22/06/2021 - 13:24
Em 2018, cerca de uma semana antes do segundo turno das eleições presidenciais, um grupo de mais de 40 intelectuais alemães lançou uma carta aberta sobre os riscos à democracia e aos direitos humanos no Brasil.
Quase três anos após o manifesto, signatários do documento avaliam que aquele temor acabou se confirmando sob o governo Jair Bolsonaro e dizem que as instituições democráticas, corroídas por dentro, estão sob pressão crescente, podendo não resistir.
A carta de 2018 não citava abertamente o então candidato Bolsonaro, mas fazia referências claras a declarações dadas por ele e seus apoiadores em relação à propagação de desinformação e difamações, aos ataques aos direitos de minorias, e à incitação da violência.
“Aprendemos, dolorosamente, com a história europeia e, em especial, com a história alemã, que a apologia da tortura e da violência e o desrespeito a concidadãos e minorias jamais serão solução para crises econômicas e políticas”, destacava a carta.
Ao final do texto, os intelectuais pediam que o Judiciário brasileiro e as forças democráticas lutassem pelos direitos humanos e a democracia, e defendiam a punição daqueles que violam esses princípios com palavras ou atos.
Bolsonaro acabou eleito, e seu atual mandato está entrando na fase final. Nestes quase três anos, foram frequentes a realização de atos contra instituições democráticas, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso nacional, e gestos de apoio a pedidos de intervenção militar. O presidente e alguns de seus ministros participaram ativamente destes eventos, além de alimentar com ataques verbais o ódio contra a democracia e minorias.
O país também tem visto o desmonte de órgãos ambientais e de proteção a minorias e tentativas de interferência política em instituições de fiscalização, como a Polícia Federal, além de vivenciar ataques constantes à imprensa, praticados principalmente pelo presidente.
Já a propagação de mentiras se tornou política oficial durante pandemia, com o governo promovendo medicamentos sem eficácia comprovada contra o coronavírus e desdenhando de medidas sanitárias reconhecidas e aplicadas internacionalmente.
“Não é um golpe claro, mas uma infiltração”
Diante deste cenário, acadêmicos alemães ouvidos pela DW Brasil afirmam que a preocupação expressada na carta de 2018, de certa maneira, acabou se concretizando. Para a socióloga Maria Backhouse, da Universidade de Jena, essa confirmação, porém, ocorreu de forma diferente do que ela imaginava na época.
“Tinha o receio de que Bolsonaro instalaria uma ditadura, mas isso não ocorreu porque ele está tendo sucesso em sabotar a democracia por dentro”, afirma a especialista em sociologia ambiental e desigualdade global.
Segundo ela, o presidente vem corroendo a democracia com os próprios meios deste sistema ao nomear determinados nomes para cargos estratégicos ou cortar recursos de universidades ou instituições de defesa do meio ambiente e minorias.
“A estratégia de Bolsonaro pode ser observada em vários países, não é um golpe claro, mas sim uma infiltração”, ressalta Backhouse.
Exemplos desse método de corrosão e seu impacto ocorreram em países como a Turquia de Recep Tayyip Erdogan – que ocupou o Judiciário e Forças Armadas com aliados e conseguiu assumir o controle destas instituições – ou a Hungria de Viktor Orbán – que conseguiu aprovar leis que, na prática, impossibilitam a vitória da oposição em eleições.
A economista Barbara Fritz, da Universidade Livre de Berlim, diz que o modo de agir de Bolsonaro já era previsível antes das eleições. “Desde início era previsto que o governo Bolsonaro seria antidemocrático e promoveria uma luta permanente entre Judiciário e Legislativo, que tentam proteger as instituições democráticas. A ameaça à democracia continua existindo”, destaca.
O sociólogo Hauke Brunkhorst, da Universidade de Flensburg, tem uma visão semelhante e afirma que a carta aberta continua atual. “Ainda seria um golpe de sorte caso a democracia no Brasil sobreviva nessas circunstâncias”, avalia.
Cenário sombrio em caso de reeleição
Para Brunkhorst, especialista em sociologia constitucional e teoria política, o tipo “populista caótico fascista”, como Bolsonaro ou o ex-presidente americano Donald Trump, dificilmente consegue resistir a um mandato. Mas se ele conseguir manipular o sistema eleitoral, a imprensa e outras instituições democráticas a seu favor, afirma o intelectual, como ocorreu na Hungria e na Polônia, Bolsonaro pode permanecer no poder “legalmente” por vários anos.
Devido a essas tentativas de corroer o sistema democrático por dentro, os intelectuais preveem um cenário mais sombrio no caso de um segundo mandato de Bolsonaro. Brunkhorst pontua que nenhuma democracia sobrevive à reeleição de “tais figuras, que não perseguem nada além de interesses próprios, privados e narcisistas”.
Backhouse ressalta que as instituições democráticas já estão sofrendo uma enorme pressão, mas elas não implodiram ainda. “Há muita resistência, apesar de todas as catástrofes, mas temo que num segundo mandato Bolsonaro seja mais autoritário e atue com muito mais força para destruí-las”, avalia.
Risco de golpe?
Fritz também enxerga o futuro cenário brasileiro de forma semelhante. Para a economista, as chances eleitorais de Bolsonaro, no entanto, dependem, além dos candidatos, dos rumos que a economia vai tomar neste e no próximo ano. “Há muitas incertezas neste momento, mas as condições de largada para a economia do Brasil são muito ruins, o que pode influenciar o voto em Bolsonaro”.
Segundo Brunkhorst, o fim do risco à democracia só ficará claro nas próximas eleições e depende, não somente de uma troca de governo, como também da reação dos militares neste caso. O especialista, porém, avalia que o cenário não é tão favorável para as Forças Armadas.
“Um fator muito importante é que de repente a esquerda pode voltar a ganhar eleições nas Américas e trazer para a agenda projetos radicais, com os quais ninguém contava, como a mudança da Constituição no Chile, que deixa de lado o mercado e vai de encontro à democracia e novas formas de socialismo, ou o programa político dos EUA, que vai além do New Deal. Pela primeira vez, parece que os militares brasileiros não podem mais contar com o apoio americano no caso de um golpe”, acrescenta o sociólogo.
Assim como Brunkhorst, Backhouse estima que a ameaça também depende da reação de militares a uma eventual derrota do presidente nas urnas, o que, na visão dela, pode resultar numa escalada de violência no país devido à eventual recusa de Bolsonaro em reconhecer o resultado eleitoral.