15/05/2022 - 8:47
Em 8 de fevereiro de 2007, o estudo científico da reencarnação sofreu uma perda pesada, dessas que demoram a ser substituídas. Aos 88 anos, após um longo tratamento contra a pneumonia, faleceu em Charlottesville, na Virgínia (EUA), o professor Ian Stevenson, a maior autoridade mundial nessa área. Graduado em medicina, professor de psiquiatria e diretor da Divisão de Estudos da Personalidade (atualmente, Divisão de Estudos da Percepção) da Universidade de Virgínia, ele dedicou mais de 40 anos à pesquisa da reencarnação e escreveu mais de 200 artigos e livros fundamentais sobre o tema.
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Stevenson nasceu em 31 de outubro de 1918, em Montreal, no Canadá. Estudou nas universidades de St. Andrews (Escócia) e McGill (Montreal). Nesta última, graduou-se em medicina como o primeiro da turma. Antes de se fixar no Departamento de Neurologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade da Virgínia, em 1957, ele trabalhou na Faculdade de Medicina da Universidade Cornell (1947-1949) e na Louisiana State University (1949-1957).
Recordações de crianças
O interesse de Stevenson por assuntos extra-acadêmicos provavelmente teve a influência de sua mãe, adepta da teosofia. Em 1950, após um encontro com Aldous Huxley, ele se tornou um dos pioneiros no estudo médico dos efeitos do LSD. Os seus estudos na área parapsicológica incluem diversos temas, como telepatia, precognição, xenoglossia, experiências de quase morte, aparições, mediunidade e fotografia psíquica. Mas foi com os seus trabalhos sobre a reencarnação que ele se tornou mundialmente conhecido.
Como levar um assunto tão esquivo como a reencarnação para os domínios da ciência? Stevenson concentrou-se no estudo de casos, em especial aqueles em que crianças pequenas informavam espontaneamente o que seriam recordações de uma vida passada. Em geral, essas crianças começam a dar informações sobre uma existência anterior entre 2 e 4 anos, e aos 8 já não se recordam mais do tema.
Cauteloso, Stevenson nunca afirmou que os seus melhores casos comprovavam a reencarnação, já que as ferramentas contemporâneas da ciência ainda não são capazes de flagrar esse fenômeno. Ele sempre prestou atenção aos ataques dos céticos a seu trabalho – principalmente fraude, fantasia, distorções de significado cometidas por intérpretes e metodologia sujeita a falhas – e usava as críticas pertinentes para refiná-lo. Assim, o que divulgava eram casos que, em suas palavras, “sugeriam” reencarnação. Mas as evidências que sustentam os casos selecionados constituem um ótimo ponto de partida para se refletir a esse respeito.
Ponto de partida
A primeira monografia de Stevenson sobre esse assunto, de 1961, foi The Evidence for Survival from Claimed Memories of Former Incarnations, na qual examinava 44 casos publicados de memórias de vidas passadas. O texto rendeu-lhe um prêmio e foi publicado pela American Society for Psychical Research em homenagem ao filósofo William James, um dos primeiros presidentes da entidade. A repercussão não parou aí: depois de ler o trabalho, a famosa médium norte-americana Eileen Garrett, cofundadora da Parapsychology Foundation, contatou o autor e pediu-lhe para investigar o caso de uma criança indiana que dizia ter vivido antes, sob o patrocínio de sua organização. Stevenson aceitou e viajou à Índia durante as suas férias para fazer a pesquisa.
Enquanto isso, Chester F. Carlson, o inventor da máquina Xerox, leu o ensaio de Stevenson e foi conquistado pelo tema. Carlson passou a patrocinar o pesquisador e chegou a acompanhá-lo ao Alasca, em viagens para entrevistar membros da tribo tlingit sobre suas crenças e experiências reencarnatórias. A estada na Índia, porém, convenceu Stevenson de que a maioria dos casos merecedores de estudos nessa área estava na Ásia. Estudá-los implicaria usar um tempo e recursos de que ele não dispunha.
Carlson, porém, foi fundamental para mudar esse quadro. Passou a fazer doações anuais para as viagens e, ao morrer, em 1963, deixou US$ 1 milhão para a Universidade da Virgínia criar uma cátedra de psiquiatria a ser ocupada por Stevenson e mais US$ 1 milhão para ele continuar suas pesquisas. Foi com esse dinheiro que o pesquisador criou a Divisão de Estudos da Personalidade, o único departamento acadêmico no mundo voltado para o estudo da reencarnação, de experiências de quase morte e de outros fenômenos paranormais.
Nesse intervalo, Stevenson começara a prestar mais atenção a um detalhe antes praticamente ignorado no grupo de meninos e meninas que afirmavam ter vivido anteriormente. Na maioria dos casos, a criança portava uma marca ou defeito de nascença que parecia endossar um fato importante de sua vida prévia – por exemplo, duas pequenas marcas circulares na cabeça em posição e dimensões semelhantes às dos ferimentos que a pretensa personalidade anterior tivera ao ser baleada naquela região do corpo. Assim como marcas associadas a tiros, havia diversas outras remetendo a ferimentos causados por armas de fogo, facas, machetes, equipamentos industriais ou por acidentes envolvendo veículos com perda parcial de membros.
As obras essenciais
Ian Stevenson trabalhou por décadas uma imensa gama de material recolhido sobre esses casos em diferentes países, produzindo a partir dele muitas teses e livros. O mais importante deles, certamente, é Reincarnation and Biology: A Contribution to the Etiology of Birthmarks and Birth Defects (Praegar Publishers, 1997).
Dividida em dois volumes, cada qual com mais de mil páginas repletas de ilustrações, essa obra fundamental examina em minúcias 225 casos escolhidos entre os quase três mil disponíveis nos arquivos do autor. Lançada no mesmo ano, uma versão mais acessível aos leigos, Where Reincarnation and Biology Intersect (Praegar Publishers), contém 65 casos condensados em quase 250 páginas.
Mesmo recheadas de detalhes, essas obras não despertaram interesse significativo entre a comunidade acadêmica e o público em geral. Segundo Roy Stemman, editor do site Paranormal Review, foi provavelmente por isso que Stevenson concordou em levar o premiado jornalista Tom Shroder (então editor sênior do jornal The Washington Post) a suas últimas viagens antes da aposentadoria, entre 1996 e 1998, para examinar casos no Líbano, na Índia e no sul dos Estados Unidos. Dessa jornada resultou o livro Almas Antigas (lançado em 1999 e publicado em 2001 no Brasil pela Editora Sextante), no qual Shroder mostra não apenas detalhes de Stevenson em ação, aplicando a sua metodologia, como o lado humano dessas pesquisas, desprezado nos textos científicos.
O cuidado com os detalhes
O psiquiatra Ian Stevenson sempre foi meticuloso em seus estudos, e o tempo e as críticas o levaram a apurar cada vez mais as suas técnicas de investigação. Os seus estudos estão repletos de verificações cruzadas, tabulações de coincidências e discrepâncias nos testemunhos e discussões aprofundadas de hipóteses que poderiam explicar o caso sem a necessidade de recorrer à ideia de reencarnação.
Com o tempo, ele passou a dar mais atenção aos casos envolvendo crianças que não apenas “lembravam” o que haviam feito em sua suposta vida anterior como reproduziam características psicológicas, costumes, maneirismos e habilidades da pessoa morta. Segundo Stevenson, era probabilisticamente bem mais fácil a criança aprender a narrar fatos do que comportar-se como a pessoa de quem ela dizia ser a reencarnação. Outro detalhe importante são as marcas de nascença que combinam com a forma como as pessoas teriam morrido em sua vida anterior. Em 51% dos casos em que a existência prévia da criança foi identificada, o indivíduo sofreu morte violenta.
Com a aposentadoria de Stevenson, em 2002, a cadeira Carlson de psiquiatria da Universidade da Virgínia foi assumida por Bruce Greyson. Jim Tucker, psiquiatra infantil e professor assistente no Departamento de Psiquiatria da universidade, é quem tem dado sequência às investigações de casos relativos à reencarnação e a outros temas parapsicológicos, com o apoio de Greyson e de outras pessoas da equipe.
A cautela de Stevenson ao trabalhar com a reencarnação fez com que pouco se conhecesse sobre as suas opiniões pessoais a respeito desse tema. Uma rara fresta nesse muro está nos parágrafos finais de um texto assinado por ele e publicado no Journal of Scientific Exploration em 2006 (vol. 20, nº 1), intitulado “Half a Career With the Paranormal”:
“Todos nós morremos de alguma doença. O que determina a natureza dessa doença? Acredito que a busca da resposta pode nos levar a pensar que a natureza de nossas doenças pode derivar, pelo menos em parte, de nossas vidas passadas. Os casos de crianças que afirmam se lembrar de vidas passadas e que descreveram marcas e defeitos de nascença sugerem isso. Algumas dessas crianças relataram doenças internas.”
“Minha própria condição física – deficiência em meus brônquios (desde a primeira infância) (…) me deu um interesse pessoal a respeito dessa importante questão. Não deixe ninguém pensar que eu conheço a resposta. Ainda estou procurando-a.”
Um conceito que já existia na Grécia
No Ocidente, vários filósofos gregos trabalharam com a ideia da reencarnação, a começar por Pitágoras. Ele afirmava ter vivido antes como guerreiro troiano, comerciante, agricultor e prostituta. Pitágoras aceitava a ideia de que um humano reencarnasse como animal, e por isso impediu um homem de surrar um cachorro: o filósofo alegou que havia reconhecido a alma de um amigo no animal ao ouvi-lo ganir.
Platão defendia que a alma é imortal, antecede o nascimento e reencarna diversas vezes. Cada alma escolheria sua próxima vida, a partir de suas experiências nas vidas anteriores. Em sua obra Fedro, ele apresentou uma curiosa classificação em nove níveis de virtuosidade para a jornada da alma. Em vidas sucessivas, os seres transitariam por esses níveis até atingir um grau evolutivo capaz de levá-los a um reino celestial. No nível mais baixo estariam os tiranos. No quarto, os médicos e atletas. No terceiro, os políticos. No segundo, os guerreiros e reis virtuosos. Os filósofos, artistas e músicos ocupavam o topo da escala.
Discípulo de Platão, Aristóteles inicialmente adotou as ideias do mestre. Depois passou a opor-se aos conceitos de imortalidade e de reencarnação. Essa e outras concepções fizeram dele o precursor do materialismo ocidental vigente até hoje, o que não impediu que grupos de crentes na reencarnação se manifestassem desde então neste lado do mundo.
Um de seus redutos foi o cristianismo primitivo. O influente teólogo e escritor alexandrino Orígenes (185 d.C.-254 d.C.), por exemplo, aceitava a reencarnação sem meias palavras. Num de seus textos, ele disse: “Portanto, todos os que descem à Terra, de acordo com seus merecimentos ou com a posição que ocuparam nela, recebem ordens para nascer neste mundo, em um local diferente, ou em outra nação, ou numa profissão diferente, ou com doenças diversas, ou como descendentes de pais mais ou menos religiosos ou pios, de modo que às vezes pode acontecer de um israelita retornar em pleno Egito e de um egípcio nascer na Judeia.”
No ano 400, o papa Anastácio condenou Orígenes por suas “opiniões cheias de blasfêmias”. Isso, porém, não bastou, e uma alternativa mais radical foi tomada no século 6: o Concílio de Constantinopla excomungou o teólogo e todos os que partilhavam a sua ideia de “monstruosa restauração”.
A heresia das vidas sucessivas
Mas as ideias reencarnacionistas continuaram a encontrar abrigo em numerosas seitas cristãs. Uma delas, a dos cátaros (“purificados”), conquistou o sul da França no século 11. Para os cátaros, as almas humanas eram espíritos caídos e as encarnações serviam-lhes como prova e expiação – existências boas davam direito a um corpo capaz de levar o ser a uma elevação ainda maior, enquanto existências ruins eram refletidas em um organismo doente e destinado a passar por outras dificuldades.
O clero romano moveu uma guerra sem tréguas aos membros da seita até conquistar seu último reduto, a fortaleza de Montségur, e levar à fogueira os adeptos lá capturados. Depois disso, a reencarnação foi definitivamente banida da Igreja cristã.
O tema voltaria à tona no Ocidente na segunda metade do século 19, época do florescimento do interesse por assuntos envolvendo espíritos. Em 1857, Allan Kardec lançou a pedra fundamental do espiritismo, O Livro dos Espíritos. Em 1875, 18 anos depois, Helena Blavatsky fundou em Nova York, nos Estados Unidos, a Sociedade Teosófica, que atraiu considerável interesse a partir de um ideário que incluía os conceitos orientais de carma e de reencarnação.
Em 1882, foi criada na Inglaterra a Sociedade de Pesquisa Psíquica, reunião de importantes intelectuais da época para estudar os fenômenos paranormais. Foi a senha para o início do interesse científico pelo assunto.
O interesse pela reencarnação, no entanto, somente viria a despertar uma atenção maior a partir do início da segunda metade do século passado, com a divulgação de experiências de regressão sob hipnose que levariam os pacientes a descrever detalhes de vidas passadas.
Alguns anos depois, Ian Stevenson publicava o seu primeiro estudo na área, e a partir daí a reencarnação deixou de ser encarada como um tema exclusivo do mundo religioso.
Guimarães Andrade, o amigo brasileiro
Pioneiro na pesquisa do efeito Kirlian e da transcomunicação instrumental em nosso país, o engenheiro e psicobiofísico Hernani Guimarães Andrade foi também o introdutor no Brasil da metodologia de Ian Stevenson para o estudo de casos sugestivos de reencarnação. Os dois, aliás, se conheciam pessoalmente – o pesquisador canadense veio a São Paulo em 1972, e seus arquivos abrigam casos brasileiros estudados pelo Instituto Brasileiro de Pesquisas Psicobiofísicas (IBPP), presidido por Andrade. Os estudos do IBPP feitos segundo o modelo elaborado por Stevenson renderam os livros Reencarnação no Brasil – Oito Casos que Sugerem Renascimento (Ed. O Clarim, 1988) e Renasceu por Amor – Um Caso que Sugere Reencarnação: Kilden & Jonathan (Ed. Folha Espírita, 1995).