17/02/2024 - 13:27
Embarcação a vela La Sofia trouxe 388 passageiros de Gênova para trabalharem numa fazenda no Espírito Santo, e inaugurou a fase do afluxo em massa de imigrantes da Itália ao Brasil.Há 150 anos, em 17 de fevereiro de 1874, chegava ao porto de Vitória, na então província do Espírito Santo, uma embarcação a vela chamada La Sofia. A bordo, 388 pessoas oriundas da península itálica, na maioria das regiões do Vêneto e de Trento.
Historicamente, esse é considerado o marco inicial da imigração italiana no Brasil, já que a partir dali e até 1920 — considerado, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o “momento áureo do largo período denominado como da grande imigração” — o país recebeu cerca de 3,3 milhões de imigrantes. E o contingente italiano representava 42% do total.
Se a chegada se deu em 17 de fevereiro, o desembarque dos italianos só começaria quatro dias depois, devido aos procedimentos de quarentena. Por isso, o dia 21 de fevereiro é, oficialmente no Brasil, o Dia Nacional do Imigrante Italiano.
“O desembarque perdurou até o dia 27”, ressalta a antropóloga Evelize Moreira, pesquisadora do Museu da Imigração, de São Paulo.
A efeméride será celebrada por muitos dos hoje cerca de 35 milhões de ítalo-brasileiros — o Brasil é o país que tem a maior comunidade de descendentes de italianos em todo o mundo.
La Sofia, um empreendimento privado
A chegada dos 388 italianos há 150 anos foi fruto de um empreendimento privado. “Foi um acordo entre um imigrante italiano que já residia no Brasil desde 1850, Pietro Tabacchi, e o Ministério da Agricultura”, contextualiza Moreira.
Oriundo de Trento, Tabacchi foi pessoalmente à península itálica para arregimentar camponeses. É preciso ressaltar que embora a Itália tenha concluído sua unificação em 1871, o Trento seguia sob domínio austro-húngaro — foi anexado à Itália apenas em 1920.
“Não há muitas informações específicas sobre o navio La Sofia. O que se sabe é que partiu do porto de Gênova e desembarcou direto no porto de Vitória”, comenta a antropóloga. “De um modo geral, grande parte dos imigrantes viajava de terceira classe, que não era muito favorável. Fazia muito calor e eram lugares propícios para propagação de doenças diversas”.
Segundo a socióloga e historiadora Vania Herédia, professora na Universidade de Caxias do Sul (RS), as viagens de imigrantes da época se destacavam “pela precariedade e pelo excesso de pessoas” a bordo, em navios que em geral apresentavam péssimas condições.
“Alimentação e higiene eram de baixa qualidade”, acrescenta o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor na Fundação Escola de Sociologia de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda de Marketing.
Chegando ao Espírito Santo, esses trabalhadores tiveram como primeira tarefa a lida nas terras de Tabacchi, principalmente derrubando jacarandás para exportação.
“As características da propriedade não eram como as prometidas e o alojamento tinha péssimas condições. Dessa forma, foi gerada a primeira revolta desses trabalhadores, e muitos acabaram por se dirigir para outras colônias em melhor situação”, diz Moreira.
“Eles não encontraram na colônia o que lhes havia sido prometido. Temos um registro [dos que foram para] do núcleo Timbuí, em Santa Teresa [hoje município]. As pessoas se estabeleceram lá, mas em condições difíceis e desfavoráveis”, afirma a historiadora Terciane Luchese, professora na Universidade de Caxias do Sul.
“A imigração para o Espírito Santo foi majoritariamente para núcleos coloniais”, descreve o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista. “O trabalho realizado consistiu, inicialmente, na abertura de áreas para cultivo, com a exploração de madeira, pequenas criações e o plantio de gêneros de abastecimento e alimentos. Embora tímida, a cafeicultura absorveu contingentes de trabalhadores estrangeiros ali também”.
Contexto histórico com muitas nuances
A imigração italiana ao Brasil responde a um contexto histórico cheio de nuances. Primeiro, havia um interesse do governo local — desde os tempos de colônia — em promover o povoamento do território.
“Existia por parte do governo português antes da Indepêndencia e, depois, por parte do governo imperial, uma intenção de ocupação do território, muito extenso”, ressalta Herédia. “Existe então um projeto de colonização”.
Mais tarde, passou a ser preciso resolver o problema da mão de obra, com a sucessão de leis restringindo o uso de escravizados africanos, culminando com a abolição em 1888.
Em 1867, o Ministério da Agricultura criou uma legislação específica direcionada à questão dos trabalhadores estrangeiros. “Ficou estabelecido como os imigrantes teriam acesso às terras, que teriam fornecimento de sementes e ferramentas, que teriam condições minimamente possíveis de sobrevivência”, pontua Luchese. “Há também a menção de que seria providenciada a construção de casas, mas isso não aconteceu”.
Os italianos que chegavam ao Brasil vinham fugindo da miséria. “Com o advento da unificação italiana e a expansão capitalista, em algumas regiões a sobrevivência havia se tornado difícil, provocando a decisão de migrar”, acrescenta a historiadora. “O sonho da possibilidade de acesso à terra e a oportunidade de ter uma vida melhor, com fartura de alimentos e posses [estimulou a vinda]”.
Boa parte dos que vieram para o Brasil já tinha experiência com trabalho na lavoura. “Muitos eram assalariados rurais, agricultores. E devido à crise agrária que a Itália enfrentava tiveram dificuldade em permanecer por lá”, diz Herédia.
Ela ressalta que com a unificação recente, boa parte dos imigrantes nem sequer se considerava italiano — a identidade era mais considerando a região de procedência.
Martinez avalia que essa atração de italianos ao Brasil “foi bem-sucedida” porque havia “um excedente populacional ocioso” na península itálica, que “perdera os vínculos tradicionais com a terra e o trabalho agrícola, agravando a desestruturação social e econômica acelerada pelas guerras de unificação do Estado nacional”.
O historiador pontua que este contingente abasteceu demandas em diferentes pontos do Brasil, com destaque para o estado de São Paulo. “O destino era o trabalho na terra, própria ou alheia, mas na composição das ocupações, neste momento, foram absorvidos muitos artesãos urbanos e rurais, comerciantes e jornaleiros, como eram chamados os diaristas prestadores de serviços variados”, explica.
Na comparação com o escravizado africano, o trabalhador europeu costumava ser visto como “mais qualificado”, conforme conta o historiador Wesley Santana, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Mesmo que viessem para trabalhar com cacau e muitos nunca tivessem nem visto cacau”, comenta ele, destacando que a grande maioria acabou atuando na produção de café.
Ramirez frisa que tudo foi “muito lucrativo” para os proprietários rurais, já que o imigrante chegava ao Brasil já endividado e precisava trabalhar muito para conseguir pagar os custos da viagem, ao mesmo tempo em que tinha de arcar com moradia, alimentação e vestuário.
Comemoração na Itália
Os 150 anos do marco inicial da imigração italiana no Brasil será celebrado na Itália. Na sede da Embaixada do Brasil em Roma, haverá uma palestra, na terça-feira (20/02), sobre a influência da gastronomia italiana nos hábitos brasileiros e, na quarta, um jantar especial para 100 convidados, entre italianos e brasileiros.
O embaixador brasileiro Renato Mosca de Souza diz que outros eventos virão no decorrer do ano. “Brasil e Itália compartilham fortes laços históricos, políticos, econômicos e científicos-culturais”, destaca. Faz parte desse conjunto, a participação brasileira na 60ª Bienal de Arte de Veneza: o brasileiro Adriano Pedrosa será o primeiro curador da América Latina no importante espaço.
Souza conta ainda que vem empreendendo “esforço especial” para levar a Roma, em breve, uma mostra dos painéis Guerra e Paz, do brasileiro Candido Portinari (1903-1962), filho de imigrantes italianos.
“No plano político, temos ainda a expectativa de troca de visitas de alto nível que impulsionarão as relações bilaterais”, afirma o embaixador.
O presidente italiano, Sergio Mattarella, manifestou recentemente intenção de visitar o Brasil. A primeira-ministra, Giorgia Meloni, deve ir ao país em novembro. Já o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, é esperado na Itália neste ano por conta da presidência italiana do G7.