04/03/2022 - 8:10
De acordo com um estudo da Rede Internacional de Ouvidores de Vozes (Intervoice), cerca de 2% a 4% da população mundial ouvem vozes. O grupo de Ouvidores de Vozes, proposto pelo Movimento Internacional de Ouvidores de Vozes, na década de 1980, como uma nova abordagem terapêutica para pessoas que sofrem com o problema, é um espaço onde os membros trocam experiências e estratégias para lidarem com essas vozes. A prática terapêutica é baseada no suporte de pares, que propõe para pessoas que passam pela mesma situação discutir suas experiências com seus pares.
A abordagem mais comum para o tratamento de pessoas que ouvem vozes é a medicação, mas “uma porcentagem importante, mesmo sob uso de medicação, continua a ouvir vozes”, afirma Clarissa Mendonça Corradi-Webster, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, coordenadora do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicopatologia, Drogas e Sociedade (LePsis) da USP e pesquisadora do Grupo de Ouvidores de Vozes de Ribeirão Preto.
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A pesquisadora alerta para a falta de opção de cuidados para essa parcela da população, por isso o Grupo de Ouvidores de Vozes de Ribeirão Preto é considerado um espaço onde essas pessoas podem conversar com seus pares sem que sofram preconceitos ou sejam alvo de estigmas. “O grupo é apontado pelos ouvidores como o único espaço que eles têm para conversar sobre uma experiência que, tantas vezes, toma um espaço muito grande em suas vidas.”
Compartilhamento de experiências e histórias
Quando as pessoas chegam ao grupo, relata a professora, sabem que “estão entre iguais e o que elas disserem será compreendido e não será julgado”. É um ambiente em que trocam experiências e compartilham suas histórias e estratégias para o manejo das vozes. Por isso é um grupo de pares, porque “o objetivo não é que o profissional dê um significado para aquilo, interprete o que está sendo dito ou ensine aos membros o que fazer”, afirma. O objetivo é que os pares se fortaleçam e, com isso, construam uma rede de apoio para as pessoas que passam pelas mesmas circunstâncias.
Essa proposta terapêutica é comum em países da Europa e da América do Norte, informa a professora, mas nos países da América Latina ainda se encontra em fase inicial. No Brasil, os pesquisadores notam que “tem um potencial muito grande”, avalia Clarissa.
Em Ribeirão Preto, o Grupo de Ouvidores de Vozes existe desde 2015. Foi um dos primeiros criados no país e ganhou um documentário em 2017, disponível neste link. O grupo foi concebido inicialmente por membros do LePsis, após uma formação com o psiquiatra holandês Marius Romme, precursor da prática terapêutica, e Paul Baker, membro do Intervoice. A proposta do grupo foi apresentada e implementada no Centro de Atenção Psicossocial Dr. André Santiago (Caps III), em Ribeirão Preto, um serviço de saúde mental comunitário, com o apoio do gerente do serviço, Marcos Vinicius dos Santos, e conta também com a coordenação do psicólogo Eduardo Augusto Leão. Embora disponham de acompanhamento profissional, o intuito é de que os membros desenvolvam autonomia para que possam fazer a coordenação e se apropriar do espaço como um grupo de suporte entre pares.
Clique no player abaixo para ver o documentário sobre o Grupo de Ouvidores de Vozes:
https://www.youtube.com/watch?time_continue=10&v=le1SWAOjarI&feature=emb_logoAlém da psicopatologia
Embora algumas pessoas que procuram o serviço possuam algum diagnóstico psiquiátrico, ouvir vozes é considerado um “fenômeno mais amplo que a psicopatologia”, explica Clarissa. O professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP João Paulo Machado de Sousa diz tratar-se de um “fenômeno natural”, que não está inserido apenas em contextos de doenças e transtornos psiquiátricos, mas que pode estar associado a contextos culturais e religiosos. Contudo, se acontecer fora desses contextos, “merece atenção médica e psicológica”, adverte o especialista.
Com a pandemia de covid-19, o Grupo de Ouvidores de Vozes de Ribeirão Preto precisou suspender as atividades por um tempo, mas conseguiu se organizar para realizar os encontros remotamente. Embora algumas pessoas não tenham se adaptado ao novo cenário de encontros, o contexto possibilitou que pessoas de outros lugares participassem, uma novidade que deve ser mantida com o retorno presencial do grupo neste ano. “A proposta é que a gente fique com as duas opções, um grupo no serviço e um grupo comunitário”, adianta Clarissa.
Gestão independente
Outro aspecto importante é que o grupo foi capaz de ser gerido pelos membros independentemente do serviço de saúde mental onde funcionava antes da pandemia, além de fortalecer a rede de apoio entre seus membros, considerada pela professora um benefício para os integrantes, que criam vínculos e se apoiam não só durante os encontros, mas no dia a dia. E completa que, “com isso, as pessoas vão ficando mais fortalecidas”.
Em Ribeirão Preto, no ano passado, outra conquista do grupo foi a aprovação do Dia do Ouvidor de Voz, celebrado em 14 de setembro. Essa é uma data internacional e a aprovação na cidade foi comemorada pelos membros, dada a sua importância, celebra a professora, “porque é um dia que tem diferentes manifestações para que os ouvidores troquem entre si” em todo o Brasil, e também para lutar contra o estigma e a discriminação.
O Grupo de Ouvidores de Vozes de Ribeirão Preto é aberto para todos e se encontra às quintas-feiras, às 14 horas, no Caps-III Dr. André Santiago, localizado na Rua Pará, 1280, no bairro Ipiranga, em Ribeirão Preto. Os encontros on-line acontecem todas as quintas-feiras pela manhã. Mais informações estão disponíveis neste link.
* Leia a matéria original neste link e acesse a entrevista de Clarissa Mendonça Corradi-Webster e João Paulo Machado de Sousa ao Jornal da USP no Ar.