25/10/2023 - 13:11
A vida parou nas comunidades às margens do médio rio Solimões. Nessa parte do estado do Amazonas onde as vias são aquáticas, a seca extrema impede que crianças cheguem à escola e que pescadores e agricultores familiares trabalhem.
“Tudo parou. Não dá para sair de barco, há famílias isoladas. A gente tem medo de a água potável acabar, essa é nossa principal preocupação”, narra à DW Maria de Fátima Celestino, 33 anos, mãe de uma recém-nascida de três meses e de outros três filhos.
Ela e outras 31 famílias moram na comunidade Tauary, a oito horas de barco da cidade mais próxima, Tefé. Por conta da dificuldade da navegação e do transporte de mercadores pelo Solimões, os ribeirinhos estão pagando mais caro pelo arroz, feijão, óleo e café.
“Nem a minha sogra, que tem 98 anos, viu uma seca dessa”, conta Celestino sobre a situação que presencia de sua casa no médio Solimões que, quilômetros à frente, se transforma no rio Amazonas.
Algumas estações hidrometeorológicas que medem o nível na bacia amazônica registraram mínimos recordes nas últimas semanas. A seca dramátia também afeta comunidades no curso dos rios Negro, Purus, Madeira e Amazonas.
O cenário para os próximos meses não é otimista. A temporada de chuvas na região, que vai de novembro a março, começa atrasada com volumes abaixo da média, o que compromete o retorno dos rios a níveis saudáveis.
“A previsão para o próximo trimestre é semelhante ao quadro dos últimos meses: a seca continua na Amazônia, e as chuvas persistem no Sul. Começam também os primeiros sinais de seca na região Nordeste”, afirma à DW Gilvan Sampaio, coordenador geral de Ciências da Terra do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Apagão de dados
A bacia amazônica é o maior sistema fluvial do mundo, com 6,4 milhões de quilômetros quadrados de extensão compartilhada entre nove países. A maior parte dela está no Brasil, nos estados do Amazonas, Roraima, Acre, Rondônia, parte do Mato Grosso, Pará e Amapá.
No país, o desafio de monitorar a situação em tempo real é proporcional à extensão do território. Uma dificuldade extra surgiu durante a crise atual: o acesso público aos dados está mais difícil desde que a Agência Nacional de Águas (ANA) sofreu um ataque hacker, no início de outubro.
“Os servidores saíram do ar e não há previsão para retorno. Justamente numa época em que se tem cotas muito baixas na Amazônia e muito elevadas no Sul, com processos de enchentes extremas”, comenta André Martinelli, pesquisador do Serviço Geológico do Brasil (SGB), à DW.
Em parceria com a ANA, o SGB opera mais de 75% das estações que formam a rede hidrometeorológica nacional. Os aparelhos – entre automáticos e manuais – coletam dados de chuva, nível dos rios, vazão, sedimentos e qualidade da água.
No Amazonas, onde o quadro é mais crítico, a maior parte do monitoramento (54%) é feita por empresas privadas terceirizadas contratadas pela ANA.
“A gente perde um pouco das facilidades de pegar os dados e trazer informação correta. A gente cobra das empresas, mas as respostas são evasivas. Eles não têm que correr, pois o prazo para entregar os dados para a ANA é de cinco meses”, comenta Martinelli, que chefia a regional do SGB em Manaus.
Diante da emergência, o SGB disponibilizou um link com informações de algumas estações telemétricas, solução tecnológica que permite o acompanhamento remoto.
“Tem dados que a gente só consegue indo a campo, como vazão, qualidade de água e coleta de sedimentos. Em algumas estações, a gente só consegue chegar de avião ou depois de muitos dias de navegação”, detalha Martinelli.
As empresas que prestam serviço para a ANA recolhem os registros feitos nesses locais apenas duas vezes por ano. “O compromisso do SGB é fazer pelo menos quatro visitas por ano”, adiciona.
O gargalo, afirma o pesquisador, reflete os problemas estruturais que empresas públicas enfrentam na Amazônia de contratar e fixar pessoas em seus postos de trabalho. Diante da crise, a expectativa é que um novo concurso público do SGB seja anunciado ainda neste ano.
Efeito cascata
A coleta de dados sobre os rios amazônicos é bastante deficiente, analisa José Genivaldo do Vale Moreira, pesquisador da Universidade Federal do Acre (Ufac). Há falhas nos registros e perda de informações, o que compromete a formação de séries históricas.
“Apesar de hoje a maioria das estações já serem automáticas, a internet na Amazônia não é tão boa. Se no momento da transmissão dos dados a conexão falha, o dado é perdido”, exemplifica o pesquisador.
Sem informações exatas, a previsão de cenários futuros fica em xeque. Os dados coletados no mundo real abastecem modelos matemáticos rodados no computador que dão pistas do que pode vir pela frente e que ajudam o poder público a se preparar.
“Eu trabalho na área de modelagem dos fenômenos, como seca e enchentes. O modelo consegue prever com grau confiável de certeza cenários futuros quando temos séries históricas longas e confiáveis”, afirma.
No Acre, por exemplo, os pesquisadores podem contar com apenas três estações que coletam dados de chuvas desde 1970 – o que seria muito pouco, pontua Moreira sobre a dificuldade das análises científicas.
Assim como no Amazonas, parte do estado do Acre também registrou momentos de seca extrema. A aguardada volta do ciclo de chuvas não deve ser suficiente para devolver o pulso satisfatório dos rios, estima Moreira.
“A americana NOAA (Administração Oceânica e Atmosférica Nacional) acena já para possível recorrência do El Niño no ano que vem. Se isso acontecer, a seca será devastadora”, diz.
“Pior do que o esperado”
Um período mais seco que o normal já era aguardado na região. Sempre que as águas do Oceano Pacífico ao longo da linha do Equador ficam mais quentes – fenômeno conhecido como El Niño –, o transporte de umidade pelo ar para a Amazônia e o Nordeste é prejudicado. O que não estava no radar era sua intensidade sobre toda a bacia.
“Está pior do que o previsto, está mais intenso. Sabíamos que o El Niño seria moderado, podendo chegar a forte, mas chegou muito rapidamente a forte”, comenta Sampaio, do Inpe.
Outro fenômeno concomitante inibiu ainda mais a formação de nuvens e de chuvas na região: o aquecimento das águas do Atlântico tropical, que afeta principalmente as partes sul e sudoeste da Amazônia.
“De forma generalizada, os dois eventos causam esses impactos da pior seca já registrada nos últimos 102 anos. O El Niño vai atingir seu auge ainda em dezembro. Tudo indica que haverá maior impacto no norte e leste da Amazônia nessa época”, detalha Sampaio.
Efeitos prolongados
Em Tefé, Amazonas, pesquisadores do Instituto Mamirauá fazem medições em caráter emergencial para dar uma resposta direta à tragédia que provocou a morte de mais de 150 botos nas últimas semanas.
“Ainda não sabemos qual será a extensão da tragédia humanitária e ambiental, que é muito grande já”, diz à DW Ayan Fleischmann, pesquisador do Instituto Mamirauá.
Uma das soluções para fazer frente aos gargalos de monitoramento hidrometeorológico da região seria descentralizar o serviço. “O próprio Instituto Mamirauá está desenvolvendo uma rede de monitoramento no local onde atua. Não há estações pluviométricas suficientes no curso dos rios”, diz Fleischmann.
Flávia Capelotto Costa, cientista no Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas (Inpa), também se assusta com a intensidade da seca. A tragédia será ainda mais devastadora caso o nível da água dos rios demore muito para se normalizar.
“A resposta da seca na floresta terá que ser muito bem acompanhada. Ela foi feita para se adaptar às cheias. Na seca, o impacto é muito mais profundo na floresta e nas comunidades também”, alerta Costa.