente do Partido Liberal (PL), Valdemar Costa Neto, disse em entrevista que os bolsonaristas têm condições de obstruir os trabalhos no Senado em nome da anistia.
Esse quadro se concretizou em agosto, quando parlamentares bolsonaristas obstruíram as duas casas do Legislativo em protesto contra a prisão domiciliar imposta a Bolsonaro. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, trabalha na elaboração de um texto alternativo, que exclui os principais envolvidos e foca na redução das penas, projeto apelidado de “anistia light”.
Apesar da intensa pressão, existe ainda um longo caminho para que um projeto de anistia seja aprovado sem contestação. O veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a um eventual projeto aprovado no Legislativo devolveria a discussão ao Parlamento. Se o Congresso aprovar novamente o texto, derrubando o veto presidencial, caberia ao STF examinar o tema.
“O tribunal já se manifestou pelo menos duas vezes sobre as limitações necessárias a esse tipo de medida que anula decisões judiciais – seja através de indulto, seja através de graça ou, nesse caso, de anistia”, explica a professora de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), Eloísa Machado.
Segundo a jurista, já existe jurisprudência que impede perdão a crimes contra democracia. Ela recorda, por exemplo, a decisão do STF que anulou o indulto concedido por Bolsonaro a Daniel Silveira, deputado cassado em 2022 e condenado por tentativa de impedir o livre exercício dos poderes.
“Esse mesmo raciocínio jurídico pode ser usado para defender que é impossível conceder anistia para crimes contra a ordem democrática”, destaca Machado.
A análise de um eventual projeto de anistia no Supremo poderia frear o avanço da pauta. Mas sua simples aprovação no Congresso é suficiente para aprofundar a crise institucional no país, avalia a professora.
“Há uma captura da agenda política por uma força extremista que quer, na verdade, romper com a ordem democrática brasileira”, observa.
Tarcísio promete “indulto”
Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo e principal nome da direita para concorrer à Presidência em 2026, afirmou recentemente que sua primeira medida em um eventual governo seria a concessão de um indulto a Bolsonaro, similar ao concedido a Daniel Silveira.
O jurista Antonio Santoro, professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também entende que o perdão concedido por um presidente pode também ser apreciado e revisto pelo Supremo. “Neste caso, estamos falando do benefício da ‘graça’, concedida a uma só pessoa, diferentemente do indulto. Não tenho dúvida que há precedente”, afirma.
Sentença pode ser revista?
Embora seja improvável uma reversão da sentença por essa via, a decisão do STF pode ser revista futuramente. As idas e vindas de decisões judiciais na história política recente do Brasil despertam incertezas, dizem os especialistas.
Essa possibilidade dependeria de uma mudança na composição atual do Supremo. As eleições de 2026 terão um papel decisivo: o presidente eleito deverá indicar três novos ministros, devido às aposentadorias dos magistrados Luiz Fux (2028), Cármen Lúcia (2029) e Gilmar Mendes (2030).
Em seu governo, Bolsonaro indicou dois nomes ao STF: os ministros André Mendonça e Kássio Nunes Marques. O grupo político do ex-presidente chegaria a cinco indicações em caso de vitória na próxima eleição presidencial. Além disso, com uma maioria no Senado, o projeto de impeachment de Alexandre de Moraes poderia ganhar força.
“Isso abriria mais uma vaga. Seriam seis contra cinco”, alerta Thiago Bottino, professor de Direito Penal na Fundação Getúlio Vargas.
“Se essas seis pessoas estiverem comprometidas com um determinado resultado, é possível falar que qualquer coisa que você leve ao Supremo, com ou sem razão jurídica, faça com que ocorra a reversão desse julgamento”, avalia o jurista.
A indicação não garante lealdade política, como mostram as trajetórias de diferentes ministros do Supremo. Luiz Fux, por exemplo, foi indicado por Dilma Rousseff em 2011, pouco antes do julgamento do mensalão no STF. Recém-empossado, o ministro votou por condenar lideranças do PT.
Com relação a Mendonça e Nunes Marques, observa-se um alinhamento em temas caros ao bolsonarismo, como nas decisões a favor de Daniel Silveira e nos pedidos de absolvição em julgamento dos crimes do 8 de janeiro de 2023.
“A gente está falando de forças políticas atuando sobre uma Suprema Corte. E eu não sei se está errado. A Suprema Corte não deixa de ser um dos poderes políticos de uma República, nessa ideia de tripartição de poderes. Não é político-partidário, mas é político”, ressalta Bottino.
Idas e vindas dos tribunais
Esta não é uma particularidade brasileira, diz o professor da FGV. Ele cita a mudança de entendimento sobre o aborto na Suprema Corte dos Estados Unidos em 2022, quase 50 anos após a decisão que tornou o procedimento legal no país, em 1973.
“Com ampla maioria conservadora, indicada ao longo do tempo por presidentes republicanos, a Suprema Corte entendeu o seguinte: aquela decisão está errada e nunca foi Constitucional”, recorda.
A experiência recente da operação Lava Jato ajuda a entender por que juristas não descartam uma mudança de rota no caso do 8 de janeiro. Decisões referentes ao caso foram revistas poucos anos depois. O Supremo declarou a incompetência da 13ª Vara de Curitiba, anulou provas e reverteu condenações que haviam sido celebradas como exemplares no combate à corrupção, como a do presidente Lula.
“[Na ação penal da trama golpista], o STF concentrou investigação, denúncia e julgamento, o que fere o princípio do juiz natural. Foi esse tipo de acúmulo de funções que também permitiu a revisão da Lava Jato”, afirma Thiago Bottino. Para ele, a solidez jurídica de hoje não garante a imutabilidade da decisão no futuro.
Moraes suspeito?
A atuação de Alexandre de Moraes como relator dos processos relacionados ao 8 de janeiro também gerou controvérsia, uma vez que ele mesmo foi alvo de um plano de assassinato investigado na ação penal.
Juristas tomados como progressistas, como Lênio Streck e Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, vêm defendendo a suspeição de Moraes para julgar os casos.
Com larga experiência em casos envolvendo políticos, o advogado criminalista Alberto Toron endossa essa crítica. Ele avalia que a condução de Moraes abre brechas para contestação futura do processo.
“Ora, se o ministro Alexandre de Moraes era alvo do ataque dos golpistas, ele não poderia ser ao mesmo tempo juiz da causa, muito menos o relator. Eu acho isso um erro grave”, afirma Toron.
Já para Antonio Santoro, da UFRJ, a atuação do ministro não representa um ponto fora da curva no Judiciário brasileiro.
“É um horror dizer isso, mas a verdade é que o processo penal brasileiro é autoritário, e os juízes também. O Fux concedeu 1% dos pedidos de habeas corpus feitos a ele. O Moraes está sendo coerente com ele mesmo e com o Judiciário brasileiro, que é muito punitivista e flerta o tempo todo com um passado inquisitório”, avalia o jurista.
Outros pontos frágeis
No voto divergente da Primeira Turma do STF, o ministro Luiz Fux questionou a competência do tribunal para julgar os crimes. Embora fossem réus “de colarinho branco”, eles já não estavam nos cargos quando o processo teve início.
“Tenho uma reserva muito grande à ideia de atrair o caso para o Supremo Tribunal Federal pelo critério da conexão, o mesmo artifício utilizado na Lava Jato para que o juiz Sergio Moro tivesse uma espécie de competência nacional”, diz Alberto Toron.
O criminalista defende que os crimes do 8 de janeiro deveriam ter sido julgados em primeira instância. “O que causou estranheza foi o ministro Fux só falar isso agora, no julgamento do Bolsonaro. Ele não falou isso para aquelas milhares de pessoas que participaram dos atos de vandalismo”.
Ao apontar a suposta incompetência do STF para julgar os réus, Fux criticou a restrição da análise à Primeira Turma, por entender que o debate caberia ao plenário, junto com os demais ministros da corte.
Após o julgamento do mensalão, que mobilizou os trabalhos do STF em 2012, o tribunal entendeu que era preciso distribuir os casos nas turmas para atender à demanda crescente de casos. Após rediscutir o tema em mais de uma oportunidade, o plenário decidiu em 2023 que as turmas têm competência para julgar estas ações.
Fux evidencia dissenso no STF
Apesar das divergências abertas em seu voto, Fux não desconsidera nenhum dos fatos apresentados pela denúncia. A discordância reside na interpretação dos efeitos jurídicos, destaca Thiago Bottino, da FGV.
“Houve uma reunião do então presidente com os comandantes das Forças Armadas, onde foi apresentada uma minuta de um futuro ato institucional. Ele [Fux] reconhece isso. Mas diz que ali não era ainda o início da execução de um golpe. Então, a divergência dele é com relação à classificação jurídica desses fatos”, constata.
Para o advogado Antonio Pedro Melchior, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), a divergência aberta por Fux tem um papel importante ao demonstrar o viés democrático do julgamento. “Esse voto do Fux mostra que o STF é o lugar do dissenso, onde as teses de defesas podem ser ouvidas”, afirma.
“Paradoxalmente, eu penso que esse voto do Fux tem uma enorme importância para assegurar a legitimidade do processo, sobretudo para quem vê um processo de exceção, cujo resultado já estava definido”, avalia Melchior.
“Um ministro vota por 13 horas para dizer que o ataque agressivo ao sistema eleitoral brasileiro não passa de opinião política, e é dado a ele o direito de fazer isso sem interrupções”, conclui.