Por que humanos matam outros humanos? A pergunta paira sobre a montagem de uma ópera moderna russa em Munique. De Napoleão à atual invasão da Ucrânia, música e teatro se unem em manifesto antibélico.Uma encenação calcada na atual invasão da Ucrânia, de uma ópera escrita durante a Segunda Guerra Mundial, com libreto baseado num romance de 1869 situado nas guerras napoleônicas. Matar o semelhante e destruir: uma moléstia humana sem fim?

“De novo, guerra. De novo, sofrimento de que ninguém precisa, totalmente sem sentido. De novo, traição, de novo a imbecilização e embrutecimento dos seres humanos.”

Léo Tolstoi escreveu essas palavras em 1904, no artigo intitulado Reflitam!, sobre a guerra que acabava de eclodir entre seu país e o Japão. Ex oficial do Exército, o patriarca da literatura russa se tornara um pacifista ardoroso. E é justamente essa citação que os realizadores escolheram como fio condutor para seu espetáculo na Bayrische Staatsoper, em coprodução com o Gran Teatre del Liceu de Barcelona.

A montagem de cinco horas na casa de ópera de Munique tem todos os motivos para merecer o atributo “mega”, a começar por seu gigantesco aparato musical, sob a batuta de Vladimir Jurowski: secundados por grande orquestra e coro, somente os solistas vocais chegam a 70.

O compositor Sergei Prokofiev (1891-1953) começou a trabalhar em Guerra e paz (em russo: Voyna i mir) em 1942, tomando como base o romance homônimo de Tolstoi, porém impulsionado pela recém derrotada invasão da União Soviética pela Alemanha nazista.

No palco, a guerra russa na Ucrânia

Se a trama original trata da guerra defensiva da Rússia contra as tropas de Napoleão Bonaparte, em 1812, o diretor teatral russo Dmitri Tcherniakov a tomou como pretexto para encenar como ópera a brutal guerra de agressão russa, atualmente em curso na Ucrânia. Um ato de equilibrismo ideológico que os realizadores executam com bravura, emitindo um veemente apelo pela paz e liberdade.

A própria data da estreia na capital da Baviera teve forte carga simbólica: 5 de março, precisamente o dia da morte, tanto de Prokofiev quanto do ditador soviético Josef Stalin, em 1953.

Tanto Jurowski, atual diretor musical geral da Bayrische Staatsoper, quanto o celebrado Tcherniakov se estabeleceram nas últimas duas décadas como importantes representantes da cultura russa – mantendo uma distância saudável das engrenagens de poder do Kremlin.

Como sempre ocorre nos grandes teatros, Guerra e paz vinha sendo preparada com ampla antecedência. Contudo a invasão da Ucrânia pelas tropas russas, em 24 de fevereiro de 2022 – por ordem do presidente Vladimir Putin e sob o cínico pretexto de uma “operação militar especial” para “desnazificar e desmilitarizar” o país vizinho – levou o projeto à beira do fracasso, e seus responsáveis, aos limites do desespero.

Mesmo assim, toda a equipe optou por encarar o desafio – financeiro, logístico, político –, movida por um sentimento de responsabilidade e o compromisso com a arte como forma relevante de posicionamento na sociedade, mesmo – e especialmente – em épocas de conflito armado.

Guerra e o mundo?

O romance em quatro volumes de Léo Tolstoi (1828-1910) é uma obra-chave da literatura, não só russa, mas mundial. O título poderia também se traduzir como Guerra e o mundo, pois, enquanto voyna (война) significa univocamente “guerra”, mir (мир) tem duplo significado. E, a julgar por fontes da época, o autor teria seguramente preferido essa segunda versão.

Em sua obra épica, ele analisa a natureza da violência, encarnada pelo exército francês que invadiu a Rússia em 1812. Violência destrói o mundo pacífico, causa sofrimento humano: com violência não se transforma o mundo, é a altamente atual mensagem antibélica de Tolstoi.

Por sua vez, Sergei Prokofiev começou a trabalhar na ópera sob a impressão da ofensiva dos soldados de Adolf Hitler contra a União Soviética, em 1941. Embora ao elaborar o libreto, a quatro mãos com sua segunda esposa, Mira Mendelson, o compositor tenha forçosamente condensado o romance de proporções homéricas, numa espécie de Seleções do Reader's Digest, sua ideia central também é de um mundo pacífico, que ele confronta com a brutal e unidimensional realidade bélica.

Prokofiev também já vivenciara outras formas de violência. Quando, na década de 1930, apesar de uma bem-sucedida carreira no Ocidente, retornou à URSS esperando se tornar o “número um” entre os músicos do país, ele se viu totalmente entregue à arbitrariedade do regime stalinista.

Assim como todas as tendências modernistas da arte, sua música era excessivamente “decadente” e “burguesa” para o gosto dos funcionários da cultura soviética. Na prática, isso resultou na interdição da execução de suas obras em público; de início tacitamente e, a partir do Congresso dos Compositores Soviéticos de 1948, oficialmente. Apesar de reescrever e editar Guerra e paz durante anos, ele nunca chegou a ver encenada sua versão final completa.

Como se o conflito tivesse chegado a Moscou

Para a produção em Munique, Jurowski e Tcherniakov recrutaram representantes da elite do canto, tanto da Ucrânia, Rússia, Letônia, Lituânia, Uzbequistão, Belarus e Armênia, quanto da esfera ocidental.

A Andrei Zhilikhovsky, da Moldávia, e à ucraniana Olga Kulchynska couberam os papéis do duo amoroso protagonista, o príncipe Andrei Zhilihovsky e Natasha Rostova, uma das personagens femininas favoritas da literatura russa. Segundo fontes do meio operístico, Kulchynska sofreu hostilidades de alguns compatriotas radicais por participar de uma produção supostamente “russa”.

No entanto, isso não a fez desistir do projeto. Até porque a bandeira da Ucrânia atualmente hasteada no alto da casa de ópera no sul da Alemanha não deixa dúvidas quanto a de que lado estão as simpatias no contexto da atual guerra no Leste Europeu.

Em sua concepção cênica, Dmitri Tcherniakov adotou um curso radical, levando o conflito até um local do qual, até hoje, muitos creem que ele esteja bem longe: o coração de Moscou. Toda a ação – tanto os episódios pacíficos da primeira parte da ópera, quanto as brutais cenas de batalha e assassinato da segunda – se desenrola no Salão das Colunas da Casa dos Sindicatos.

Nessa locação icônica, no centro da capital, conhecida por praticamente todo russo, se realizaram recepções pela coroação de czares e, mais tarde, exéquias de estadistas soviéticos, de Vladimir Lenin e Stalin a Mikhail Gorbatchev.

Os heróis e anti-heróis de Tcherniakov se encontram confinados nesse local sinônimo da história russa, como refugiados de guerra de hoje em dia, isolados do mundo exterior. A guerra se revela uma espécie de cruel jogo de representação sem regras, arrastando as personagens num redemoinho de brutalidade insana.

De forma precisa e potente, Jurowski – que há muito almejava reger Guerra e paz como “obra central do repertório operístico do século 20” – mantém coesas as enormes forças musicais. Ele também é responsável pela versão apresentada agora em Munique; cortando, por exemplo as patrióticas cenas de massa inseridas a certo ponto por Prokofiev para conquistar as graças dos censores.

“Por que humanos matam outros seres humanos?”, é a questão central do épico de Tolstoi, que paira permanentemente no ar. Não há resposta. Mas o que permanece é um ódio pela guerra que cresce a cada compasso da magistral partitura musical.