Dois estudos feitos por pesquisadores brasileiros nos Estados Unidos tratam de efeitos pouco conhecidos associados a um estado de inatividade e baixo metabolismo adotado por alguns animais de clima temperado no período mais frio do ano, quando a disponibilidade de comida diminui: a hibernação. Um dos trabalhos sugere que os processos moleculares ligados à hibernação suspendem o envelhecimento biológico em uma espécie de marmota. O outro sinaliza que os machos de um tipo de esquilo iniciam sua maturação sexual também durante esse período.

A bióloga brasileira Gabriela Medeiros de Pinho é a primeira autora de um artigo publicado em março na revista científica Nature Ecology & Evolution em que estuda alterações químicas do DNA associadas ao envelhecimento da marmota-de-ventre-amarelo (Marmota flaviventer). Esse roedor, que pesa cerca de 5 quilos e vive em média cinco anos, habita áreas elevadas, acima dos 2 mil metros de altitude, do oeste norte-americano e do sudoeste canadense. Entre sete e oito meses no ano, a marmota hiberna em tocas debaixo da terra e deixa de se alimentar.

Ao lado de colegas da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), nos Estados Unidos, onde se doutorou no ano passado, Pinho analisou 149 amostras de sangue coletadas ao longo da vida de 73 fêmeas da espécie. Os pesquisadores não trabalharam com machos porque eles se dispersam de suas áreas natais, o que dificulta estimar sua idade cronológica. A população de marmotas estudada se encontra na Floresta Nacional de Gunnison, no Colorado, e é de vida livre.

“Nas fases de torpor do período de hibernação, as marmotas queimam 1 grama [g] de gordura por dia, quase nada, e praticamente todos os processos fisiológicos são desligados”, explica a bióloga, que agora trabalha na organização não governamental Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ). A fase de torpor é quando o animal reduz seu metabolismo ao mínimo e sua temperatura corporal pode chegar a 5 graus Celsius (5°C). Os batimentos cardíacos e a respiração tornam-se muito espaçados. O animal fica rígido e deitado, como se estivesse congelado.

Durante a hibernação, as marmotas alternam períodos prolongados de torpor, que costumam durar uma ou duas semanas, com breves fases de atividade (ou de alerta), que não ultrapassam 24 horas seguidas. O metabolismo desliga durante o torpor, mas funciona normalmente quando o animal está na fase ativa. “A soma de todas as fases de torpor da marmota equivale a 88% do período de hibernação. Em geral, animais que hibernam vivem mais do que seria esperado baseado no seu peso corporal. A indução em laboratório do estado de torpor em ratos, uma espécie que não hiberna na natureza, também aumenta sua sobrevida”, informa a bióloga.

Esquilo listrado começa processo de maturidade sexual durante sua primeira temporada de hibernação. Crédito: Greg Schechter/Wikimedia Commons

Mais testosterona

A hibernação é um processo que, por vezes, provoca consequências inesperadas nas espécies que adotam esse mecanismo de sobrevivência. Em um artigo publicado em março no periódico científico Current Biology, o bioquímico brasileiro Rafael Dai Pra, que faz doutorado na Universidade Yale, relata que o esquilo listrado (Ictidomys tridecemlineatus) começa o processo de maturação sexual durante sua primeira temporada de hibernação. Isso significa que, apesar de perder peso e passar por um estresse energético em meio aos rigores de um inverno sem comida, o jovem animal consegue se desenvolver a ponto de se tornar apto a iniciar sua vida reprodutiva.

Os pesquisadores reproduziram em laboratório por mais de seis meses as condições de hibernação enfrentadas na natureza pela espécie, que vive na parte setentrional da América do Norte. Um grupo de cerca de 50 filhotes foi alojado em tocas individuais, mantidos no escuro, sem comida e água, e a uma temperatura ambiente de 4°C. Uma série de parâmetros, inclusive cerebrais, foi medida durante o período da hibernação, mais especificamente nas fases de alerta (breves momentos que duram algo entre 24h e 48h).

“Constatamos que o chamado eixo reprodutivo do hipotálamo [estrutura cerebral] se torna ativo durante as fases de alerta e grupos de neurônios são ativados”, explica Dai Pra, primeiro autor do artigo. “Nesses intervalos de alerta, o animal sai do torpor, sua temperatura interna sobe de 4°C para 37°C, ocorre produção de hormônios, como testosterona, e os testículos começam a se desenvolver.” Nos intervalos de alerta, apesar de todas essas alterações, os animais não comem nem bebem água. Ao final do estudo, os meses de hibernação fizeram os esquilos perder cerca de 120 g, metade do seu peso usual.

Depois do estudo descritivo que associa hibernação e maturação sexual, o grupo de Yale quer investigar com mais detalhes os processos que ajudam a explicar esse fenômeno. Na natureza, os filhotes dessa espécie de esquilo, que atinge cerca de 30 centímetros de comprimento na fase adulta, costumam nascer entre os meses de março e abril, quando o frio mais severo no hemisfério norte ficou para trás. Em setembro, com o fim do verão, iniciam seus sete meses de hibernação. “Essa questão de entender o papel do cérebro na hibernação é um dos pontos mais interessantes da pesquisa”, afirma Dai Pra.

ARTIGOS CIENTÍFICOS

PINHO, G. M. et alHibernation slows epigenetic ageing in yellow-bellied marmotsNature Ecology & Evolution. On-line. 7 mar. 2022.

DAI PRA, R. el alGround squirrels initiate sexual maturation during hibernationCurrent Biology. On-line. 3 mar. 2022.

* Este artigo foi republicado do site Revista Pesquisa Fapesp sob uma licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o artigo original aqui.