Em “Invisíveis”, jornalistas Gilson Camargo e Dominga Menezes abordam a presença de indígenas e negros escravizados nas colônias de imigrantes alemães no Rio Grande do Sul.A chegada dos alemães ao Rio Grande do Sul, há 200 anos, costuma ser narrada como o desbravamento de uma terra vazia por imigrantes que prezavam o trabalho livre. É um mito que está, por exemplo, no hino de São Leopoldo (“Louro imigrante, só a natureza te viu chegar para trabalhar aqui”), como ressalta o historiador Ricardo Charão no prefácio de Invisíveis: o lugar de indígenas e negros na história da imigração alemã (Carta Editora), dos jornalistas Gilson Camargo e Dominga Menezes.

Reunindo dados da historiografia recente, crônicas de época e entrevistas com pesquisadores e ativistas, os jornalistas gaúchos mostram que houve muitos conflitos territoriais dos imigrantes com populações indígenas, sobretudo os kaingang, e que os alemães também escravizavam negros.

Em entrevista à DW, Camargo e Menezes falam do apagamento dessa história e de como isso tem mudado com políticas públicas neste século. Um dos reflexos é o monumento “Diversidade 200 anos”, que será instalado em São Leopoldo em 25 de julho, quando se comemora o bicentenário da fundação da cidade, com a chegada de 39 pessoas de fala alemã ao Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul.

DW: O que os levou a pesquisar sobre o mito de que os imigrantes alemães chegaram numa terra desocupada?

Gilson Camargo: Como jornalistas, sempre tivemos uma inquietação sobre a narrativa do imigrante desbravador, reafirmando que não havia ninguém em São Leopoldo antes de 25 de julho de 1824. Percebemos um movimento de historiadores na academia que dizia que a história não era bem assim, com documentos comprovando que havia indígenas naquela região desde antes dos portugueses.

Outros mitos também foram criados, como o de que os alemães eram adeptos do trabalho livre, mas eles possuíam muitos escravos, que eram um bem valioso. A Feitoria do Linho Cânhamo (hoje Casa do Imigrante, em São Leopoldo) era um centro de produção agrícola e pecuária tocado com mão de obra indígena e negra, que abastecia o mercado local e exportava o excedente para Porto Alegre, e chegou a ter 321 escravos. Foi o maior grupo da história da escravidão do Rio Grande do Sul, mais do que as charqueadas, que tinham em média cem escravos.

Dominga Menezes: Os historiadores tradicionais ignoravam esses registros da presença indígena e negra.

Parte das fontes que se referem a populações indígenas na região são crônicas eurocêntricas. Como essas mesmas histórias podem contextualizar a disputa dos alemães por territórios com indígenas, principalmente os kaingang?

Camargo: Há pouca bibliografia sobre a presença negra e indígena, apenas material esparso na historiografia oficial. No caso dos indígenas, muitas das fontes são de folhetins, crônicas publicadas em jornais da época, em que a versão era sempre a do colonizador. Como os indígenas não tinham registro escrito, a oralidade se perdia. Eles eram tratados como selvagens, agressores. As mortes de indígenas eram naturalizadas, mas um imigrante morto era o fim do mundo. Confrontamos essa literatura com a pesquisa de novos autores da academia.

O livro trata da necessidade de “resgatar os registros factuais”. Por que, apesar desses registros, ainda resiste o mito de que não havia negros escravizados nas colônias alemãs?

Camargo: No Rio Grande do Sul, por muito tempo se disse que não se podia pesquisar a história do negro porque Rui Barbosa [abolicionista e ministro da Fazenda no primeiro governo da República] mandou queimar os registros da escravidão. Mas a academia começou a resgatar documentos cartoriais, de propriedade, morte, nascimento, casamento. O livro Registros da presença negra no Arquivo Histórico do RS (editora Oikos), coordenado por Paulo Moreira, professor da Unisinos, compila esses documentos públicos. O historiador Ricardo Charão mostra que em São Leopoldo havia pessoas de fala alemã de toda a Europa, e também de diversas partes da África, com muitos dialetos.

O livro também derruba o mito de quem eram os alemães, porque na verdade a Alemanha como Estado unificado só existiu a partir de 1871.

Camargo: As pessoas que vieram para cá eram muito marginalizadas, agricultores que foram expulsos da terra dos empregadores na Europa, andarilhos, presidiários. Mas a história oficial é mitificada, exalta muito a virtude do povo alemão.

Menezes: Tomamos cuidado para não minimizar a importância dos imigrantes, até porque nem tudo foi um mar de rosas para eles. Os alemães chegaram aqui com a promessa de um lote de terra, mas muitas vezes só iam tomar posse seis meses depois.

Vocês dois são gaúchos, Dominga Menezes cresceu em São Leopoldo. Antes de pesquisarem sobre o tema, como aprenderam sobre a história da imigração alemã?

Menezes: Viemos de uma geração que pouco questionava. Eu tenho uma história peculiar. Em 1974, na ditadura, Ernesto Geisel esteve nas comemorações dos 150 anos da imigração alemã em São Leopoldo. Num palco próximo ao Rio dos Sinos, 120 meninas apresentaram uma coreografia para saudar o presidente, vestindo malhas das cores do Rio Grande do Sul. Eu estava lá, tinha 12 anos. Como sou parda, vestia amarelo. As mais claras vestiam verde e as negras, vermelho. É algo que hoje me chama muita atenção. A gente estava saudando a germanidade, enquanto ninguém se dava conta de que ali havia meninas negras, de origem indígena, com outros traços.

Essas festividades alusivas à imigração alemã sempre passaram por cima da nossa história. Todo ano, quando é comemorado o aniversário da cidade, é escolhida uma corte, com rainhas e princesas. Elas sempre tinham que ter a pele clara. Só em 2005, com a criação da Secretaria de Cultura de São Leopoldo, houve espaço para que meninas negras também participassem do concurso.

Camargo: Houve uma transformação com políticas públicas que tratam a cultura de forma mais inclusiva, e não como solenidade, entretenimento.

Em entrevista ao livro, o teólogo e historiador negro Ricardo Charão afirma que a história da colonização alemã no Rio Grande do Sul ganhou relevância a partir das comemorações do centenário da imigração em 1924, que reforçaram a narrativa da ocupação de um espaço vazio pelos alemães. Como as comemorações do bicentenário podem ajudar a mudar essa visão?

Camargo: Depois do centenário, a questão da germanidade ficou represada por um tempo, com a proibição de idiomas estrangeiros no governo de Getúlio Vargas. Quando isso acabou, houve uma revitalização da identidade germânica de que a própria política se aproveitou.

No bicentenário, as comemorações têm forte marca da inclusão. O monumento “Diversidade 200 anos” vai ser instalado em São Leopoldo em 25 de julho. A programação seria mais ampla, foi reduzida por conta das enchentes, mas traz uma diversidade que há até bem pouco tempo a gente não via.

A gente está falando não só do passado, mas do presente, de pessoas que são invisibilizadas até hoje. Precisamos parar de dizer que São Leopoldo nasceu em 25 de julho de 1824 e nos reconciliar com a história.