Em entrevista à DW, diretora do Brics Policy Center fala sobre as diferenças e os interesses que unem regimes autoritários e antiocidentais como China e Rússia às democracias de Brasil, Índia e África do Sul no grupo.Neste ano, o Brics ganhou quatro novos membros. O grupo com Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul passou a contar com a companhia de Emirados Árabes Unidos, Irã, Egito e Etiópia, e passou a se chamar Brics+.

O debate sobre a ampliação foi acompanhado de receio de que ela enfraqueceria o protagonismo dos membros menos poderosos e sobre qual seria o impacto na linha política do grupo, que reúne tanto países com um discurso antiocidental (China e Rússia) como democracias não-alinhadas (Brasil, Índia e África do Sul).

“O Brasil sempre foi historicamente um defensor da democratização, da ampliação do Conselho de Segurança [da ONU]. Nesse sentido, ser contra uma ampliação do Brics seria uma contradição”, diz à DW Marta Fernández, diretora do Brics Policy Center (Centro de Estudos e Pesquisas Brics), sediado no Rio de Janeiro.

Ela esteve em Berlim participando da conferência Global Solutions Summit, que reúne anualmente na capital alemã representantes de organizações internacionais e da sociedade civil global para discutir soluções para o multilateralismo sustentável e propostas a serem encaminhadas ao G20, grupo presidido este ano pelo Brasil e cuja próxima cúpula acontece em novembro no Rio de Janeiro.

Professora associada do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio, Fernández destaca que, após momento de indecisão, Brasília aprovou a ampliação porque, caso contrário, arriscaria cair em contradição em relação ao discurso do governo de Luiz Inácio Lula da Silva favorável a um mundo multipolar e à democratização do sistema internacional.

Ela fala também sobre as diferenças de abordagens entre o governo Jair Bolsonaro e a gestão Lula dentro do Brics. E pondera que, apesar do contraste entre seus membros, o bloco continua tendo metas comuns, como a reforma das instituições financeiras internacionais.

DW: Qual é o atual papel do Brasil no Brics?

Marta Fernández: O Brasil vem considerando, agora no governo Lula, o Brics como uma importante plataforma para inserção do Brasil no sistema internacional. Isso é de enorme importância, porque está alinhado com a política externa de Lula de defesa de uma ordem multipolar e da democratização do sistema financeiro internacional.

O que mudou em relação à atuação do Brasil no Brics do governo de Bolsonaro para a gestão Lula?

O Bolsonaro, em grande medida, esteve à frente do Brics durante o período da pandemia. Ele não estava muito alinhado com essa missão do Brics de democratização do processo decisório internacional. Mas ele, diferentemente do Javier Milei, presidente da Argentina, por exemplo [que decidiu não ficar no bloco], continuou no Brics e, em grande medida, adotou uma visão mais low profile, mais pragmática. Porque nosso setor de agronegócio, que continua sendo muito importante como uma força política de apoio ao Bolsonaro, tem relações intensas com a China. O agronegócio exporta mais de 30% para China e não valia a pena uma saída do Brasil do Brics.

Então ele permaneceu, mas não com a mesma agenda política que vem sendo avançada por Lula. Que é uma agenda mais política, no sentido de contribuir para uma ordem internacional mais equitativa e sobretudo reforçando a questão da reforma das instituições financeiras internacionais e do próprio Conselho de Segurança da ONU. Na cúpula do Brics da África do Sul, no ano passado, isso constava na declaração final do encontro.

Foram citadas no documento a reforma do Conselho de Segurança – e acredito que isso foi uma vitória do Brasil – e a necessidade de reforma das instituições financeiras internacionais, que é um dos pontos centrais na agenda para o próprio G20, que este ano está sob a presidência brasileira.

Quais as diferenças mais marcantes entre o Brics e o G20, grupo das 20 nações mais industrializadas do globo?

O Brics é um fórum de países em desenvolvimento e de países emergentes. Ele foi criado um pouco como uma alternativa. Já o G20 é um fórum que tenta fazer essa ponte entre o G7, os países do Norte Global, e os países em desenvolvimento. Em grande medida, o G20 nasce muito impulsionado pela crise financeira de 2008 e reconhece que é necessária a participação dessas potências emergentes na regulação da governança global, sobretudo da governança econômica global.

O Brics seria mais uma tentativa de se abrir uma multipolaridade global ou está mais para um fórum anti-Ocidente?

O Brics não tem um discurso único. Existe uma disputa de discursos dentro do Brics. Agora com a guerra da Ucrânia isso se revelou mais acentuado. Existem algumas potências com discurso mais antiocidental, no caso da própria Rússia e, de algum modo China. E outros países, como é o caso do Brasil, da Índia e da África do Sul, que têm mais uma política de não alinhamento, de um não alinhamento ativo.

Mas, se a gente for pensar, todos os países, e a própria China, estão inseridos na ordem global liberal. O que se demanda é uma reforma dessas instituições financeiras internacionais, de forma que elas possam atender às necessidades de financiamento dos países do Sul Global.

Na medida em que elas não se reformam, esses países vêm criando alternativas. É o caso do próprio Banco do Brics, o NDB, que funciona oferecendo investimentos em projetos de infraestrutura, de desenvolvimento sustentável, a partir de uma lógica das não condicionalidades. Ou seja, não se impõem as mesmas condicionalidades que as instituições chamadas instituições de Bretton Woods.

Até que ponto a ampliação do Brics definida no ano passado pode concorrer para um enfraquecimento da posição do Brasil dentro do bloco?

Esse foi um grande debate. A ampliação do Brics pegou muita gente de surpresa, porque o próprio Brasil não tinha muita certeza se essa ampliação ia se materializar. E havia uma disputa burocrática no Brasil, com Lula e seu assessor especial para assuntos internacionais, Celso Amorim, defendendo uma ampliação, enquanto a diplomacia brasileira estava hesitante e cautelosa, porque se acreditava que um Brics ampliado demais poderia resultar num novo G77 e, de alguma forma, reduzir a influência e o protagonismo do Brasil dentro do Brics.

Só que esse discurso de que um Brics ampliado poderia dificultar um consenso e a coordenação política sempre foi o discurso adotado por quem é contra a ampliação do Conselho de Segurança. O que se diz é que se com cinco membros permanentes já é tão difícil o funcionamento, por eles se vetarem mutuamente, então com mais seis, sete ou oito isso dificultaria o consenso. E o Brasil sempre foi historicamente um defensor da democratização, da ampliação do Conselho de Segurança.

Nesse sentido, o Brasil ser contra uma ampliação do Brics, ele que se coloca como aquele que está avançando o processo de democratização do sistema internacional, seria uma contradição. Então no final das contas prevaleceu a ampliação.

O Brasil também foi favorável à integração da Argentina na época. O [então presidente] Alberto Fernández estava em processo eleitoral, e o Milei, uma vez eleito, não entra no Brics, em grande medida devido à aliança da Argentina neste momento com os Estados Unidos e Israel.