Entre os vários atrativos que Guadalajara, a sede dos Jogos Pan-Americanos de 2011, reserva aos visitantes, um deles concilia qualidades arquitetônicas, artísticas e sociais únicas no mundo: o Hospício Cabañas. Não à toa, desde 1967 esse complexo é Patrimônio Mundial da Unesco e ponto de parada obrigatória na segunda maior cidade mexicana.

O Hospício foi erguido no início do século 19 por ordem do então bispo de Guadalajara, Juan Ruiz de Cabañas, como uma Casa de Misericórdia, para prestar assistência e abrigo não apenas a órfãos, mas também a idosos, deficientes e doentes crônicos, numa época em que a cidade sofria o impacto de secas, inundações e geadas. A Coroa espanhola também autorizou o atendimento de familiares dos assistidos, dos filhos de pais incapazes de alimentá-los, dos peregrinos pobres e dos próprios operários da obra.

Um detalhe foi decisivo para a qualidade arquitetônica singular do Hospício. Antes de chegar a Guadalajara, o bispo Cabañas havia conhecido na Cidade do México o espanhol Manuel Tolsá, responsável por contribuições notáveis para a arquitetura mexicana. Tolsá elaborou o projeto do complexo, deixando a supervisão dos trabalhos a um pupilo, José Gutierrez. Foi ele quem cuidou da maior parte das obras (com exceção da capela) entre 1805 e 1810.

Nesse ano, irrompeu a Guerra da Independência mexicana, e os prédios ainda não concluídos tornaram-se quartel e estábulos, de início ocupados pelos rebeldes, depois por tropas monarquistas. O México só se libertou do domínio espanhol em 1821. Cabañas morreu em 1823 e o Hospício levou mais seis anos para ser inaugurado. A conclusão só ocorreu em 1845, quando, então, o complexo recebeu seu nome definitivo.

Com quase 23,5 mil metros quadrados de área, o Hospício está situado sobre um plano retangular, com 163 metros de comprimento e 145 metros de largura. Todas as construções (que, exceto a capela e a cozinha, são térreas, para facilitar a locomoção de doentes, idosos e crianças) se espalham em torno de 23 pátios. A maioria delas é arqueada em pelo menos dois lados. Chamam a atenção a relação harmoniosa entre os espaços abertos e os construídos, a simplicidade do traçado e as dimensões do complexo. A solução arquitetônica adotada por Tolsá é inédita, inspirada em conjuntos como o Mosteiro do Escorial, na Espanha, e o Hôtel des Invalides, em Paris.

 

Acima, O Homem de Fogo, mural de Clemente Orozco pintado no teto da capela. Na página ao lado, algumas das construções do complexo.

Em 1858, depois de escapar novamente de se tornar um quartel, o Hospício foi entregue às Irmãs de Caridade, e decidiu-se que todos os seus órfãos poderiam dali em diante portar o sobrenome Cabañas. Em 1872, moravam ali mais de 500 pessoas; naquele ano, porém, as freiras foram expulsas, e em 1880, sem apoio financeiro, o número de moradores caiu à metade. Três anos depois, o governo do estado de Jalisco (cuja capital é Guadalajara) passou a destinar verbas ao Hospício, e com isso o número de habitantes voltou a crescer – 442 em 1887, 672 em 1910.

O muralismo mexicano deu outra contribuição preciosa à mística do Hospício. Nos anos 1930, o governo de Jalisco contratou um dos mais famosos artistas do movimento, José Clemente Orozco, para fazer uma série de murais em edifícios públicos de Guadalajara, realizados entre 1936 e 1939. A capela do Hospício foi brindada com 53 dessas obras, inspiradas no caráter multiétnico da sociedade mexicana. Todas estão entre as mais importantes do autor, com destaque para a alegoria dos elementos O Homem de Fogo, que, pintada num teto curvo, a cerca de 30 metros do chão, é considerada uma das mais brilhantes soluções já encontradas para o problema de perspectiva.

Em 1980, o governo mexicano encerrou as atividades regulares do Hospício, transferindo todos os seus pacientes e atendidos para outras instituições. Três anos depois, reformado e transformado no Instituto Cultural Cabañas, o edifício passou a abrigar escolas de artes e artesanato, museu, sala de cinema e espaços para teatro, música e dança, além da sede da Secretaria de Cultura de Jalisco. Hoje, Cabañas é o principal polo cultural de Guadalajara e atrai turistas de todo o mundo.