02/03/2025 - 12:09
Recomendada há mais de 10 anos, Comissão Nacional Indígena da Verdade ainda não saiu do papel. Milhares de indígenas teriam morrido durante regime militar por ação ou omissão do Estado.Durante a ditadura militar (1964-1985), os indígenas eram espancados com cassetetes e chicotes sem ao menos saber os motivos das punições no Reformatório Krenak, em Resplendor (MG). “Os mais antigos contam que quando matavam um índio, jogavam no rio Doce e diziam pros parentes que tinha ido viajar”, relatou Oredes Krenak em depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV).
O Reformatório Krenak aprisionou indígenas considerados rebeldes pelo regime. Foram levados para o “campo de concentração”, como definiu o sertanista Antônio Cotrim Soares, por resistirem à invasão dos seus territórios, por se desentenderem com militares e até mesmo por suposta vadiagem. A prisão encarcerou centenas de indígenas de ao menos 23 etnias de diversos estados do Brasil.
Finalizada em dezembro de 2014, a CNV dedicou um capítulo do relatório aos povos originários. Estimou que, entre 1946 e 1988, pelo menos 8.350 indígenas morreram por ação ou omissão do Estado. O número, no entanto, é exponencialmente maior porque foram estudadas apenas dez das 305 etnias presentes no país. Além das mortes, houve uma série de outras violações de direitos humanos, como torturas, maus-tratos, deslocamentos forçados e roubo de terras.
Devido às suas limitações, o relatório recomendou a instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade para que os povos originários fossem beneficiados pela justiça transicional. Esse termo jurídico se refere à apuração de crimes ocorridos no passado com o objetivo de promover a reconciliação, garantir os direitos das vítimas, fortalecer a democracia e prevenir a repetição das violações.
O filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, mostrou a importância da CNV, que confirmou a morte do ex-deputado federal e engenheiro civil Rubens Paiva, até então considerado desaparecido. A história da família tem outro ponto em comum com a defesa dos direitos indígenas.
Eunice Paiva, retratada no filme pela atriz Fernanda Torres, formou-se em direito após a morte do marido e se tornou uma das pioneiras na luta pelos direitos dos povos originários, atuando na demarcação de seus territórios.
“A comissão é de suma importância”, defendeu Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “Precisamos trazer para o conhecimento público os crimes cometidos pela ditadura militar, porque o desconhecimento acaba gerando a repetição dos crimes.”
Violações sistêmicas
A comissão pesquisou um intervalo de tempo maior que a ditadura militar. Ela dividiu o período analisado em duas fases. Entre 1946 e 1968, considerou que o Estado criou as condições para o esbulho das terras indígenas – a ocupação ilegal e forçada dos territórios. Já entre 1968 e 1988, apontou que o governo teve um protagonismo nas graves violações de direitos humanos.
As duas fases são divididas pelo Ato Institucional Número 5 (AI-5), medida que acarretou o recrudescimento da violência do regime militar. “Não são esporádicas nem acidentais essas violações: elas são sistêmicas, na medida em que resultam diretamente de políticas estruturais de Estado, que respondem por elas, tanto por suas ações diretas quanto pelas suas omissões”, destacou o relatório.
As políticas governamentais tiveram um papel fundamental na violação dos direitos indígenas. Primeiro, na década de 1940, Getúlio Vargas incentivou a ocupação do Centro-Oeste, na chamada Marcha para o Oeste. Já no governo militar implementou o Plano de Integração Nacional para estimular a ocupação da Amazônia. Essas áreas eram povoadas pelos indígenas.
“Havia populações indígenas que tinham algum contato com os não-indígenas, mas a maioria não tinha. Então morrem muitos, assim como ocorreu na colonização, por doenças como gripe, sarampo, e outras”, explicou a antropóloga Elaine Moreira, professora da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do Observatório dos Direitos e Políticas Indigenistas (OBIND).
Os yanomami exemplificam os impactos dessas medidas. Na década de 1970, teve início a construção da BR-210, chamada de Perimetral Norte, cujo objetivo era atravessar a Amazônia. A obra facilitou a entrada de garimpeiros e colonos nas terras tradicionais, disseminando doenças e violência.
“Eu não sabia que o governo ia fazer estradas aqui. Autoridade não avisou antes de destruir nosso meio ambiente, antes de matar nosso povo. A Funai, que era pra nos proteger, não nos ajudou nem avisou dos perigos. Hoje estamos reclamando. Só agora está acontecendo, em 2013, que vocês vieram aqui pedir pra gente contar a história. Quero dizer: eu não quero mais morrer outra vez”, disse o xamã e líder Davi Kopenawa em seu depoimento.
Para a violência não se repetir
O resgate da memória pode contribuir para que os crimes cometidos pela Ditadura Militar sejam discutidos na sociedade. “Também é importante para que a violência não volte a se repetir”, reforçou a professora Elaine Moreira.
Recentemente, a memória daquele período retornou, na análise da professora, por dois motivos: o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), que adotou um discurso racista e anti-indígena, além de incentivar o garimpo, e a pandemia de covid-19, que levou medo e vitimou inúmeros indígenas.
Novamente os yanomami são um exemplo de como as violências podem se repetir. No governo Bolsonaro, intensificou-se a invasão de garimpeiros em suas terras, resultando na falta de medicamentos para tratar a malária levada pelos invasores, causando desnutrição infantil e mortes, além da destruição da floresta e dos rios.
Nos últimos meses, após ter sido declarada situação de emergência na terra indígena e diversas ações do governo, a situação tem melhorado. O indígena Junior Yanomami, liderança da etnia, disse que “estamos respirando e com uma nova energia”.
A repressão à oposição política, um tema mais conhecido da ditadura militar, também cruzou com as violações aos direitos indígenas, como no caso da Guerrilha do Araguaia. No fim da década de 1960 e meados da década de 1970, um movimento armado de resistência foi aniquilado pelo exército, com torturas, execuções sumárias e desaparecimento forçado de guerrilheiros e camponeses.
Na época, os indígenas Aikewara foram forçados a guiar os militares, devido ao seu conhecimento das florestas da região. As mulheres e crianças foram mantidas reféns em suas próprias casas, sendo impedidas de sair para buscar alimentos, caçar ou até mesmo para necessidades fisiológicas básicas.
Ditadura e marco temporal
O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) disse, em nota, que reafirma seu compromisso com políticas de memória que garantam o registro e a valorização das experiências dos povos indígenas. “Reconhecer os impactos históricos aos povos indígenas, especialmente os causados pela ditadura militar, é essencial para fortalecer suas identidades, lutar pela reparação histórica e garantir o devido reconhecimento de suas contribuições.”
O ministério participa do Fórum: Memória, Verdade, Reparação Integral, Não Repetição e Justiça para os Povos Indígenas, liderado pela Apib, em parceria com a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, o OBIND e o Instituto de Políticas Relacionais (IPR). Uma das principais pautas é justamente implementar a comissão.
“Embora não tenha competência para deliberar sobre a criação da comissão, o MPI atua para garantir que essas violações sejam reconhecidas e que medidas concretas de reparação sejam adotadas”, informou o ministério em nota.
Os crimes cometidos na ditadura também se relacionam com outro tema importante para os povos tradicionais: o marco temporal. A tese, considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e posteriormente transformada em lei pelo Congresso Nacional, defende que povos indígenas só teriam direito à demarcação de suas terras se estivessem ocupando essas áreas em 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
As informações da comissão da verdade, as pesquisas acadêmicas e as histórias dos povos originários mostram que muitos indígenas não estavam nas suas terras justamente porque foram arrancados dessas áreas. “Com a tese do marco temporal, eles querem apagar todo esse cenário de violência promovida pela ditadura militar. É um apagamento histórico. Ela violenta não só nossa integridade física, mas nossa história”, ressaltou Dinamam Tuxá.