Enquanto mais de 1,1 bilhão de pessoas sofrem com a escassez de água potável no mundo, o aquecimento global induz um número cada vez maior de icebergs a desprender-se da Groenlândia e da Antártida, atrapalhando a navegação até desfazer-se no oceano. Alguns idealistas perguntam: não seria possível evitar esse desperdício e levar os blocos de gelo, com sua água puríssima, para as regiões áridas do planeta? Até pouco tempo atrás, pouca gente levaria a ideia a sério. A moderníssima tecnologia 3D está mudando essa avaliação.

O principal responsável pela revisão do conceito é um engenheiro francês, Georges Mougin. Nos anos 1970 ele integrava a equipe convocada pelo príncipe Mohammad al-Faisal, da Arábia Saudita, para tornar realidade o projeto Iceberg Transport International, o plano de envolver um iceberg de 100 milhões de toneladas em lona e plástico e levá-lo das regiões árticas até o Mar Vermelho.

As imensas dificuldades previstas e o custo mínimo de US$ 100 milhões assustaram até os megamilionários sauditas e o projeto não foi adiante, mas Mougin não descartou a ideia e continuou discutindo- a com glaciologistas, oceanógrafos e meteorologistas. Três décadas e meia depois, o engenheiro – com 86 anos de idade e cheio de planos – conseguiu reunir meios para provar que a empreitada pode ser realizada.

O projeto contempla amarrar um iceberg tabular (plano em cima) com um cinto duplo de geotêxtil. A primeira faixa envolve o bloco 6 metros acima do nível do mar.

Foi um programa na tevê que revelou a nova estratégia. Nele, um arquiteto explicava sua teoria sobre a construção das pirâmides egípcias com o auxílio de um programa da empresa Dassault Systémes, especializada na elaboração de simulações em 3D. Mougin gostou do que viu e percebeu que o modelo de simulação poderia lhe ser útil: “Se puderam ajudar aquele arquiteto com as pirâmides, certamente poderiam me ajudar com meu projeto do iceberg”, conta. Com a ajuda de Cédric Simard, diretor de projetos da Dassault, uma equipe reuniu todos os dados e preparou uma simulação virtual solidamente fincada no mundo real: o projeto Ice- Dream.

Vários fatores condicionam o empreendimento: o abastecimento do barco encarregado do reboque, a taxa de derretimento do iceberg, as condições específicas do oceano, da temperatura, dos ventos, das correntes marinhas, das ondas e dos redemoinhos. Depois de dois anos de análise a equipe da Dassault Systèmes anunciou, no primeiro semestre do ano, um plano plausível.

O plano prevê rebocar um iceberg do litoral da Terra Nova (costa leste do Canadá) até as Ilhas Canárias, da Espanha, no outro lado do Atlântico, por cerca de 4.500 quilômetros.

“Desta vez estamos mais perto do que jamais estivemos de tornar realidade o sonho de capturar icebergs”, disse o engenheiro francês à PLANETA. “Principalmente por causa do uso das tecnologias de desenho, de teste e de simulação em 3D. Essas são tecnologias utilizadas por grandes clientes nas indústrias aeroespacial, naval e automotiva para lançar novos projetos. Elas nos permitem testar todos os aspectos do empreendimento e ajudam a antecipar quaisquer problemas antes de concretizá-lo.”

De acordo com Mougin, os principais obstáculos são o tempo e os recursos necessários para aperfeiçoar os detalhes. “É por isso que o de design e de planejamento virtuais nos deixa mais perto do mundo real mais rapidamente.”

Aos 86 anos, o engenheiro francês Georges Mougin quer realizar o projeto da sua vida: “Estamos mais perto do que jamais estivemos de tornar realidade o sonho de capturar icebergs.”

Passo a passo A partir dos estudos de simulação tridimensional, Mougin e Simard estabeleceram o seguinte roteiro para capturar icebergs:

Decidir, com um glaciologista, qual a estação do ano mais adequada para capturar icebergs. A primavera no Hemisfério Norte parece a melhor.

Definir o tamanho do iceberg, nem muito grande nem muito pequeno. O bloco de gelo deve ser do tipo tabular, plano na parte de cima, que apresenta risco mínimo de fratura e é mais fácil de rebocar.

Amarrar o iceberg com cinto duplo de geotêxtil (manta não tecida composta de filamentos de polipropileno), tensionado com o auxílio de estacas fixadas no gelo. Uma faixa do cinto estendese por seis metros acima do nível da água e outra por seis metros abaixo dela, defendendo o bloco das ondas que podem corroê-lo.

 

A segunda faixa circunda o bloco de gelo a 6 metros abaixo do nível d’água, facilitando seu transporte por um rebocador.

Envolver o iceberg por uma “saia” de geotêxtil. Mougin e a Dassault calcularam que o ideal é o invólucro ter 160 metros de altura, o suficiente para “vestir” a parte submersa do iceberg. Como a parte emersa representa só 10% do bloco e tem grande capacidade de reflexão da luz solar, a perda de gelo seria pequena. Como as correntes oceânicas aplainam a superfície do gelo, é pouco provável que a saia seja rasgada.

Rebocar o gelo com auxílio das correntes marinhas. Sozinho, um rebocador não conseguiria puxar um iceberg. A estratégia de Mougin é facilitar a tarefa usando dados sobre correntes oceânicas coletados por satélite e previsões meteorológicas. Segundo Simard, vistos pelas fotos de satélite, os oceanos parecem “um grande mapa de saliências e buracos”. Para ser bem-sucedido, o rebocador teria de escolher sua trajetória diante dos obstáculos – tal como faz um esquiador.

 

Imprevistos acontecem

A primeira simulação, entretanto, não funcionou. Um iceberg captuprado no litoral da Terra Nova (leste do Canadá) e destinado às Ilhas Canárias (arquipélago espanhol no noroeste da África) ficou semanas preso em um redemoinho imprevisto. A carga derreteu por completo. Mougin e colegas decidiram, então, alterar em algumas semanas a data de início do transporte. Com a mudança, o reboque virtual deu certo. Icebergs é que não faltam. Na primavera, na Terra Nova chegam, todo ano, centenas de bloco de gelo trazidos pela Corrente do Labrador.

Uma saia de geotêxtil, de 160 metros de altura, destinada a reduzir o derretimento do bloco, envolve a parte submersa do iceberg.

Visão do iceberg “vestido” com a saia de geotêxtil, resistente ao desgaste causado pelo mar.

O sucesso da experiência virou um documentário levado ao ar com grande sucesso pela tevê francesa em maio. Animado com a repercussão, Mougin constituiu uma empresa e estimou em US$ 10 milhões o custo para capturar um iceberg de 7 milhões de toneladas, puxado por um rebocador com força de tração de 130 toneladas, durante 141 dias, por cerca de 4.500 quilômetros. A cifra capaz de viabilizar a operação representa um décimo do custo estimado na década de 1970.

“Os governos de países onde a água é tão preciosa quanto o ouro são os clientes potenciais do negócio”, diz o engenheiro. “Foi por isso que o príncipe saudita Mohammad al-Faisal se interessou pioneiramente por esse projeto. Ele o considerava uma maneira ecologicamente amigável de aproveitar novas fontes de água.”

O rebocador, com força de tração de 130 toneladas, não conseguiria puxar o iceberg sozinho. A ideia é usar as correntes marinhas como força auxiliar no percurso.

A ideia de Mougin suscita uma pergunta cuja resposta até agora não despertava atenção: iceberg tem dono? O país onde ele se originou po- Assista no YouTube ao vídeo sobre o projeto de Mougin: IceDream: The Iceberg project deria requerer royalties por sua captura e utilização? “Isso é, obviamente, um fator muito importante a ser considerado por nós no futuro próximo”, admite o engenheiro.

A rota de 141 dias é definida por satélite. A linha reta é inviável. As fotos de satélites mostram que há saliências nos oceanos.

Para a equipe, o próximo passo será viajar até o local designado para a captura do iceberg, partindo do porto de Saint John, na Terra Nova, e iniciar testes completos em escala operacional. Mas o parceiro comercial para materializar o projeto ainda não surgiu. Enquanto isso, os modelos e as simulações em 3D serão fundamentais para prever e visualizar cenários complexos ou perigosos para a operação real. Os projetistas especulam que a primeira jornada completa de transporte deverá ocorrer até 2013.

 

Assista no YouTube ao vídeo sobre o projeto de Mougin: IceDream: The Iceberg project