01/03/2009 - 0:00
Passados 27 anos do conflito que mobilizou mais de 14 mil soldados argentinos, a maioria jovens de 18 e 19 anos, a luta ainda não terminou para esses veteranos de guerra. A rendição doeu menos que a facada nas costas que a sociedade lhes impôs. “Primeiro fomos usados para salvar a ditadura militar, depois nos usaram para afastar os militares e, por fim, o que mais dói: a população nos deu um chega para lá”, diz Ulises Monzón, ex-combatente do 5º Batalhão de Infantaria, na época com 18 anos.
A Guerra das Malvinas foi a última tentativa da ditadura mais sanguinolenta da Argentina de permanecer no poder. Desde 1976, vinha engrossando a lista de opositores ao regime militar, e em 1982 o ditador Leopoldo Galtieri quis retomar à força as Ilhas Falkland. Situado a 550 quilômetros do litoral da Patagônia, o território estava sob a ocupação britânica desde o século 19. A ordem foi dada às pressas, dois dias depois que 50 mil pessoas haviam ido à Praça de Maio, na frente da Casa Rosada, a sede do governo, para pedir o fim da ditadura.
De início funcionou. O que parecia impossível para os argentinos aconteceu. Dos sindicatos aos partidos de oposição, o povo se uniu e apoiou com fervor patriótico a invasão. No dia seguinte a ela, 100 mil pessoas voltavam à Casa Rosada para dar vivas e ovacionar o general Galtieri. O portenho Arturo Bozzano, 81 anos, foi um deles, e define sua participação nesse episódio: “Depois de tantos problemas econômicos, golpes políticos e crises que há décadas castigavam o nosso país, acreditamos que, se reconquistássemos as Malvinas, estaríamos com a nossa alma lavada. Quando perdemos a guerra, não quis saber de mais nada, nem dos ex-combatentes.”
A Guerra das Malvinas foi a última
tentativa da ditadura mais sanguinolenta
da Argentina de permanecer no poder
Campo minado ao redor das praias de Port Stanley.
Foi assim que a Argentina esqueceu os seus heróis. Eles pediam pão, trabalho e seguro-saúde, mas o país lhes virou as costas. Abandonados à própria sorte, os veteranos também enfrentaram a falta de assistência psicológica para os traumas da guerra. Do total, 90% nunca tiveram esse tipo de assistência, 40% sofrem de estresse pós-traumático e 36% apresentam deficiências físicas.
Um helicóptero britânico abatido pelos argentinos, perto de Port Stanley.
Os ex-soldados argentinos passaram anos tentando reencontrar o mundo ao qual antes pertenciam. Esquecidos, muitos dos ex-combatentes preferiram o suicídio a encarar o cotidiano de miséria e os fantasmas da guerra. Desde o final dela, em 14 de junho de 1982, quase 350 deles se suicidaram, um número maior do que os 265 que morreram nos combates terrestres – ao todo, o conflito deixou 649 mortos do lado argentino e 258 do lado britânico, segundo os dados divulgados oficialmente.
O canhão posicionado, em Gypsy Cove
Numa época em que os adolescentes ainda estão descobrindo o mundo, os jovens pracinhas foram lançados a experiências-limite que ninguém em sã consciência escolhe viver. Naqueles dias não havia heróis nem vilões. Apenas seres humanos, frágeis, com medo, com frio, tentando dormir à noite imaginando que no dia seguinte poderiam estar mortos.
Conversar com os ex-combatentes e ouvir as histórias sobre o que eles passaram durante e após o conflito é uma experiência que testa emoções e sentimentos. Não apenas por seus relatos de tristezas e agruras, mas também pelo poder de recuperação, de reinventar a vida e suas relações. Para resgatar sua cidadania e legitimar seus direitos, muitos se uniram em associações, criando entre si um universo profundamente humano. Desses movimentos sociais, retiraram a força e a capacidade para se reerguer e evoluir.
O Memorial da Guerra das Malvinas, em Port Stanley
Naqueles dias não havia heróis nem vilões.
Apenas seres humanos, frágeis, com medo,
com frio, tentando dormir à noite imaginando
que no dia seguinte poderiam estar mortos
Dia 4 de Abril de 1982. Armando Scevola acabava de completar 19 anos. Uma semana antes de dar baixa do serviço militar, embarcou num avião, sem saber para onde ia. Quarenta e cinco minutos depois, ao aterrissar, escutou alguém falar: “Muchachos, aqui são as Malvinas. Vamos continuar com a ocupação”, lembra Scevola, ainda demonstrando tensão no semblante. Dois dias antes, a Argentina, num ataque-relâmpago, tinha invadido as ilhas.
Municiador de uma bateria antiaérea, Scevola se emociona ao dizer que o pior de tudo foi saber que havia matado alguém: sua metralhadora abateu duas aeronaves inglesas. Ele acusa os militares argentinos que o fizeram regressar das ilhas quase às escondidas, e foram além: “Eles nos pediram para assinar uma declaração, sob juramento e ameaças até aos nossos familiares, em que nos comprometíamos a não contar o que tínhamos vivido”, reforça o ex-combatente e jornalista Edgardo Estebán, autor de um dos livros mais contundentes sobre a guerra: Malvinas – Diário de regresso.
Como Scevola, outro rapaz também foi enviado para lutar nas Malvinas sem sequer saber para onde estava indo. Quem conta é a historiadora Virginia Civetta, de Concepción del Uruguay: “Conheci um jovem que fazia parte da banda militar. Ele foi convocado um dia antes da invasão. Falou para a mãe que provavelmente iria para um lugar importante porque viajaria de avião. ‘Não posso levar o trombone velho. Terei de comprar um novo'”, disse entusiasmado.
O jovem foi e lutou. Na hora da rendição, vestiu a bandeira argentina como se fosse uma camiseta para não entregá-la aos ingleses. Regressou à Argentina, mas trouxe em sua bagagem pessoal um comportamento esquizofrênico – diariamente, esteja onde estiver, para e deixa tudo de lado e se põe a rezar, sempre às 18 horas em ponto, para agradecer pelo milagre de ter sobrevivido.
Por sua vez, Ovídio Rios Angel viveu uma situação diferente, porém não menos dramática. Na época do conflito ele tinha 31 anos e era timoneiro do Piedra Buena, um destróier que fazia escolta à distância do cruzador General Belgrano em mares austrais, fora da zona de guerra. No dia 2 de maio, às 16 horas, o Belgrano foi atingido por dois torpedos disparados pelo submarino nuclear HMS-Conqueror e foi a pique. “Estávamos lutando contra uma terrível tormenta, com ondas de mais de oito metros, quando recebemos a notícia do afundamento do cruzador.”
Ulises monzón e
Armando Scevola
“A ordem que recebemos, então, foi a de nos afastar o mais rápido possível daquela área, ao invés de nos aproximar e tentar resgatar os feridos”, prossegue ele. “Só retornamos ao local do naufrágio no dia seguinte, quando então resgatamos mais de 250 marinheiros que se espremiam nos botes salva-vidas. Muitos estavam feridos, queimados ou apresentando sinais de congelamento. As temperaturas naqueles dias eram inferiores a zero grau”, recorda Angel.
Dia 13 de Junho de 1982. Monte Tumbledown. Nas cercanias de Port Stanley, capital do arquipélago, milhares de pracinhas argentinos se preparavam para o que seria a pior e a mais sangrenta batalha da guerra. “A Argentina hoje está vivendo sua noite mais gloriosa.” Pelo rádio de pilha, o jovem Monzón ouvia a animada transmissão. Mas, ironicamente, a frase era do locutor esportivo José Maria Muñoz, que irradiava a primeira partida da seleção de seu país na Copa do Mundo daquele ano na Espanha.
A bandeira do 5º Batalhão de Infantaria
“Esse sombrio cenário mostra que os jovens combatentes em terra já haviam sido abandonados antes mesmo de a guerra terminar”, afirma Monzón. “Nós ali combatendo na batalha decisiva e Muñoz se referindo ao futebol. Para ele, nós já éramos, e a glória agora era a Copa. Foi a frase mais infeliz que já ouvi em minha vida. O pior é que ela às vezes volta. Martela minha cabeça mais que as bombas e os gritos que soavam ao meu lado”, acrescenta ele. Naquela noite a Argentina perdia sua partida de estreia para a Bélgica e, no dia seguinte, nas Malvinas, o país se rendia às forças britânicas.
A partir daí, começava para os ex-combatentes a outra batalha das Malvinas. Esta, uma guerra invisível contra as forças contrárias à vida. Sob a indiferença do Exército que os marginalizou e do pouco apoio da sociedade, Scevola, Monzón e Angel se uniram depois de alguns anos a outros ex-combatentes e formaram associações para reivindicar aos órgãos municipais, estaduais e federais seus direitos à pensão e à assistência médica. Direitos estes que somente seriam conquistados duas décadas após o conflito.
Da direita para a esquerda, os Ex-combatentes Juan Carlos Marin, Alberto Ramon, Rotela Ramos, Ovídio Angel, Alfredo Oscar Perez, Carlos Ruiz e Manuel Chávez, da Associação Civil de Combatentes das Malvinas, da Província de Misiones.
Muitos estavam feridos, queimados
ou apresentando sinais de congelamento.
As temperaturas naqueles dias
eram inferiores a zero grau
O interior do Museu das Malvinas Daniel Sistori, em Concepcion del Uruguay, na Província de Entre Rios.
Scevola e Monzón são da Província de Entre Rios, mas só se conheceram nos campos de batalha. “Na volta nos unimos muito. Ao lado de outros 72 companheiros, iniciamos um trabalho à força, sem nos darmos conta de que isso era uma terapia, para exigir nossos pedidos. Só depois de longo tempo é que conseguimos algumas vitórias. Mas muitos companheiros ficaram no caminho, caídos pelas drogas, pelo alcoolismo e pelos suicídios”, sintetiza Monzón.
Destroços de aeronave
Scevola ainda conserva tristeza no olhar e suas respostas vêm sempre acompanhadas de olhos marejados. “Deixei tudo de lado só para ajudar os amigos que estavam mal. Não quis aceitar que também não estava bem, mas chegou uma hora em que tive de ser medicado. Até hoje tomo remédios.” Contudo, quando o excombatente fala da mulher, o sorriso aparece. “O que mais me ajudou é que estava noivo quando parti para o serviço militar. Retornei e me casei com a mesma moça. Isso foi para mim muito importante, tanto quanto a associação que criamos.”
Capacete de um piloto argentino, abatido por um míssil.
A associação à qual Scevola se refere é hoje o Museu da Guerra das Malvinas, na cidade de Concepción del Uruguay. Leva o nome de Daniel Sirtori, ex-combatente que se suicidou em 1999, aos 39 anos. Na ocasião, deixou um filho, a esposa e uma carta para a sociedade que o desamparou.
Angel é da Província de Misiones. Ele e mais 70 ex-combatentes começaram a se reunir a partir de 1984. Não há casos de suicídio entre esse grupo. Talvez porque desde aquela época, todas as sextas, o local é ponto de encontro para jogar conversa fora e para um bom assado. Evitam falar das Malvinas. Foi nessas reuniões que conseguiram alinhavar os principais alvos para legitimar sua cidadania e resgatar a dignidade.
Mas são nas palavras de Lucas, 17 anos, filho de Monzón, que deslumbro o reconhecimento desses heróis esquecidos. “Meus colegas apenas sabiam dizer que as ‘Malvinas são argentinas’, mas não conheciam nada sobre o conflito. Agora, com o museu, eles vêm aqui conversar com os ex-combatentes e tanto se interessaram que estão fazendo um documentário com a participação dos veteranos”, se envaidece Lucas.
Glória, ainda que tardia.