01/02/2011 - 0:00
De 2000 a 2008, 1,5 gigatonelada de gelo virou água na Groenlândia, aumentando o nível médio do mar em 0,46 milímetro por ano, segundo o Instituto de Pesquisa Marinha e Atmosférica da Universidade de Utrecht, na Holanda. Todo ano o país perde 240 quilômetros cúbicos de gelo induzidos pelo aquecimento do planeta, estima o Centro de Pesquisa do Espaço da Universidade do Texas.
Em Aappilattoq, aldeia numa ilha da costa sudoeste, um coro de vozes inuits roucas canta hinos nostálgicos em sua língua materna. Perto dali, um urso-polar corre para saltar de um último iceberg, desesperado de fome. Sua comida preferida, a foca, contempla com calma a nova paisagem, refestelada sobre uma margem verde, na qual pastam algumas ovelhas brancas. Numa terra onde o gelo aparece cada vez menos, o urso não sabe mais como caçar sua presa. O gelo que cobre 80% dos 2,1 milhões de quilômetros quadrados da ilha está derretendo.
Neste claro dia de outono, uma baleia gorda será cortada em pedaços que serão distribuídos entre os 123 habitantes da aldeia. Por um golpe de sorte, o animal encalhou vivo, convidando para uma festa da qual todos sairão de barriga cheia! O odor peculiar e a pobreza estão no ar, mas a luz brilhante e transparente ilumina as caras das mulheres e das crianças reunidas para um baile. Um teclado começa a tocar. Uma guitarra desafinada acompanha. Um rapaz do povoado filma tudo com sua câmera. O novo se choca com o antigo. A cultura que durante séculos sustentou os nativos da ilha está perdendo o sentido.
A cada ano a Groenlândia perde 240 km3 de gelo. O nível médio do mar já subiu 0,5 cm. O modo de vida dos inuits está ameaçado.
O povoado é modesto. Umas 30 casas humildes de madeira, uma escola primária, uma igreja muito simples e um cemitério desproporcionalmente grande ocupam uma superfície rochosa junto a uma pequena baía. Ali vive esse povo solitário, cheio de sonhos de imigração para criar uma vida igual à das telenovelas dos países distantes.
Os inuits possuem antenas parabólicas, rádio, telefone, internet e sabem muito bem que aquele que parte nunca retorna para contar como a existência é diferente lá fora, a não ser raramente. Os que ficam admitem sua incapacidade para enfrentar uma existência destituída da paisagem a que estão acostumados. A caça às focas está proibida. Não por acaso, hoje existe uma superpopulação do animal, que reduz a pesca dos pequenos barcos. Seus donos enfrentam falta de nutrição, embora vivam numa despensa com comida até o teto.
Como o urso-polar, o homem inuit sofre por causa das mudanças bruscas do clima e da política ambiental mundial. Hoje, para os nativos da Groenlândia, a maneira mais fácil de se alimentar é enchendo o carrinho no supermercado do vilarejo. Tudo o que nele se vende é importado da capital, Nuuk, ou de outros países.
Os 20 e poucos escolares em Aappilattoq recebem informações do que vai pelo mundo em dinamarquês, inglês e na sua própria língua, o groenlandês. Há pelo menos três línguas autóctones. A falta de professores competentes em todas as matérias escolares dificulta um real progresso da escola. Os estudantes mais afortunados terminam seus estudos na universidade nacional, em Nuuk ou na Dinamarca.
Alguns deles tomarão as rédeas da política de seu país de origem ou entrarão no mercado pesqueiro, dividido hoje com cerca de 16 mil dinamarqueses, todos determinados a resistir a invernos muito duros em lugares atrativos e bem remunerados.
Os groenlandeses inuits recebem uma ajuda econômica da Dinamarca, país de onde vieram os primeiros colonizadores europeus. Os dinamarqueses enviam anualmente aos inuits 70 mil coroas dinamarquesas (mais de R$ 20.900) per capita, além de 400 milhões de coroas destinadas à manutenção da jurisdição e do meio ambiente.
As fazendas de criação de ovelhas importam da Dinamarca feno e insumos para os animais. O custo do transporte marítimo é alto.
Esse não é, no entanto, um acordo ditado pelo altruísmo, e sim pela conveniência mútua. As duas nações pequenas precisam uma da outra. Os inuits não apenas são poucos, mas também lhes falta mão de obra e competência para o desempenho de funções na sociedade moderna. Os dinamarqueses necessitam da riqueza dos mares da Groenlândia, que contribui para o gordo produto interno bruto da Dinamarca.
Além da pesca, interessa à Dinamarca e a vários outros países explorar o alumínio, o urânio e outros minerais valiosos nos quais o subsolo groenlandês é bastante rico. No país existem hoje minas de zinco, chumbo, ouro e outros minérios. Os que buscam petróleo nos mares da Groenlândia estão certos de que, um dia, a região produzirá milhares de toneladas desse combustível. No dia em que o último iceberg derreter, terá desaparecido o maior obstáculo para um negócio muito rentável. Há pouco foram concluídas as negociações para o estabelecimento de uma empresa de produção de alumínio na região polar de Thule – não sem sérios conflitos de interesse.
Cerca de 740 quilômetros ao sul de Aappilattoq aparece outro povoado, bem assentado sobre uma pradaria de verde intenso, à beira do mar. Rebanhos de ovelhas e cavalos pastam juntos, subvencionados por cerca de US$ 3 milhões que chegam dos impostos dinamarqueses. Cinquenta fazendas dedicadas à criação de ovelhas fazem o que podem para tornar-se rentáveis, mas os custos do transporte marítimo do feno e outros alimentos para os animais arruínam esses esforços. O positivo é que os fazendeiros podem contar, pelo menos de vez em quando, com uma boa perna de cordeiro em suas mesas.
O próprio povo da Groenlândia desconhece a totalidade do território onde vive. Se quiser saber o que acontece com sua imensa ilha, quase um subcontinente, tem de observá-la por um satélite da Nasa. Não há estradas nacionais, nem trens, nem uma rede de voos nacionais regulares. Quando o tempo permite, usamse helicópteros para expedições científicas ou de urgência. Em Aappilattoq, algumas crianças usam bicicletas, o que confere a elas um certo status.
A rua principal chega à escola e à igreja. Os transportes normais são feitos com barcos e ferryboats. Há 20 anos era possível ir de trenó ou carro, sobre o gelo, de margem a margem do Golfo do Disco, no noroeste da ilha. Mas isso, como vários outros costumes, foi-se perdendo com o degelo, deixando povoados inteiros completamente isolados.
A inventividade dos inuits – gente que sobreviveu a várias e longas migrações, fome, tempestades, frio e um isolamento insuportáveis para os europeus – prospera e se desenvolve. Querem participar da vida moderna. Usam o Facebook para chamar a atenção.
Pretendem tornar-se membros da Fifa – embora na Groenlândia não haja campos de grama verde para a prática do futebol. Eles, então, enviam mensagens ao mundo todo falando de seus planos de preparar um campo verde de grama artificial segundo as especificações da Fifa. Sua página bem chamativa no Facebook “A Pitch for Greenland” (Um Campo para a Groenlândia) lhes dá a esperança de poder participar da Copa do Mundo de 2014, no Brasil.
Novos talentos inuits aparecem na literatura e nas artes, e são bem recebidos nos círculos criativos e intelectuais. Trazem uma brisa fresca de espontaneidade com um específico talento para concretizar e expressar suas emoções e seu mundo imaginário. O Museu de Arte Moderna de Halifax, no Canadá, em sua seção de arte inuit, expõe várias peças muito representativas da sua pintura e escultura.
O artesanato floresce, e eles se mostram cada vez mais capazes de fabricar novos e velhos artefatos, de madeira, peles, couro e lã. As mulheres inuits continuam a criar suas roupas folclóricas exclusivas, bordadas com contas de cores fortes e adornadas com peles suaves.
Milhares de anos de adaptação a uma vida que, em todos os momentos, pede soluções geniais para não sucumbir levaram os inuits à “era cibernética”.
Eles não pretendem voltar atrás. Agora têm seu próprio Parlamento e autonomia em termos de política interior. Não querem voltar a entrar na Comunidade Europeia.
As vozes de Aappilattoq cantam os hinos da sua nação inuit. O eco delas ressoa entre as montanhas. Como um todo, o país enfrenta um conflito humano de grandes proporções. Abrir seu cofre de ouro e repartir seus recursos naturais para serem explorados e desfrutar de proventos substanciais para criar uma nação moderna? Ou confiar que uma nova política ambiental mundial os deixará em paz com seus costumes e tradições, permitindo que eles evoluam do seu jeito e modo? A opção não é fácil, e dela depende o futuro de um país que, cada vez mais, e graças ao aquecimento global, merece seu nome de “Terra Verde”, a tradução mais correta para Groenlândia.