28/11/2025 - 12:45
Onze aves de espécie ameaçada por extinção que haviam sido soltas nos últimos anos foram contaminadas por vírus letal. Autoridades ambientais dizem que infecção vai atrasar projeto de reinserção em ambiente silvestreOnze ararinhas-azuis, uma das aves mais raras do mundo, que haviam sido reintroduzidas na natureza brasileira estão contaminadas com um vírus letal, circovírus, de acordo com exames que se tornaram públicos nesta semana. A contaminação foi encarada por ambientalistas como um duro retrocesso no plano de reintrodução das aves na natureza.
Essas 11 ararinhas-azuis (Cyanopsitta spixii) eram as únicas que vivem de maneira livre no Brasil. A ave é considerada extinta na natureza desde os anos 2000 e a maioria esmagadora dos espécimes vive em cativeiro.
“Isso não quer dizer que o projeto vai acabar, mas o comprometimento dele é claro”, afirma a analista do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Cláudia Sacramento. “Há um retrocesso, pois há uma necessidade de uma parada forçada no projeto. Tentamos reverter essa situação há muito muito tempo para tirá-las da extinção e agora essa nova ameaça”.
As aves que estavam soltas tiveram que ser recapturadas. Atualmente, o criadouro científico Ararinha-Azul, até recentemente denominado BlueSky, mantém um contrato de parceria com o ICMBio e concentra os cuidados de conservação de 103 aves em Curaçá (BA), área endêmica das ararinhas-azuis.
Impasse
O plano original era libertar mais 20 animais que estavam no criadouro em junho. Contudo, a iniciativa teve de ser adiada depois que um filhote que estava em vida livre foi diagnosticado com o vírus em maio. Desde então, há um impasse entre o ICMBio e o Criadouro Ararinha-Azul, que mantém o criadouro e executa o projeto de reintrodução das aves raras.
Segundo o órgão, o primeiro animal contaminado foi colocado em um recinto junto com outros dez que estavam em vida livre. Após testes, o circovírus foi identificado em todas essas ararinhas. Outros 20 animais que se preparavam para soltura também foram infectados, elevando o total de aves infectadas para 31.
Na época, o ICMBio determinou que o criadouro fizesse a recaptura, testagem e isolamento das ararinhas-azuis para evitar a disseminação, além de fazer a limpeza diária das instalações e dos utensílios, incluindo os comedouros. No entanto, a empresa entrou com um pedido de liminar na justiça federal para suspender a medida, que foi negada. A decisão ocorreu em outubro.
“Quando determinada a captura das aves de vida livre questionamos sobre a responsabilidade do criadouro, uma vez que se tratam de animais livres e não mais do plantel do criadouro cuja soltura foi realizada em conjunto com o ICMBio”, disse a empresa. “Apesar de estarem soltos na natureza, os animais se alimentavam e dormiam todos os dias no criadouro”, respondeu Sacramento.
Diante do descumprimento das notificações, o ICMBio multou a BlueSky em R$ 1,8 milhão.
O criadouro diz que não teve acesso aos laudos do ICMBio sobre a contaminação das ararinhas, mas que adota “as melhores medidas observado o bem-estar das aves e as limitações operacionais do criadouro”. Em nota, alega ainda que desde que notificou o primeiro caso de infecção, antecipou as medidas de segurança. “Construímos um novo recinto para alojamento das aves e instalamos grades, redes e outras medidas de isolamento”.
Condições do criadouro
Cláudia Sacramento, do ICMBio, esteve no criadouro em Curaçá para visitas técnicas.
“Ninguém estava usando EPI [Equipamento de Proteção Individual]. Qual era o EPI? Era trocar um chinelo. Os ambientes sujos, fezes dentro dos recintos. Esse vírus pode ser eliminado pelo pó da pena, pelas fezes, pelo contato com o outro, não tinha um propé [sapatilha descartável], não tinha uma máscara, uma luva, manuseio dos bichos sem EPI algum, a mesma pessoa que manuseava os positivos manuseava os negativos e a única medida de biossegurança era tomar um banho”, relata.
O patógeno afeta as penas e prejudica os voos, além de levar a deformações no bico, que dificulta a alimentação. Sem cura, a doença pode levar à morte. Até então, nenhum caso de infecção pelo circovírus tinha sido relatado em animais de vida selvagem no Brasil, uma vez que o vírus é originário da Austrália. Os pesquisadores ainda não sabem como as aves foram contaminadas. “Para mim, a disseminação da contaminação, o aumento de indivíduos positivos, mora na falta de implementação das medidas de biossegurança”, afirma Sacramento.
O criadouro Ararinha-azul, por sua vez, afirma que “as aves em vida livre capturadas seguem isoladas das demais em um recinto distante”, e que “desde o registro da presença do vírus, separou as aves e não transporta utensílios ou material entre os recintos, bem como nossa equipe sempre fez uso de produto desinfetante específico para circovírus e realiza a troca de roupa e banho quando sai de um ambiente potencialmente contaminado antes de acessar outro”.
A empresa assumiu integralmente a gestão da reintegração em 2024 após uma disputa entre o ICMBio e a ONG alemã Association for the Conservation of Threatened Parrots (ACTP), parceira da BlueSky, e que detém o controle da maior parte das aves restantes no mundo. À época, o ICMBio acusou a entidade alemã ter vendido 26 ararinhas a um comprador na Índia sem autorização. Já a ONG nega irregularidades e diz ter cumprido toda a legislação do país e obrigações contratuais. Segundo a ACTP, a transferência de aves para a Índia não envolveu transação comercial.
Ararinhas-azuis em extinção
As ararinhas-azuis são exclusivas do semiárido, e habitavam a região entre a Bahia e Pernambuco. Segundo o Ministério do Meio Ambiente (MMA), mais de cem anos de caça e tráfico levaram à queda na quantidade de animais no ambiente silvestre. Por ser uma espécie rara, a ararinha-azul é valiosa nesse mercado. “Isso mudou o ambiente rapidamente, se comparado com o tempo evolutivo”, diz a bióloga Cristina Miyaki, do Instituto de Biociências (IB) da Universidade de São Paulo (USP).
As ararinhas foram consideradas extintas na natureza nos anos 2000, quando o último espécime foi avistado. A população dessas aves já vinha minguando desde 1986, quando o último grupo selvagem foi descoberto, com três indivíduos. Miyaki explicou que, do ponto de vista evolutivo, as ararinhas azuis não são mais vulneráveis do que outros animais, mas que a ação humana foi determinante para o desaparecimento das aves.
Em 2023, pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mapearam uma área de 5,7 mil km² de clima árido no norte da Bahia, exatamente na região em que as ararinhas-azuis são endêmicas. Nessas cidades, a vegetação encolheu e o clima se tornou mais seco, o que prejudica a inserção desses animais na natureza, que já é um processo lento e caro, uma vez que demanda conhecimento técnico e infraestrutura por um longo prazo.
“A reprodução sob cuidados humanos é essencial no caso da ararinha-azul. É necessário ter uma população sustentável sob cuidados humanos, com vários indivíduos que representem a variabilidade genética da espécie, e que possam fornecer às aves para a reintrodução”, afirma Miyaki.
Plano de reintegração na natureza
Diante do desaparecimento das aves soltas no ambiente, o governo brasileiro lançou em 2012 o Plano de Ação Nacional da Conservação da Ararinha-azul (PAN Ararinha-azul), uma iniciativa para estimular a reprodução em cativeiro e depois a reintrodução dos animais em vida livre. O primeiro filhote de animais libertados na natureza nasceu em 2023.
“Acho que enquanto o meio ambiente não for uma das prioridades do Estado brasileiro, dificilmente veremos muitos exemplos de sucesso na conservação de espécies ameaçadas. Acredito que colaborações e parcerias verdadeiras são necessárias, ninguém faz conservação sozinho, mas é necessário trabalhar juntos em prol de um objetivo comum”, frisou Miyaki.
Atualmente, o Brasil possui cerca de 300 indivíduos, espalhados em duas unidades de conservação na Bahia: o Refúgio de Vida Silvestre da Ararinha-azul e a Área de Proteção Ambiental da Ararinha-azul, e no zoológico de São Paulo. “Mesmo sob cuidados humanos, não há total garantia que a ararinha-azul não possa se extinguir, mas acho que a probabilidade é baixa, dado que há sucesso reprodutivo”, diz Cristina Miyaki. “É bastante complexo realizar reintrodução, especialmente em um país como o nosso, no qual o meio ambiente não é prioridade de Estado”.
