11/06/2021 - 11:33
Associação do setor não participou do processo de consulta pública e conseguiu uma audiência privada com secretaria do Ministério da Saúde. Questão dos alimentos ultraprocessados seria o principal ponto de discordância.Embora datada de 2020 e prevista para ser implantada entre 2021 e 2030, a nova versão do Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas e Agravos Não Transmissíveis no Brasil ainda não teve sua versão final aprovada e publicada pelo Ministério da Saúde. E o entrave reside em uma articulação feita pela Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA), entidade que representa gigantes como BRF, Nestlé, Danone, Bunge e McDonald's no Brasil.
O manual, cuja versão preliminar tem 122 páginas, apresenta e contextualiza os principais fatores de risco para uma série de doenças que, juntas, são responsáveis por mais da metade das mortes no país — de problemas cardiovasculares a respiratórios crônicos, passando por diabetes e diversos tipos de câncer. Alimentação não saudável está entre os principais fatores de risco para o desenvolvimento desses quadros.
Em outubro do ano passado, o manual foi submetido à consulta pública e ficou aberto para questionamentos e comentários de qualquer entidade da sociedade, pessoa jurídica ou pessoa física. A ABIA não se manifestou. A instituição solicitou, contudo, uma audiência com a Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), órgão do Ministério da Saúde responsável pelo plano. Conforme ata obtida via Lei de Acesso a Informação (LAI) pelo projeto O Joio e o Trigo, o encontro ocorreu em 4 de março deste ano.
Segundo o documento, na reunião, a ABIA criticou a forma como a consulta pública foi realizada e afirmou que não conseguiu “encaminhar sugestões por não se sentirem segura com o curto prazo estipulado”. Também foi comentada a “parceria de longa data da ABIA” com o Ministério da Saúde e considerou-se que o plano deveria ter ajustes.
Arnaldo Medeiros, secretário de Vigilância em Saúde, reconheceu a “importância da contribuição de representantes ativos na construção de políticas públicas, citando a relevância da ABIA”. Ele afirmou que a SVS recebeu contribuições no período de consulta pública, mas que, após encerrado, “o plano não seguiu”. Por fim, enfatizou que “o plano não será publicado sem a contribuição da instituição [ABIA]”. Ficou acertado, sem prazo oficializado, que a ABIA deverá encaminhar por escrito seus pedidos de “inserções das sugestões” no plano de combate às doenças.
Regras do jogo
Especialistas ouvidos pela DW Brasil acreditam que houve desrespeito ao processo. “É um pouco inadmissível que uma associação tão grande, do setor que é o maior empregador do Brasil, não possa cumprir prazos”, comenta a engenheira de alimentos Cristina Leonhardt, diretora de inovação da Tacta Food School. “Está bem claro que [a ABIA] não se posicionou durante a consulta pública e quer um espaço privilegiado depois.”
“A ABIA tentou quebrar as regras do jogo. Como uma instituição relevante para o setor, a associação teria um papel, uma contribuição importante para dar, mas não quis participar da consulta pública, se valendo de um mecanismo extra-oficial para tentar impor a visão deles sobre as visões de todas as demais contribuições que foram feitas antes”, opina o jornalista Guilherme Zocchio, do projeto O Joio e o Trigo.
Procurada pela reportagem, a ABIA se posicionou por meio de nota dizendo que “as boas práticas regulatórias […] recomendam o envolvimento de todas as partes interessadas” e que teria solicitado a audiência com a SVS durante o período da consulta pública, no ano passado — embora a reunião só tenha ocorrido em março. A entidade ressaltou que foram “exíguos 24 dias” para o processo. A ABIA não respondeu sobre o teor nem o estágio do ofício com as sugestões a serem apresentadas ao plano.
O Ministério da Saúde também foi questionado pela DW Brasil, mas não retornou aos pedidos de esclarecimento.
Ultraprocessados
Fontes ouvidas pela reportagem afirmam que o principal ponto de discordância das indústrias alimentícias quanto ao plano é a questão dos alimentos ultraprocessados. O conceito aparece na classificação Nova, criada há mais de 10 anos pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens), base para o Guia Alimentar para a População Brasileiro, lançado em 2014.
Pela classificação, os alimentos são divididos em quatro grupos: os in natura ou minimamente processados — ovos, leite, feijão, etc. —, os ingredientes processados — azeite, manteiga, açúcar —, os alimentos processados — como queijos e pães artesanais — e os ultraprocessados. Estes últimos, conforme define o Nupens, “não são propriamente alimentos, mas, sim, formulações de substâncias obtidas por meio do fracionamento de alimentos […]”. Parte considerável do que está nas gôndolas dos supermercados está neste grupo.
Na versão do plano de ações do Ministério da Saúde que foi submetida à consulta pública, o termo ultraprocessados aparece nominalmente seis vezes, sempre em contexto negativo. O documento diz que entre as metas estabelecidas para diminuir os fatores de risco para as doenças do tipo até 2030 está “deter o consumo de alimentos ultraprocessados”. Para isso, há a proposta de “promover subsídios para apoiar a elaboração de medidas regulatórias e fiscais para reduzir o consumo de alimentos ultraprocessados ricos em sódio, gorduras ou açúcar”.
A ABIA se defende dizendo que a “ciência e a tecnologia de alimentos, assim como a indústria brasileira de alimentos e bebidas, não utilizam etapas de processamento ou número de ingredientes como critérios para a classificação da qualidade dos alimentos, mas sim a segurança e qualidade nutricional de cada alimento”.
De acordo com o Instituto de Tecnologia de Alimentos, órgão ligado à Secretaria de Agricultura do Governo do Estado de São Paulo, “do ponto de vista técnico, não há classificação com base em graus de processamento” e “do ponto de vista estatístico, não há comprovação que exista diferença significativa entre os conteúdos nutricionais de alimentos processados nos lares, restaurantes e indústria”.
Em nota, a instituição também afirmou que tal critério “não pode ser usado para definir um alimento com inadequado para o consumo” e “não há como estabelecer que o uso moderado de açúcar, sal e gorduras é recomendável para preparações culinárias domésticas e que, ao mesmo tempo, seu uso na indústria gera produtos que devam ser evitados por conterem tais ingredientes”.
“Alguns pesquisadores alegam que o termo ultraprocessado é controverso”, comenta a nutricionista Andrea Guerra, professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Questiona-se, por exemplo, a orientação de identificar este grupo em função do número de ingredientes e a presença de ingredientes com nomes não familiares ao consumidor”.
Transparência
Pesquisador no Centro de Cooperação Internacional em Pesquisa Agronômica para o Desenvolvimento (Cirad), na França, o especialista em marketing alimentar Mikael Linder defende que as informações sejam explícitas nos rótulos dos produtos, com destaque para qualquer ingrediente que possa ser nocivo de alguma forma. “Isso tem de estar claro e de forma fácil de compreender. Ou não serve para nada”, ressalta.
Autor do livro As Revoluções da Comida, o jornalista Rafael Tonon concorda que o problema esteja na falta de informação: para ele, sabemos mais sobre o que tem numa camiseta que vestimos do que naquilo que está no nosso prato.
“A sociedade civil só poderá se proteger de lobbies e coisas assim quando tiver um papel mais ativo com a alimentação. A indústria de alimentos deixou para a gente [a sensação] de que se pode ter tudo de forma fácil, o tempo todo”, comenta.
Leonhardt cobra uma mudança de postura das empresas representadas pela ABIA. “Inovar é sair desse paradigma de vender produtos que talvez sejam questionáveis e trazer para o mundo um portfólio de produtos mais saudáveis, que vão, no final das contas, manter o próprio mercado consumidor dessa mesma indústria”, argumenta.