Em 4 de fevereiro de 1871 nascia um filho de alfaiate que, numa sociedade ainda extremamente elitista, chegaria a ser presidente. Sua história lembra a importância, mas também a fragilidade, da democracia.No fim do ano 1918, a Alemanha se encontrava numa encruzilhada. A derrota na Primeira Guerra Mundial estava selada, o imperador Guilherme 2º fugira para a Holanda em meio à Revolução de Novembro, iniciada como um motim de marinheiros. Grande parte da população passava fome, soldados traumatizados e consumidos pela guerra procuravam desesperadamente seu lugar num mundo em ruínas.

Nesses caóticos tempos de reviravolta, o filho de um simples mestre-alfaiate ajudaria a definir os destinos da política alemã: Friedrich Ebert, nascido em 4 de fevereiro de 1871 em Heidelberg, como sétimo de nove irmãos, estava fadado a realizar de forma admirável o sonho da ascensão social.

Depois do aprendizado e dos anos de viagens como seleiro formado, assim como de uma fase como estalajadeiro, graças à sua diligência, talento organizacional e senso de dever, ele alcançou o posto de presidente do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD).

Unidade a todo custo

Desde novembro de 1918, Ebert integrava a liderança do assim chamado “governo revolucionário”, uma coalizão entre o SPD e os mais radicais Social-Democratas Independentes (USPD). Também ele estava castigado pela guerra: de suas cinco crianças, dois filhos haviam sido mortos. Agora o social-democrata sem filiação religiosa apoiava uma mudança de curso fundamental em seu país, de monarquia autoritária para república democrática.

Primeiro era preciso introduzir eleições democráticas. Além disso, o governo revolucionário se via diante do enorme desafio de erguer um país economicamente destroçado, cuja maior parte da população não aceitava a derrota bélica, aferrando-se à suposta grandeza passada. Uma sociedade que tinha que se reinventar em meio ao sofrimento, a fim de ter um futuro.

Ebert era o homem certo, na hora e lugar certos. “Hoje ele é considerado, com razão, um pioneiro da democracia, que assumiu a responsabilidade numa das mais complexas situações problemáticas da história alemã”, avalia o historiador Peter Beule, da Fundação Friedrich Ebert. Graças a sua capacidade encontrar o consenso, conseguiu contornar a maioria dos precipícios políticos no caos do pós-guerra.

Segundo Walter Mühlhausen, diretor executivo do Memorial Walter Mühlhausen, em Heidelberg, “isso era algo novo na política alemã”. Numa época em que os partidos começaram a também arcar com responsabilidades governamentais, Ebert foi quem “sempre insistiu na unidade, a serviço da causa”.

Contudo a esquerda radical o declarou como inimigo. Uma vez que Ebert colaborava com as velhas elites militares e burocráticas para o estabelecimento da democracia, acusavam-no de trair o movimento operário. A tensão crescia.

Comunistas radicais, socialistas e a marxista Liga Spartacus se mobilizaram para derrubar o governo em 5 de janeiro de 1919, em Berlim, visando impedir a adoção da democracia parlamentar, contra a maioria dos alemães. Apenas poucos dias antes do primeiro pleito democrático, a guerra civil ameaçava.

Ebert mandou reprimir o Levante Espartaquista. Durante a uma semana de batalhas de rua, derramou-se muito sangue. O governo mobilizou os grupos paramilitares Freikorps, formados por ex-soldados do front e voluntários, os quais matavam e torturavam. Os dois fundadores do Partido Comunista da Alemanha (KPD), Karl Liebknecht e Rosa Luxemburg, foram assassinados pouco após a revolta ser esmagada.

“Fabricante de selas perdido no trono”

No entanto, em 19 de janeiro de 1919, a eleição do parlamento do Império Alemão pôde se realizar. Milhões de mulheres votavam pela primeira vez, reinava liberdade de opinião e de imprensa.

“O povo alemão é livre, permanece livre e se autogovernará daqui em diante. Essa liberdade é o único consolo que restou ao povo alemão, o único ponto a partir do qual ele conseguirá se erguer do pântano de sangue da guerra e da derrota”, declarava Friedrich Ebert na inauguração da Assembleia Nacional, em 6 de fevereiro do 1919, em Weimar. Cinco dias mais tarde, era eleito presidente do Reich.

Ebert se considerava servidor de todos os alemães, e, com sua política voltada ao consenso, guiou a jovem República de Weimar através de numerosas crises. As reparações de guerra, estipuladas pelos vencedores aliados no Tratado de Versalhes, sobrecarregavam a economia. Esquerdistas e direitistas radicais empreendiam tentativas de golpe. Como ele era o representante de uma república que repudiavam, os nacionalistas de direita lançaram sobre Ebert uma campanha de incitação e difamação.

Outras ressalvas também entravam em consideração: “Para uma sociedade que ainda sentia saudades do Império, era um descalabro ter um social-democrata como líder estatal, um seleiro, um filho de alfaiate de Heidelberg. 'Um fabricante de selas perdido no trono', é como o chamavam”, descreve o biógrafo Walter Mühlhausen. O presidente do Reich se defendeu por meios jurídicos, abrindo mais de 200 processos.

Aposta na ascensão social através da educação

Apesar de todas as hostilidades, Ebert permaneceu sendo um pilar de estabilidade da república, uma garantia de segurança, liberdade e ordem. Em seus seis anos como presidente, entram e saem nove chefes de governo e 12 gabinetes.

Sua atenção estava sempre voltada para a classe operária e os socialmente desfavorecidos. Como social-democrata, sempre associara a noção de democracia e Estado de direto à ideia da emancipação social, explica o historiador Beule: “E isso também significava que a democracia tinha que criar as condições materiais e práticas para que todos, independente de sua situação social, pudessem defender os próprios interesses e participar da vida política.”

Sendo próprio de origens extremamente humildes, tendo adquirido por esforços próprios as bases educacionais para suas ambições políticas, Ebert era atraído pela ideia de criar uma fundação para, através do ensino, possibilitar a ascensão aos filhos do operariado. “O acesso justo às chances de formação, como pré-condição da igualdade de chances na sociedade, está associado de modo muito especial ao nome de Friedrich Ebert”, observa Beule.

A vulnerabilidade da democracia

Em 28 de fevereiro de 1925, o líder social-democrata morria aos apenas 54 anos. Seu desaparecimento prematuro deu fim à fase de relativa estabilidade na Alemanha entre guerras, começa a lenta morte da democracia de Weimar. Em 1933 tomaria o poder o homem que destruirá não só a obra de vida de Ebert: Adolf Hitler.

Hoje, 150 anos após o nascimento de Friedrich Ebert, a Alemanha é uma democracia estabelecida há décadas. Mas o tom se embrutece: a populista de direita Alternativa para a Alemanha (AfD) testa regularmente os limites do dizível. E uma minoria – a rigor, minúscula – de teóricos de conspiração incita cada vez mais cidadãos através das redes sociais.

É difícil traçar paralelos históricos: o que foi ontem, não precisa retornar hoje. Contudo é possível aprender com a história. Por isso, Walter Mühlhausen adverte: “Acho que os tempos recentes nos demonstraram mais uma vez que a democracia é vulnerável, não é algo que tenha status de eterno.”

A história da República de Weimar provou que a democracia tem que ser diariamente vivenciada, vivida e defendida, prossegue o biógrafo de Ebert. Por isso, “temos que defender esse sistema, agora, hoje e no futuro”. Pois se só há uns poucos democratas, a democracia “corre o perigo de ir parar no abismo da história”.