01/02/2012 - 0:00
Duas guerras mundiais, campos de concentração, fábricas com trabalhadores em condições análogas à escravidão e outros aparatos do capitalismo global, independentemente das suas diferenças de qualifi cação, estão defi nindo acontecimentos do século 20 como eventos de uma história sombria. Também as vítimas das guerras anticoloniais e civis devem ser levadas em conta. Esse quadro sinistro é uma evidência do potencial destrutivo oculto sob o manto dos fi lósofos do Iluminismo, uma vez que seus discursos humanistas foram transformados em privilégio ideológico de apenas um certo tipo de ser humano e de um certo tipo de sociedade, nomeadamente aquela com valores da cultura ocidental.
A discrepância entre as promessas de humanismo e seu papel instrumental no colonialismo, no imperialismo e no tráfi co de escravos gerou uma crítica severa aos seus princípios c o n t r a d i – tórios, éticos e políticos, que chegou a um clímax na década de 1960. A desconstrução do humanismo como verdade universal incontestável intensificou a necessidade de reconfigurá- lo a partir da perspectiva “daqueles que só recentemente foram reconhecidos como seres humanos e de suas respectivas comunidades e culturas, muitas vezes exiladas, multilíngues e interculturais”, como escreveu Joan Anim-Addo em Towards a Post-Western Humanism.
* Asimina Karavanta é professora de literatura na Universidade de Atenas e coautora, ao lado de Nina Mogan, de Edward Said and Jacques Derrida: Reconstellating Humanism and the Global Hybrid (Cambridge Scholars Publishing, 2008).
O humanismo voltou à ordem do dia porque não é mais apenas o produto de monarquias e impérios europeus cujos projetos coloniais erigiram imperativos ideológicos com os ideais do Iluminismo. Também já não se define nação exclusivamente como uma construção monocultural e monolinguística. O renascimento do humanismo, como escreveu Bonnie Honig em Antigone’s Two Laws: Greek Tragedy and the Politics of Humanism, “í uma variante que reprisa o humanismo anterior no qual o que é comum aos humanos não é a racionalidade, mas o fato ontológico da mortalidade; não a capacidade de raciocinar, mas a vulnerabilidade ao sofrimento.”
Imperativo histórico
Tendo em vista o crescente número de refugiados e de pessoas apátridas, a sucessão das crises econômicas e políticas, o aumento dos fundamentalismos, da xenofobia e de novas formas de racismo, e as revoltas subsequentes exigindo democracia, o humanismo emerge como parte da “necessidade – segundo o escritor palestino-americano Edward Said (1935-2003) – de histórias sóbrias, desintoxicadas, que tornem evidentes a multiplicidade e a complexidade da história, sem permitir que alguém conclua que ela se move impessoalmente, de acordo com leis determinadas tanto pelo divino como pelos poderosos”.
Said é famoso por ter analisado os valores históricos, filosóficos e literários do humanismo ocidental. Ele estudou o impacto ideológico violento do humanismo ocidental sobre as culturas não ocidentais. Suas ideias estimularam um candente debate após o aparecimento do livro póstumo Humanism and Democratic Criticism. Para Said, assim como para outros, o humanismo, “como esforço das faculdades de linguagem de uma pessoa a fim de compreender, reinterpretar e enfrentar produtos da linguagem na história, assim como outras linguagens e outras histórias, não é uma forma de consolidar e afirmar o que sempre soubemos e sentimos, mas sim um meio de questionar e de reformular o que nos é apresentado como certeza acrítica, incontroversa e embalada como mercadoria”.
A necessidade de se envolver na “complexidade da história”, aprendendo a lembrar-se do esquecimento dos eleitorados marginalizados e de suas culturas rejeitadas, tornou-se um imperativo na época atual. Se o século 20 é a idade “de exílio da consciência”, como diz Said, o século 21 é a idade do anthropos, isto é, da espécie humana. Anthropos significa um rosto humano.
Refugiados afegãos no Paquistão. À direita, acampamento de somalis, em Mogadíscio. Abaixo, meninos somalis em Dadaab, no Quênia.
Sociedade intercultural
Os gregos antigos acreditavam que a especificidade humana era o fato de o homem viver em uma sociedade regida pela lei – em outras palavras, em uma cidade-Estado (polis, em grego). O filósofo Aristóteles (século IV a.C.) desenvolveu a ideia dos seres humanos como “animais políticos”, moradores da cidade (bios politicos em grego). Mais recentemente, a filósofa norte-americana nascida na Alemanha Hannah Arendt retratou o refugiado moderno como um bios politicos por excelência, embora desprovido de uma polis.
Hoje, as crises políticas e econômicas que assolam o mundo não estão só aumentando o número de refugiados, mas também privando os cidadãos dos direitos ao trabalho e à educação longamente estabelecidos. O cidadão torna- se, agora, um cidadão a-polis, aquele que está sendo privado de direitos. Nas praças de Madri, Cairo e Atenas, para mencionar alguns casos recentes de revoltas políticas, o refugiado apátrida encontra o cidadão a-polis. Mesmo que suas exigências sejam diferentes, estão ligados por reivindicações compartilhadas de um ideal democrático que reconhece o anthropos como seu primeiro e mais fundamental princípio.
Apesar das diferenças em suas posições políticas e econômicas, tanto o refugiado apátrida quanto o cidadão a-polis requerem a configuração de uma nova polis. Aí, onde a diversidade de línguas, de tradições e de mitos constitui uma realidade diária, a prática da tradução e da transculturação torna-se uma prática de sobrevivência.
Cooperação médica internacional em Kalkata, na Índia. Abaixo, refugiados curdos, vítimas do terremoto de outubro de 2011, na Turquia.
Um dos desafios atuais do humanismo é desenvolver condições favoráveis para as sociedades interculturais. Em outras palavras, criar sociedades que permitam a refugiados e cidadãos nativos estabelecer intercâmbios duráveis e produtivos. Quando vista como um campo comum partilhado por alianças múltiplas, essa sociedade intercultural pressupõe uma reconfiguração radical das instituições e dos discursos políticos, educacionais e sociais, que devem atender às necessidades de expansão das comunidades interculturais nos Estados-nações e suas formações supranacionais.
A interculturalidade é uma condição, tanto ontológica quanto política, que transforma o Estado-nação a partir de seu interior. No entanto, para os seres humanos serem reconhecidos social e politicamente como singulares, mas também iguais, é necessário reformar a educação de modo a permitir o florescimento de uma aprendizagem e de uma vivência intercultural que significa, nas palavras do filósofo francês Jacques Derrida, abrir continuamente as leis da hospitalidade para o estrangeiro a quem “a hospitalidade é devida”.
Construir esse tipo de humanismo hospitaleiro para aquele que continua a ser um anthropos estrangeiro, que na reconstituição de suas leis e discursos fala com sua condição política e ontológica radicalmente diferente, é a tarefa das ciências humanas hoje. Segundo a feminista norte-americana Judith Butler, essa tarefa significa, “nos voltarmos para o humano onde não esperamos encontrá-lo, em sua fragilidade e nos limites da sua capacidade de fazer sentido”. Trata-se de pensar o humano como o anthropos sempre já em jogo, sempre já em risco, como a face cujo olhar está fixo em nós como convite aberto e persistente pela justiça em escala planetária.