01/02/2008 - 0:00
A calma e montanhosa cidade de Saudades, no extremo oeste de Santa Catarina, próxima à fronteira entre Brasil e Argentina, vive dias tensos. O motivo é um polêmico processo de desapropriação de terras que visa à formação de uma reserva indígena de 2.721 hectares, área proporcional a 81 mil campos de futebol. O clima esquentou quando em 19 de abril, Dia do Índio, o ministro da Justiça, Tarso Genro, assinou a portaria 790/07 que concedeu a enorme área para a formação da chamada Terra Indígena Guarani Araça’í. Com a canetada ministerial, 214 famílias, com aproximadamente 600 pessoas, teriam de deixar suas propriedades, compradas legalmente entre os anos de 1919 e 1923.
Mas as autoridades locais contam outra história. As concessões aconteceram por meio da Companhia Territorial Sul Brasil, braço do Estado de Santa Catarina, responsável pela venda de lotes aos migrantes-coloniz adores.
Os moradores compraram aqueles lotes de forma legítima e se forem DESAPROPRIADOS têm de ser indenizados pela totalidade de seu patrimônio
A pendenga está na agenda do governador de Santa Catarina, Luiz Henrique da Silveira, que disse à PLANETA estar muito preocupado com a situação. “Os moradores compraram aqueles lotes de forma legítima, e se forem desapropriados têm de ser indenizados pela totalidade de seu patrimônio, e não apenas pelas benfeitorias”, diz o governador.
Segundo ele, há receio de que, caso a desapropriação siga adiante, um conflito mais sério aconteça. Em Saudades, é consenso entre os moradores que ninguém deixará as suas casas de forma pacífica e haverá luta. Se for preciso, eles estão dispostos a pegar em armas.
A “briga” por enquanto corre na Justiça e não tem hora para acabar. Os agricultores conseguiram a tutela antecipada do processo, assinada pelo juiz federal Narciso Leandro Xavier Baez, suspendendo os efeitos da portaria ministerial. A decisão, de caráter provisório, está sobre recurso da Funai, que anseia reverter o caso e tocar seus projetos. A pergunta que cabe diante dessa confusão é: afinal, quem tem razão?
O cacique Idelino Fernandes, líder dos xinguaras em Chapecó; no centro, Celito Werlang, vice-prefeito de Saudades e presidente do Movimento de Defesa da Propriedade e Dignidade; e Paulo Huf, morador e agricultor da região. Na página ao lado, Marcelino mostra as miniaturas de animais do artesanato indígena chamado de balaio. Abaixo, a tartaruga e o guaxinim, algumas das peças produzidas pelos índios.
A resposta é complexa e talvez não exista, necessariamente, um lado totalmente correto. Analisando as partes envolvidas, a região parece estar diante de um daqueles casos em que há apenas vítimas, vivenciando mais uma de muitas outras tragédias da história brasileira. O desejo comum, porém, é que a solução, independentemente do lado beneficiado, não resulte em combates ou na perda da vida de brasileiros. Cabe, porém, tentar entender como toda essa confusão começou.
ERA UMA TARDE fria e chuvosa em meados de julho de 2000 quando a família Zimmer recebeu a notícia de que um grupo de 64 índios havia acampado em suas terras. De acordo com relatos locais, os índios chegaram com o apoio da Igreja de Chapecó, município vizinho, que, no dia anterior, os teria acolhido, encaminhando-os depois ao local da invasão.
Inicialmente, especulava-se que aqueles índios, da tribo guarani, seriam oriundos da aldeia Nonoai, no Rio Grande do Sul. Mas o discurso da tribo que erguia as barracas era outro. Eles afirmavam que aquelas terras eram de antepassados vindos do Paraguai, antes mesmo da colonização de Santa Catarina. Diante do problema, a família Zimmer entrou com uma ação de reintegração de posse, julgada procedente.
ido da Funai, criou-se um grupo de estudos para avaliar, identificar e delimitar as áreas reivindicadas pelos guaranis. Sem saber qual a verdade da história, se aquelas terras teriam pertencido ou não aos guaranis, os moradores contataram o antropólogo Hilário Rosa, professor da Universidade de Bauru (SP). Após semanas de estudo, um laudo foi apresentado pelo especialista. Para ele, aquela região nunca fora pisada anteriormente pela tribo que reivindicava sua posse.
Mas, de acordo com a antropóloga Kimiye Tommasino, a pendenga é muito mais complicada. Considerada uma das maiores autoridades brasileiras no estudo das tribos guaranis, ela também dedicou tempo para fazer um detalhado laudo. “Demorei mais de um ano para finalizá-lo”, recorda. Segundo ela, muitos índios foram expulsos décadas atrás e ficaram trabalhando por conta própria em municípios da região.
“Também consegui duas pesquisas de professores e alunos da Unoesc. Eles estudaram a colonização teutobrasileira em Saudades e Cunha Porá, onde alguns colonos afirmaram ter contratado mão-de-obra guarani para os serviços pesados, alegando ainda terem recebido ajuda dos guaranis nos primeiros tempos, quando tudo era mato e a situação, bem mais difícil”, prossegue a antropóloga.
Família guarani que mora em assentamento xinguara. Criada em 1992, a reserva indígena fica em Chapecó e tem 1.700 hectares.
Quanto ao suposto desaparecimento dos índios da região, Kimyie explica que há grupos guaranis espalhados por diversas outras terras do Sul do País. “Por exemplo, parte dos índios expulsos de Araça’í foi viver em Nonoai (RS), que na verdade é terra kaingang”, observa a pesquisadora. “Da mesma forma, há guaranis vivendo com outras etnias, como xokleng, em Ibirama (SC); nas terras indígenas kaingang, em Votouro (RS); Nonoai (RS); Xapecozinho (SC); Mangueirinha (PR); Rio das Cobras (PR); São Jerônimo (PR) e outras. “Basta apenas conferir”, afirma.
O fato é que o juiz federal responsável pela ação entendeu que essa história não deve ser resolvida com pressa. Em bom português, é uma forma para que ambas as partes apresentem novos documentos ou que um perito seja nomeado para colocar fim na celeuma.
Celeuma jurídica. Isso porque aspectos culturais, afetivos e morais certamente não serão resolvidos com a inter venção jurídica. Quem garante isso é Paulo Huf, morador e agricultor da região. “Meus avós e bisavós estão enterrados aqui, como posso sair?”, questiona.
Assim como ele, outros habitantes têm familiares enterrados em suas terras e rechaçam a idéia de sair. Pai de dois filhos, o mais velho com 10 e o mais novo com 7, Huf assegura que a família por enquanto não cresce mais. “Gostaria de ter outros, mas e se amanhã não tiver mais minhas terras, o que vou fazer, para onde vou?”, indaga. Para onde ir e o que fazer, aliás, é um dos assuntos que mais irritam o agricultor.
NÃO BASTASSE o desentendimento entre os agricultores e a Funai e, por conseqüência, com os índios, que viraram inimigos declarados, a confusão fez estremecer o relacionamento com a Igreja Católica da região. Isso porque, em audiência pública realizada após a invasão, clérigos se manifestaram a favor dos guaranis. “Vocês terão prioridade no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra”, afirmou o bispo Dom Francisco Manoel, diante de mil pessoas que se amontoavam em um campo de futebol, ao lado da igreja.
Para Dom Francisco, os índios têm direito àquela terra e ponto final. “Ele chegou a recomendar que plantássemos naquele ano, mas que no ano seguinte teríamos de sair”, conta Huf. O bispo confirma as afirmações e observa que, embora nunca tenha havido máfé por parte dos colonizadores que pensavam comprar terras legais, há de se fazer justiça. “É preciso consertar um erro histórico, nada mais”, pondera.
A posição de Dom Francisco gerou dissabores na comunidade, que passou a boicotar a missa local e, segundo ele, até ameaças de morte aconteceram. Diante do clima pesado, o arcebispo de Florianópolis (SC) e presidente da CNBB Regional Sul IV, Dom Murilo Krieger, enviou, em 18 de julho, carta aos bispos do Conselho Permanente, em Brasília (DF), acerca das ameaças sofridas pelo clérigo em Chapecó.
No documento, ele relata a posição de Dom Francisco em defesa das famílias, que devem ser devidamente indenizadas e assentadas em outra região. Diz um trecho: “Dom Francisco Manoel, sabemos que são injustas as acusações que lhe fazem e consideramos lamentáveis as atitudes de agressão à sua pessoa. Esperamos que o Ministério Público, ficando ciente dessas agressões, se posicione a seu favor e lhe garanta condições de segurança física.”
A reclamação surtiu efeito e as autoridades locais começaram a pressionar os agricultores que tivessem armas a se desfazer delas. “Quem tem não vai falar e na hora do desespero vai ser difícil segurar o pessoal”, opina Celito Werlang, vice-prefeito de Saudades e presidente do Movimento de Defesa da Propriedade e Dignidade.
Werlang questiona não só a legalidade da situação, mas a questão moral envolvida. Para ele, é inaceitável tirar 600 pessoas em favor de 100. “Em última análise, somos todos brasileiros”, avalia. Além disso, ele afirma não entender por que abrir mais reservas se as existentes na região sofrem com uma falta crônica de assistência. Ele cita como exemplo a comunidade xinguara, em Chapecó. No fundo da reserva, aliás, estão os índios que esperam o desenrolar do caso Saudades.
Morando em taperas de madeira, a 25 quilômetros da estrada asfaltada mais próxima, PLANETA visitou o local. Um velho índio, de aproximadamente 80 anos, que dizia se chamar apenas “Pedro”, contou que aquele povo nascera em Cunha Porã, fazendo eco às afirmações da Funai.
A subsistência da tribo, no entanto, é precária. Morando em terras de outra etnia, eles mal podem plantar. A região, cuja flora não favorece o artesanato, chamado de “balaio”, se restringe a pequenas miniaturas de animais, como tartarugas, tatus e guaxinins. “Enquanto não conseguimos as nossas terras, ficamos por aqui e não há mais nada que fazer”, lamenta Pedro.
“Somos escravos da Funai”
Um pedaço de 1.700 hectares cravado às margens do Rio Uruguai, na divisa entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Essa é reserva indígena xinguara, criada em 1992, no município de Chapecó (SC). Naquelas terras não há dúvidas. Os índios sempre viveram ali. “Não há polêmica, eles sempre estiveram lá”, garante o prefeito da cidade, João Rodrigues (DEM-SC). “Lamento apenas o fato de eles estarem largados, sem a menor assistência”, acrescenta.
Para chegar às terras xinguaras é preciso andar dez quilômetros em uma bem conservada estrada de chão. A área hoje habitada por aproximadamente 200 indígenas foi, num passado recente, uma propriedade agrícola semelhante à do município de Saudades, berço do conflito na região. A infra-estrutura no local conta com algumas casas de alvenaria, granjas de porcos e um pouco de terra plana.
Nesse chão, os índios plantam soja e milho. Um velho trator descansa no intervalo do trabalho, em frente à casa do cacique Idelino Fernandes, líder dos xinguaras em Chapecó.
A casa onde mora pertencia ao colono cujas terras foram desapropriadas. São três quartos, mais área de serviço e uma granja de porcos ao fundo, onde Fernandes mantém uma pequena criação para consumo e comércio local.
Com pulso forte, o cacique admite se preocupar com o futuro dos índios na região. Há menos de 30 quilômetros da cidade, Fernandes contesta a forma como são tratados. “Somos tutelados pelo Estado, mas na verdade somos escravos da Funai”, lamenta. Ele reclama que a educação é precária e que os índios não têm acesso à educação e são mantidos na condição de selvagens.
“Eles (Funai) querem que nossa cultura seja preservada, mas essa cultura que falam é de 500 anos atrás”, analisa. “Meu sonho é ter um filho doutor”, revela o cacique, que não sabe ler nem escrever.
A postura de sua tribo perante a sociedade é outro ponto de preocupação. Segundo ele, a imagem dos índios em comunidades próximas às cidades, como no caso de Chapecó, está muito associada à bebedeira. Mas, enquanto estiver no comando da comunidade xinguara, ele diz que isso não acontecerá. “Não temos como fazer uma agricultura profissional, porque não podemos financiar oficialmente o plantio”, explica. O jeito, segundo ele, é o trato “no fio do bigode”.
O cacique diz gozar de crédito na praça porque a comunidade sempre “andou na linha” e, por não existirem casos de seus comandados envolvidos com problemas na cidade, consegue comprar os insumos agrícolas e pagar depois da colheita. “Mas isso dá apenas para uma parte de nossas necessidades, porque não temos como competir com quem tem acesso a tantas coisas que não temos.” Para o futuro, Fernandes afirma ter dúvidas sobre o destino da reserva.
“Hoje, a nossa terra é suficiente, mas o número de índios está crescendo. Não demora muito, precisaremos de mais terras e o que vão fazer? Desapropriar mais terras?”, questiona. O cacique não sabe quando os problemas começarão, contudo, tem certeza que eles virão. “Enquanto acharem que somos capazes de viver da pesca, caça e de pegar frutinhas no meio do mato, nunca haverá terras suficientes”, sentencia.
A Funai responde
A reportagem de PLANETA procurou a Funai ao longo de três semanas para que se manifestasse sobre os casos citados nesta reportagem. Em nota, por meio de sua assessoria de imprensa, a entidade informou: “Com a Agenda Social dos Povos Indígenas, o governo federal está incrementando investimentos junto a essas etnias para proporcionar melhores condições de vida, combinando ações que garantam a integridade de seus territórios e a sua reprodução econômica. As principais ações a serem desenvolvidas para garantia de direitos, proteção de terras e promoção social dos índios, considerando as especificidades culturais e territoriais, estão estruturadas em três programas, conforme se observa a seguir.
O Programa de Proteção dos Povos Indígenas tem como um dos principais objetivos dar continuidade à demarcação de terras indígenas, enquanto o Programa de Promoção dos Povos Indígenas pretende fomentar projetos econômicos de geração de renda e auto-sustentação dentro das comunidades. Além disso, os benefícios de todos os programas sociais do governo federal serão estendidos às aldeias e à população indígena urbana. Essa é uma das principais metas do Programa de Qualidade de Vida dos Povos Indígenas.” A Funai, contudo, não informou o volume de recursos disponíveis nesses programas, tampouco quais as ações de maior urgência.