Entre as recém-plantadas árvores nativas que crescem na aldeia Tekoa Kalipety, a 70 quilômetros do centro da cidade de São Paulo, alguns exemplares antigos de eucalipto seguem fincados no chão. Por longas décadas, esta área ocupada tradicionalmente pelo povo guarani produziu matéria-prima para a indústria de papel e celulose. Desde que retornaram ao território, em 2013, os indígenas tentam trazer também a Mata Atlântica de volta.

“A gente está plantando perto das nascentes, estamos tentando recuperar a terra, que está muito degradada. Assim como a gente, muitos animais ficaram sem comida com a destruição da Mata Atlântica”, diz Jera Poty Mirim, primeira mulher a liderar seu povo. “Nós cuidamos da floresta”, adiciona.

Essa relação de cuidado é comprovada em dados medidos pela ciência. Um estudo publicado nesta quinta-feira (26/01) conclui que em Terras Indígenas (TIs) devidamente demarcadas na Mata Atlântica, o desmatamento cai e a área de floresta aumenta. A pesquisa, publicada na PNAS Nexus (Proceedings of the National Academy of Sciences), analisou a cobertura florestal de 129 TIs de 1985 a 2019.

“Reunimos evidências robustas que mostram que a formalização dos direitos sobre a terra influencia o desmatamento e a restauração florestal. Quando os indígenas têm autonomia e direitos assegurados, o efeito sobre o meio ambiente é direto”, detalha Rayna Benzeev, primeira autora do estudo, à DW Brasil.

Segundo os dados, a cobertura de Mata Atlântica aumentou 0,77% por ano nas TIs após a demarcação formal, em comparação com os territórios indígenas cujo processo de posse não foi concluído na Justiça.

A pesquisa é a primeira a olhar detalhadamente para o papel de populações indígenas na preservação do bioma mais devastado do país. Atualmente, restam 12% da cobertura original dessa floresta tropical.

“A questão indígena não é só Amazônia. Neste estudo, estamos falando de povos do Sul, Sudeste e Nordeste, que vivem num bioma já tão degradado. Os povos indígenas dessas regiões lutam pelo reconhecimento do território, e a gente conseguiu demonstrar que eles são muito importantes, mesmo para a proteção ambiental”, comenta Marcelo Rauber, ligado ao Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos coautores do artigo.

Desmatamento e conflitos em áreas não demarcadas

Para entender o contexto por trás das imagens de satélite analisadas, os pesquisadores mergulharam no histórico de alguns processos de demarcação. Em três territórios analisados no sul da Bahia, por exemplo, em que o povo pataxó aguarda a finalização do litígio, o desmatamento chamou a atenção.

“Em especial na TI Barra Velha, queríamos entender por que havia tanta destruição da Mata Atlântica, e entendemos que isso aconteceu quando os indígenas não tinham qualquer direito sobre a terra”, comenta Rauber.

Em geral, conforme o pesquisador, o avanço da agricultura e pecuária por não indígenas motivam a destruição da vegetação nos territórios. No sul da Bahia, se agravam os conflitos violentos com fazendeiros que estão dentro dos limites das áreas reconhecidas como habitadas tradicionalmente por indígenas mas que ainda não foram completamente demarcadas. No início de janeiro, dois jovens pataxós foram assassinados por pistoleiros.

“Resultados podem ajudar consciência internacional”

“Nossos resultados podem contribuir para aumentar a consciência internacional sobre a importância de direitos da terra para os indígenas. Também podem contribuir para os processos judiciais em andamento”, avalia Rayna Benzeev, que realizou a pesquisa durante o doutorado no departamento de estudos ambientais da Universidade de Boulder, no Colorado, mas atualmente é vinculada à Universidade da Califórnia, em Berkeley.

Das 726 TIs existentes no Brasil, pouco mais da metade, 487, chegaram ao fim do processo e foram homologadas. As demais estão em estágios diferentes: 122 ainda permanecem na primeira fase; 44 territórios estão na segunda fase; 74 estão na terceira etapa, ou seja, são considerados como “declarados”, mas não houve publicação do decreto presidencial que levasse à demarcação física.

O retorno dos guaranis

A luta dos guaranis da TI Tenondé Porã, onde fica a aldeia Tekoa Kalipety, começou em 2013, quando retomaram o território de onde foram expulsos na década de 1960. Os indígenas mais antigos contam que, naquela ocasião, homens brancos chegaram ao local dizendo que tomariam as terras e que os povos originários poderiam ficar, desde que trabalhassem. “Era um trabalho escravo”, conta Jera Poty Mirim, 41 anos.

Depois de regularizada a posse dos guaranis, as lideranças foram a aldeias mais antigas no Rio Grande do Sul em busca de sementes tradicionais. Hoje, nove tipos de milho e mais de 30 variedades de batata-doce crescem ali para alimentar mais de 300 famílias que vivem na TI.

“Temos muitas dificuldades na área social, na educação, mas estamos na nossa terra e queremos resgatar nossa cultura e nossa alimentação saudável”, diz Jera. O yvaro, planta sagrada usada para banhos e medicamentos, que antes era escassa, volta a se espalhar junto com a recuperação da Mata Atlântica.

“Nosso estudo também mostra que as pessoas são parte importante do processo de conservação. As comunidades indígenas que tiverem interesse podem ser incluídas em projetos de conservação nesse bioma tão ameaçado e que é prioritário no mundo para restauração”, analisa Rayna Benzeev.