Misto de autobiografia e manifesto antissemita, “Mein Kampf” foi lançado em 18 de julho de 1925. Livro que antecipava planos genocidas foi inicialmente fracasso de vendas, mas depois transformou Hitler em milionário.Oitenta anos após a sua morte, Adolf Hitler continua presente, ao menos na internet. Quem digitar “Hitler” numa busca nas redes sociais encontrará resultados em apenas alguns segundos. Fotos do líder da Alemanha nazista, memes, suásticas e slogans como Heil Hitler circulam no mundo digital.

E um usuário não terá dificuldade de encontrar edições online do manifesto político do líder nazista: o livro Minha Luta (Mein Kampf), que foi originalmente lançado há exatamente cem anos na Alemanha.

Décadas depois da derrocada do nazismo, a obra ainda costuma ser chamada de “o livro mais perigoso do mundo” e suscitar discussões entre historiadores sobre como lidar com seu conteúdo e disseminação.

Manifesto antissemita

Misto de autobiografia e manifesto político, Minha Luta foi usado por Hitler para expor sua visão de mundo fanática, seu antissemitismo brutal e seu desprezo pela democracia e pela diversidade social. No texto, os alemães são descritos como um povo injustiçado pela derrota na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e ao mesmo tempo como uma raça superior.

Os judeus, por sua vez, são descritos no livro como inimigos mortais dos alemães e Hitler também prega a imposição de leis raciais contra deficientes. Vários historiadores apontam que obra já antecipava as intenções genocidas de Hitler que culminaram no Holocausto e na guerra de extermínio lançada no leste europeu.

No livro, Hitler ainda argumentou que a Alemanha precisava expandir seu “espaço vital” (Lebensraum), ou seja, conquistar território da Europa Oriental às custas de milhões de eslavos.

“O tema luta já está no título – na verdade, todo o racismo já vem a reboque”, explica o historiador austríaco Othmar Plöckinger em entrevista à DW. “Isso significa que o mais forte se impõe, a ‘raça mais forte’ se impõe. Mas também no nível individual, na luta por cargos e funções, quem se impõe é aquele com a vontade mais forte, o mais inescrupuloso; aquele que, de um modo geral, é da ‘melhor raça’ ou tem melhores habilidades.”

Plöckinger é um dos maiores especialistas no assunto e coeditou uma das edições mais esclarecedoras desse manifesto: a versão comentada de Mein Kampf, publicada em 2016. Em dois volumes que somam 2 mil páginas, historiadores alemães e austríacos analisaram e classificaram os pensamentos e o linguajar de Hitler, palavra por palavra. À época, a obra comentada entrou para a lista de mais vendidas na Alemanha, mas também provocou protestos e pedidos para que o projeto fosse cancelado.

Livro tornou Hitler um milionário

Quando foi originalmente publicado, em 18 de julho de 1925, com uma tiragem de 10 mil exemplares, o livro não foi inicialmente um fenômeno editorial. Hitler havia produzido a primeira parte da obra em 1924, quando cumpria pena numa prisão no estado alemão da Baviera na esteira de uma tentativa fracassada de golpe, o Putsch de Munique, também conhecido como Putsch da Cervejaria.

Originalmente, Hitler queria chamar a obra de Quatros anos e meio de luta contra mentiras, estupidez e covardia, mas um editor ligado ao movimento nazista sugeriu um título mais simples e comercial: Minha Luta.

Em 1926, foi publicado o segundo tomo da obra. Em 1930, uma edição única de 780 páginas, acabaria se tornando a versão padrão.

Quando Minha Luta foi lançado, Hitler tinha 36 anos e o movimento nazista ainda era pequeno e tinha pouca influência política na Alemanha e na Áustria. E o livro ainda enfrentava a concorrência de outras obras nacionalistas no mercado editorial. Nesse cenário, o livro só vendeu entre pessoas que já abraçavam o nazismo.

Mein Kampf é considerado difícil de ler e não era muito original – seu conteúdo foi uma decepção até mesmo para muitos de seus apoiadores, explica o historiador Plöckinger.

“Há essa passagem famosa do Deutsche Zeitung [jornal nacionalista ultraconservador e antissemita] que irritou Hitler profundamente. Ela afirma: ‘Estamos há 40 anos numa luta defensiva nacionalista e aí aparece um jovem golpista [Hitler] que quer nos explicar o que é pensamento político!'”.

No entanto, no final da década de 1920, o Partido Nazista recebeu um impulso com a deterioração da situação econômica e política da Alemanha na esteira do Crash de 1929. Com o partido ganhando cada vez mais influência política, as vendas de Minha Luta começaram a subir para a casa das centenas de milhares de exemplares. Em 1933, quando Hitler ascendeu ao poder na Alemanha, as vendas explodiram e alcançaram milhões, enriquecendo o líder nazista com o pagamento de royalties.

Até 1945, o ano derrocada da Alemanha nazista, a obra havia sido traduzida para 18 línguas e vendido mais de 12 milhões de cópias.

Tática para impedir republicação na Alemanha após a 2° Guerra

Na Alemanha, o livro de Hitler nunca foi estritamente proibido. Após a morte de Hitler em 1945, os direitos autorais da obra passaram a ser controlados pelo estado alemão da Baviera, já que o ditador não tinha deixado herdeiros e sua última residência registrada havia sido em Munique. Sem uma proibição formal em vigor, o governo bávaro usou nas décadas seguintes seu poder de veto para barrar reedições da obra na então Alemanha Ocidental.

Na Alemanha Oriental comunista também não vigorou uma proibição formal, mas as editoras estatais evitaram republicar a obra. Já na terra natal de Hitler, a Áustria, que fez parte do império nazista entre 1938 e 1945, a obra foi completamente banida e até mesmo a posse de edições antigas passou a ser considerada ilegal após 1947.

Os bávaros também agiram para tentar vetar novas edições no exterior, enviando notificações, mas nem sempre com sucesso.

Os direitos exclusivos do governo bávaro expiraram em 2015, 70 anos após a morte de Hitler, levando a obra a entrar em domínio público na Alemanha e no exterior.

No entanto, hoje em dia na Alemanha vigoram restrições à produção, comercialização e promoção de edições que não ofereçam a devida contextualização do conteúdo. Apenas edições críticas, como a de 2016 com o apoio de historiadores, podem ser lançadas sem problemas.

Já vender ou possuir cópias antigas editadas na era nazista, porém, não é passível de punição – desde que eventuais suásticas na capa do livro não sejam exibidas em público. Não é incomum encontrar edições antigas em sebos alemães ou sites de antiguidades. em portais online, os preços de edições alemãs pré-1945 chegam a custar cerca de 250 euros. Algumas, autografadas por Hitler, já alcançaram a marca de dezenas de milhares de euros em leilões.

História das edições brasileiras de Mein Kampf

A primeira edição brasileira de Minha Luta foi publicada em 1934, pela editora Globo de Porto Alegre, com tradução do major cearense Júlio de Matos Ibiapina. Há versões conflitantes de como essa edição foi negociada e não se sabe a porcentagem de royalties enviada para Hitler.

A primeira impressão também tinha uma curiosidade, a gaúcha Globo divulgou na orelha do livro outros títulos publicados pela editora. A ação de marketing provocou protestos da embaixada da Alemanha nazista no Brasil, já que alguns dos títulos anunciados eram de autores judeus.

A obra teve várias sete novas edições nos anos seguintes, até ser proibida pelo regime de Getúlio Vargas em 1942, ano em que o Brasil declarou guerra à Alemanha nazista. Posteriormente, cópias foram apreendidas e destruídas pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo. Mas vários exemplares dessa leva ainda existem no Brasil.

A segunda edição brasileira apareceu em 1962, pela editora Mestre Jou, mas foi retirada de catálogo meses depois, por determinação da Justiça. Nos anos 1970, o regime militar incluiu Minha Luta numa relação de obras proibidas no Brasil, ao lado de livros de autores comunistas.

Nos anos 1980 e 1990, com o fim da censura, a obra voltou a ser publicada de maneira clandestina por pequenas editoras, sem aval do governo bávaro, e usando a mesma tradução de 1934. Entre as editoras estava a gaúcha Revisão, notória por publicar outros livros antissemitas e obras negacionistas do Holocausto, e cujo editor foi condenado por racismo pelo Supremo em 2000.

Em 2001, a Centauro Editora lançou uma nova edição que permaneceu por anos no estoque de grandes redes de livrarias brasileiras até o governo da Baviera mandar notificações na segunda metade dos anos 2000.

No Brasil, não existe uma lei nacional para banir a publicação e venda de Minha Luta, mas há leis municipais nesse sentido no Rio de Janeiro e Porto Alegre. Mas grupos de defesa de minorias costumam evocar a legislação contra o racismo e apologia ao nazismo para ingressar com ações para barrar reedições ou a venda do livro em plataformas de comércio eletrônico.

Em 2015, quando os direitos expiraram, houve uma corrida entre três editoras para relançar a obra. Uma delas, a Edipro acabou desistindo após má repercussão. Já uma edição da Geração Editorial, que teria notas e comentários de especialistas, foi barrada pela Justiça do Rio. Apenas a Centauro, já veterana na publicação da obra, prosseguiu com uma nova edição. Em março de 2025, os donos da editora foram condenados pela Justiça do Rio por racismo pela venda de outro livro notoriamente antissemita: Os Protocolos dos Sábios do Sião, uma falsificação produzida na Rússia no início do século 20 que influenciou Hitler na elaboração de Minha Luta.

Colaboraram Alexandre Schossler e Rayanne Azevedo.