Quase 150 anos após o fim oficial do tráfico de escravos em suas antigas colônias, o governo da Holanda pediu oficialmente desculpas nesta segunda-feira (19/12) pelo papel do país na escravidão e pelas suas consequências que ainda estão presentes nos dias atuais.

“Em nome do governo, peço desculpas pelas ações do Estado holandês no passado”, disse o primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, em Haia. “Nós só podemos chamar a escravidão de crime contra a humanidade e condená-la fortemente”, acrescentou.

“Durante séculos, o Estado holandês e seus representantes permitiram, estimularam e lucraram com a escravidão. É verdade que ninguém vivo hoje carrega a culpa pessoal pela escravidão. O Estado holandês, porém, é responsável pelo imenso sofrimento causado naqueles que foram escravizados e em seus descendentes”, destacou Rutte.

O pedido de desculpas histórico ocorre em meio a um reexame mais amplo do passado colonial do país, que inclui esforços para devolver arte saqueada e o combate ao racismo. Apesar do pedido, ativistas são céticos e afirmam que ação não é suficiente.

Papel holandês no tráfico transatlântico de escravos

Ao longo dos séculos, os holandeses compraram e enviaram cerca de 600 mil escravos da África no comércio transatlântico de escravos – cerca de 5% do total – levando-os para colônias caribenhas como Suriname e Curaçao, bem como outras colônias europeias nas Américas.

Os africanos escravizados também foram transferidos à força para as colônias holandesas no Oceano Índico, como a atual Indonésia, e os escravizados balineses ou javaneses foram transportados para a hoje África do Sul.

Muitos morreram na travessia. Para os que sobreviveram e para seus descendentes, a vida de árduo trabalho nas plantações foi brutal. Um dos casos mais violentos conhecido é o de Wally, um homem escravizado em uma plantação de açúcar do Suriname que participou de uma revolta em 1707 e cuja história foi apresentada em uma exposição no Rijksmuseum de Amsterdã no ano passado. Como punição por sua insubordinação, Wally teve sua carne arrancada com pinças em brasa e foi queimado vivo. Sua cabeça foi posteriormente exibida em uma estaca.

Em um sinal de mudança de tempos, no entanto, o governo holandês agora pediu desculpas por seu papel no tráfico de escravos. Mas nem todos os destinatários pretendidos estão dispostos a aceitá-lo.

Várias organizações do Suriname protestaram contra a falta de consulta à comunidade e a aparente pressa no pedido de desculpas. No dia 1º de julho, conhecido como Keti Koti Day, o Suriname comemora o aniversário de sua emancipação. O próximo ano marca 150 anos desde o fim de fato da escravidão holandesa lá, ou os 160 anos da abolição oficial pela Holanda, e teria sido uma data mais significativa, disseram ativistas.

Bilhões são necessários para reparações

Para Armand Zunder, presidente da Comissão Nacional de Reparação do Suriname, nem o pedido de desculpas sozinho e nem os planos relatados de dedicar 200 milhões de euros para aumentar a conscientização sobre a escravidão, além de 27 milhões de euros para a construção de um museu, são suficientes.

“Aquilo que foi destruído deve ser consertado. Nosso quadro de referência é de bilhões de euros e certamente não centenas de milhões de euros”, disse Zunder à imprensa local na semana passada.

Ele ecoou a posição da Comissão de Reparação do Caribe. O grupo de 15 países onde muitos foram escravizados publicou um plano de reparação de dez medidas, que inclui um pedido oficial de desculpas, mas também financiamento para história pública, saúde e alfabetização, bem como transferência de conhecimento.

Já na Holanda, grupos como a Fundação Ocan, que representa e defende a comunidade holandesa-caribenha, enfatizam que estão mais preocupados com o ocorrerá em termos de justiça reparadora do que com o pedido de desculpas em si.

“Racismo flagrante ou sutil, desemprego desproporcional, discriminação”, aponta o porta-voz da Fundação Ocan, Xavier Donker, como parte de um “legado persistente” da era colonial.

Um debate cada vez mais intenso na Holanda é a tradição do Zwarte Piet, ou Pedro Negro, no início de dezembro. É quando os holandeses pintam o rosto de preto e usam perucas encaracoladas para representar o assistente de São Nicolau nos desfiles, um costume ofensivo para muitos negros no país. Donker afirma que, quando essas questões levadas, muitos algemam que o movimento negro quer apenas atenção.

O pedido de desculpas vem um ano e meio depois que um relatório encomendado pelo governo o recomendou, bem como outras medidas para lidar com o racismo institucional. Em 2020, o primeiro-ministro chegou a rejeitar a ideia, alegando que ela causaria polarização social.

Uma pesquisa realizada no início deste ano pela emissora NOS mostrou que metade dos holandeses se opunha a um pedido de desculpas. No entanto, várias cidades holandesas – incluindo Amsterdã e, mais recentemente, Haia – já pediram desculpas por seu papel na escravidão, assim como o banco central holandês e o banco ABN AMRO.

Desculpas raramente se traduzem em reparações

Impulsionada em parte pelo movimento Black Lives Matter nos EUA, a pressão para que as ex-potências coloniais da Europa olhassem para as atrocidades do passado aumentou nos últimos anos.

Em 2020, o rei Philippe da Bélgica expressou “profundo pesar” pelas atrocidades cometidas durante o domínio colonial de seu país no Congo, em particular sob seu antecessor e parente, Leopoldo 2º, mas não chegou a pedir desculpas. A Alemanha pediu desculpas no ano passado pelo genocídio na Namíbia no início do século 20 e prometeu cerca de 1 bilhão de euros em ajuda ao desenvolvimento. No entanto, tais declarações raramente se traduzem em reparações reais.

Para Jennifer Tosch, fundadora da Black Heritage Tours Amsterdam, houve mudanças sociais positivas nos últimos anos, como mais reconhecimento em instituições públicas, que ela atribui a décadas de luta das comunidades de descendentes de escravos. Mas, para ela, ainda há um longo caminho a percorrer.

Há “muita injustiça social, desigualdade, lacunas na educação e na produção de riqueza, na linguagem”, enfatizou. “Se pararmos por aí e não houver nenhuma ação direta após esse pedido de desculpas, parecerá um símbolo ou gesto que não teve a intenção de produzir nenhuma mudança social”, avalia.