01/04/2012 - 0:00
* Artigo extraído de um documento apresentado por Antonio Skármeta no Segundo Fórum Mundial da Unesco sobre Cultura e Indústrias Culturais, Focus 2011, em Monza, Itália, em junho de 2011.
Sou um romântico incurável que admira o livro em papel, assim como pergaminhos antigos e a arte das cavernas de povos desaparecidos. Mas isso não me impediu de ser uma espécie de escritor que não odeia televisão. Por mais de dez anos, e com mais imaginação do que dinheiro, produzi programas de tevê que foram exibidos bem tarde da noite e estiveram frequentemente entre os programas mais populares, retransmitidos por toda a América Latina.
Isso não é apenas o resultado da veia de realismo mágico que atravessa a literatura latino-americana, com seu líder espiritual, o escritor colombiano vencedor do Prêmio Nobel Gabriel García Márquez, mas também de uma profunda convicção, desde a infância, de que os contos escritos brilham mais intensamente quando capturam a alegria primordial da linguagem falada. Essa convicção não me veio por meio da leitura do filósofo Michel Foucault ou do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, mas de viver em uma comunidade rural aos 8 anos de idade com minha avó e, aos 11 ou 12, com amigos em um subúrbio de Buenos Aires.
Minha infância foi um longo caso de amor com o rádio e minha primeira experiência com histórias contadas sem o uso de nenhum tipo de equipamento. Depois do jantar, quando minha avó se sentava para tricotar seus intermináveis cardigãs, me pedia para que eu sentasse ao seu lado enquanto ouvia episódios de horríveis melodramas com música lamentosa. Ela ficava tão absorta nesses folhetins que se zangava se alguém lhe fizesse uma pergunta ou o telefone tocasse. E ainda reclamava em voz alta da estupidez dos protagonistas que eram mais relutantes do que ela para agir.
Lembro-me de uma novela em que, capítulo após capítulo, dois bandidos tentavam em vão roubar um anel de diamante de um milhão de dólares de uma aristocrata. Cada vez que estavam prestes a ter sucesso, algo acontecia a empregada entrava no quarto, o marido se aproximava para beijá-la ou a senhora se trancava no banheiro. Um dia despejaram um sonífero em sua sopa e, quando a vítima caiu no chão, começaram a remover o anel. Mas estava tão apertado que, após dez minutos de luta, os larápios tiveram de escapar sem a joia. “Idiotas!”, ela me disse, fora de si, em seu espanhol com toques croatas. Minha avó era uma mulher apaixonada: “Tudo que tinham a fazer era cortar o dedo com um machado!”
Começo como escritor
O fornecimento de eletricidade na aldeia era precário. Os cortes frequentes de energia significavam que era impossível manter o rádio ligado. Minha avó costumava xingar quando a energia acabava no auge da ação radiofônica. Então ela se virava para mim e dizia: “E aí, Antonio, o que você acha que está acontecendo agora?” Com um monte de gestos e “hums” e “ahs”, eu lhe contava a história com detalhes totalmente fantásticos, como ela gostava, saídos diretamente da minha imaginação. Minha avó balançava a cabeça e continuava o tricô, com os olhos fixos no teto, como se fosse de lá que minha história vinha.
Um sábado, quando a eletricidade estava funcionando e uma história de suspense saía do rádio no volume máximo, minha avó desligou o aparelho e me disse: “Antonio, prefiro quando você conta a história.” Isso, acho, foi o que me levou a começar minha carreira como escritor sem qualquer ajuda!
Como o leitor pode entender, satisfazer o apetite pela ficção de uma avó foi um convite fabuloso para abraçar a frágil condição de escritor. A entusiasmada contribuição da minha antepassada para meus “suplementos dramáticos” acabou por ser para mim um incentivo maior do que um Ph. D em Escrita Criativa pela Universidade Harvard.
Para um adolescente chileno daquela época, ser um escritor significava ser um escritor norte-americano. E em Nova York! Subir ao topo do Edifício Empire State com uma linda loira na palma de sua mão, como King Kong. Lá, na grande cidade global, estava toda a empolgação de que alguém precisava. Eu teria de “cair na estrada” como o escritor Jack Kerouac e os poetas da geração beat.
Sendo um escritor que aprendeu a amar literatura sem qualquer material exceto a voz humana e o silêncio do deserto, não importava muito em qual aeroporto as histórias pousavam. Para mim, o problema que a literatura apresenta não está tanto em qual mídia é usada, mas na ausência de leitores. Se canto hinos de louvor ao livro de papel, é porque até agora ele tem sido o veículo que me permitiu encontrar leitores em 30 idiomas. Mas esse é também o caso dos filmes baseados em meus romances, e até mesmo das óperas feitas a partir deles.
Então, não tenho medo de transformações. Pelo contrário, as recebo bem. Eu as uso. Sei que as cartas que meu carteiro vai entregar ao poeta Pablo Neruda (personagem do livro mais famoso de Skármeta, O Carteiro de Pablo Neruda, que gerou o filme O Carteiro e o Poeta) provocarão a mesma emoção, qualquer que seja a mídia ou a superfície em que eles são apresentados, seja um livro, iPad, eBook, filme, ou mesmo uma peça de teatro.
Literatura, não informação
Quando vi as estatísticas sobre o número de pessoas que leem livros eletrônicos, notei que, até agora, o mercado para eles na minha língua, o espanhol, é desproporcionalmente menor do que aquele em inglês.
Mas eu gostaria de apresentar a seguinte ideia: que o meio papel, quando utilizado na literatura em outras palavras, o livro, seja um objeto tão sofisticado, pelo menos no campo da arte, que terá sempre seu lugar ao lado das novas mídias. E gostaria de saber se ele não o fará em proveito próprio, por uma razão muito boa a tela se tornou a ferramenta básica de trabalho para a humanidade.
Onde quer que estejamos, a maior parte dos dias de trabalho é gasta entre os mais ou menos estridentes flashes de acordo com a qualidade da máquina – de computadores. O mundo eletrônico é, acima de tudo, associado ao trabalho. Ele intensifica nossa visão e absorve nossa atenção. Ele nos controla.
Claro que o computador também oferece um lugar especial para a comunicação entre os indivíduos que se sentem conectados quando o estão usando. Mas é interessante que a mais popular forma de expressão entre os surfistas da internet seja a mensagem minimalista, concisa, abreviada, da informação no twitter.
Esse é exatamente o ponto. A literatura é muito mais do que informação. Um documento científico é uma mina de dados, e isso é tudo o que os livros didáticos são, informação que tem de ser compreendida, aprendida, dominada e aplicada.
A literatura está muito longe desses critérios pragmáticos. Trata-se do prazer das palavras, conjurando imagens que transportam a alma a lugares que a linguagem da ciência ainda não codificou. A literatura criativa, seja narrativa ou poesia, pertence mais ao domínio do prazer do que ao do trabalho.
Penso que esse fator psicológico vai proteger o livro da voracidade da informação, tanto daqueles que a fornecem quanto daqueles que a pedem. Obviamente, podemos comprar um DVD e assistir ao último filme premiado no Festival de Cannes numa tela em casa. Mas continuamos a ir ao cinema. Somos aparentemente religiosos o bastante para que nossas conversas íntimas com Deus se deem por intermédio da oração. Mas vamos a templos e igrejas e tomamos parte nos rituais.
Podemos, obviamente, falar palavras de amor para alguém querido por telefone ou email, mas vamos procurá-los para que nosso beijo possa transportar-nos além de seus lábios. Podemos passar dias inteiros queimando nossas retinas nos movimentos do mercado de ações e depois, à noite, assistir a um filme onde as praias do Taiti são retratadas em três dimensões, com as belezas pintadas por Gauguin. Mas o que realmente queremos é estar nessas praias, admirando a pele, desfrutando a brisa, nadando nas tépidas águas cor de cobalto, e não deixar isso com um substituto.
Convivência entre mídias
Em qualquer discussão sobre o futuro do livro, temos de lembrar que a história impressa no jornal, dos pergaminhos antigos à impressão moderna, criou espaços de prestígio para a comunicação, tais como livrarias, bibliotecas públicas e privadas e clubes do livro, e que essas formas de publicação se juntaram a outras artes, transformando a história impressa e encadernada em um objeto como nenhum outro, magnetizado por design gráfico, ilustrações, capas e pessoas que se reúnem em torno deles em espaços públicos.
A publicação de um bom livro rapidamente provoca a admiração coletiva é um evento cultural dotado de aura. Duvido que a publicação algo fantasmagórica de uma história na solidão privada do espaço digital já possua o mesmo encanto entusiasmado do nascimento de um livro impresso em papel.