Perfis em redes sociais fazem propaganda de homens muçulmanos. Golpistas se aproveitam de fama para atrair vítimas.O que parecia um sonho acabou se tornando um pesadelo para Marya Silva. A brasileira se envolveu emocionalmente com um homem que se apresentava como turco. Os dois se conheceram pelo Instagram e usam tradutores online para conversar.

“Ele disse que trabalhava como enfermeiro e que estava em busca de um relacionamento sério. Após me envolver sentimentalmente, começou a fazer os primeiros pedidos, notadamente sexo virtual”, contou Marya Silva. “No entanto, surgiram novos pedidos e decidi não aceitar. Diante da recusa, o comportamento dele mudou drasticamente: passou a proferir xingamentos e a desaparecer”, afirma.

Depois de um terremoto na Turquia, o suposto turco passou a pedir dinheiro para Silva. Ao ter pedido recusado, o homem começou a humilhar a brasileira.

O chamado estelionato afetivo se espalhou pelos relacionamentos online, com golpistas se aproveitando da vulnerabilidade de vítimas que acreditam estar vivendo algo real. Nesse universo, o fenômeno que ficou conhecido como “habibi” alarma cada vez mais, com mulheres sendo atraídas diante da ilusão das vantagens de se relacionar com muçulmanos.

Perfis nas redes vendem os “habibis” como menos infiéis do que os latinos. Influenciadoras ostentam viagens e luxos supostamente proporcionados pelos maridos. Perfis de muçulmanos ganham a atenção publicando em português, inglês e espanhol. Quase sempre levam “habibi” no nome de usuário e apresentam o suposto cotidiano, muitas vezes como humor, fazendo brincadeiras sobre o pagamento das faturas do cartão de crédito das esposas.

Porém, fora do mundo das redes, essas relações podem ser um problema. No caso das brasileiras, o aumento de solicitações de vistos permanentes para o Oriente Médio e norte da África por motivo de casamento e reunião familiar levou o Itamaraty a divulgar uma nota sobre o tema.

“Em alguns casos, verifica-se a existência de grande diferença etária entre a cidadã brasileira e o nacional estrangeiro, o qual, em geral, revela ser desprovido de recursos financeiros ou qualquer vínculo empregatício”, afirma o órgão. Muitas vezes, jovens destes países buscam iniciar uma relação apenas para conseguir a documentação necessária para permanecer no Brasil legalmente, abandonando as parceiras após isso.

Nos últimos anos, depoimentos e alertas sobre situações ainda mais graves vêm se espalhando nas mesmas redes sociais. Tráfico de pessoas, cárcere privado e sequestro infantil são relatos contidos sobre abusos sofridos por brasileiras em relacionamentos com estrangeiros. Além disso, há ainda a aplicação de golpes financeiros nas vítimas.

Manda o Pix

Com a facilidade das transferências internacionais, os golpes se baseiam em grande parte nos pedidos de envios de dinheiro. Seja em razão de uma suposta emergência, ou para a liberação do envio de encomendas, as vítimas costumam realizar envios financeiros que, ao final do suposto relacionamento, costumam chegar à casa dos milhares de reais.

No começo de novembro, a Polícia Civil de São Paulo realizou a Operação Lyncon Brown contra um grupo criminoso envolvido em estelionatos sentimentais. As investigações começaram após uma vítima registrar boletim de ocorrência em Pirapozinho, no interior de São Paulo, contando que havia sido enganada por um homem que conheceu nas redes sociais.

Ele se apresentava com o nome Lyncon Brown, dizia ser sírio e que morava em Damasco. O golpista teria convencido a vítima a realizar transferências para liberar bens e encomendas supostamente enviadas por ele ao Brasil, em um prejuízo que teria ultrapassado os R$ 25 mil.

Em julho, um caso chamou a atenção após uma mulher enviar cerca de R$ 1 milhão a um homem que se apresentava como um general sírio que dizia ter múltiplos negócios em Dubai. A subnotificação é constante neste tipo de caso, com a vítima muita das vezes sentido vergonha e tendo certeza da impunidade.

Um “match” comum

Especialmente após o isolamento causado pela pandemia, estas situações se tornaram cada vez mais comuns. Uma pesquisa da Hibou Pesquisas e Insights mostrou no ano passado que, no Brasil, quatro entre cada dez mulheres foram vítimas do chamado “golpe do amor”. Assim, 53% dos estelionatários pediram dinheiro emprestado e 25% solicitaram ajuda para pagar contas. Entre as vítimas, 12% perderam mais de R$ 5 mil.

“Estrangeiros veem como presas fáceis, já que os brasileiros são muito receptivos”, afirma Ligia Mello, sócia e CSO da Hibou. Segundo a especialista, o público acima de 40 anos é especialmente interessante para os golpistas. No caso das pessoas da terceira idade, muitas das vezes, a solidão e a garantia de uma renda recorrente aparecem como facilitadores para a ação dos estelionatários.

Mello nota um avanço no uso dos aplicativos de relacionamento nos últimos anos, com 32% das entrevistadas na última pesquisa sobre o tema relatando estar presente nestas conexões. Segundo ela, a pandemia foi um divisor de águas para os relacionamentos, com as pessoas desenvolvendo certo senso de urgência e buscando novas experiências.

Desta maneira, uma vez que as pessoas próximas “são muito semelhantes” e com os mesmos problemas se repetindo, estrangeiros aparecem com um atrativo a mais. “As mulheres veem estes relacionamentos como uma oportunidade”, afirma Mello.

Ainda que homens também sejam vítimas, Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro do Direito de Família (IBDFAM), nota uma diferença importante entre os gêneros. No caso masculino, o tipo de relação buscada tende a ser mais casual, enquanto as mulheres tendem a criar mais expectativas e se dedicar mais às interações.

Desta forma, além de sofrer perdas financeiras maiores, as mulheres sofrem decepções mais intensas, que frequentemente levam a danos psicológicos.

Com o avanço da inteligência artificial (IA), o tema tende a ser ainda mais desafiador. A verificação por vídeo, por exemplo, que costuma ajudar a diminuir dúvidas sobre os golpistas, ou que ao menos dificultava sua ação, tende a ser menos confiável.

Crime e pouco castigo

Nos últimos anos, o combate ao estelionato amoroso evoluiu no Brasil tanto na percepção pública quanto em termos legais, no entanto, quando se trata de estrangeiros realizando ações a partir de outros países, as limitações são enormes.

Em casos como o daqueles estrangeiros que vem ao Brasil em busca de se regularizar, não há como enquadrar em nenhum crime, mas os pedidos de transferências com danos financeiros podem ter de ser ressarcidos caso fique comprovada a má fé.

Em setembro, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que aumenta a pena do crime de estelionato quando o autor se vale de relação afetiva ou de íntima confiança com a vítima. Nesses casos, a pena varia de três a nove anos de prisão, além de multa.

Por sua vez, quando a ação ocorre fora do país, há os limites jurisdicionais, lembra Dias. “Pode até haver condenação, incluindo uma ação de execução para retomar o dinheiro, mas é muito difícil em caso extraterritorial. Quando acontece aqui, já é complicado”, aponta.

Desta forma, o combate recai em grande parte nos cuidados das potenciais vítimas. Neste sentido, Mello se demonstra otimista. “Estamos percebendo os brasileiros mais atentos. Inclusive, o valor monetário que costuma ser perdido nos golpes diminuiu”, afirma. “Além disso, a vergonha também vem sumindo, o que é positivo.”