Enquanto a Bruxelas implementa regras abrangentes para garantir segurança e responsabilidade aos usuários, Washington, sob Donald Trump, reverte proteções e dá mais influência às grandes corporações de tecnologia.À medida que a inteligência artificial (IA) remodela indústrias e sociedades, os Estados Unidos e a União Europeia (UE) estão cada vez mais em desacordo sobre como regular essa tecnologia.

A rápida ascensão da IA permite que os computadores realizem tarefas autônomas que antes dependiam da inteligência humana. Isso abre inúmeras oportunidades, desde a medicina personalizada até o enfrentamento de desafios globais, como a crise climática. Mas, também representa riscos significativos, desde o deslocamento de empregos até tecnologias tendenciosas e potenciais abusos em áreas como vigilância.

Enquanto a UE implementa um conjunto abrangente de regras para garantir segurança e responsabilidade ao usuário de IA, os Estados Unidos, sob o presidente Donald Trump, se movem na direção oposta, com o afrouxamento de restrições e o empoderamento de figuras da indústria de tecnologia para influenciar as políticas do setor.

“Nos EUA, estamos vendo uma mudança clara na ênfase da segurança do usuário”, disse Lisa Soder, pesquisadora sênior de políticas do think tank de tecnologia da informação Interface em Berlim.

Trump está mudando cada vez mais a abordagem do país em relação à regulamentação da IA para priorizar a segurança nacional e os interesses da indústria, segundo a especialista. “‘A IA dos ‘Estados Unidos em primeiro lugar’ é muito predominante agora”, afirma.

A influência das Big Tech

Desde seu primeiro dia no cargo, ficou clara a proporção de influência que Trump e seu gabinete estão dispostos a dar à indústria da tecnologia sobre a regulamentação da IA.

A cerimônia de posse presidencial contou com a presença de bilionários do setor, incluindo os CEOs da OpenAI, Sam Altman; da Meta, Mark Zuckerberg, e é claro, da Tesla e SpaceX, Elon Musk, que estavam sentados de forma proeminente na segunda fileira, diretamente atrás da família de Trump.

No mesmo dia, Trump rescindiu uma ordem executiva emitida por seu antecessor, Joe Biden, desmantelando várias proteções e iniciativas de IA implementadas durante o governo do democrata.

Nos dias que se seguiram, Trump convidou Altman, bem como os CEOs das empresas de tecnologia SoftBank e Oracle, para a Casa Branca para anunciar o que ele descreveu como “de longe o maior projeto de infraestrutura de IA da história”. Nos próximos quatro anos, o megaprojeto, apelidado de Stargate, investirá até 500 bilhões de dólares (R$ 2.935 trilhões) em infraestruturas de IA, incluindo centros de dados.

“Tudo isso está acontecendo aqui nos Estados Unidos”, disse Trump aos repórteres.

Ele também assinou uma ordem executiva para a criação de um “plano de ação de IA” em 180 dias. A estratégia visa “sustentar e aumentar o domínio dos EUA em IA”.

Embora os detalhes desta política ainda permaneçam obscuros, é amplamente esperado que ela dê às big tech enorme liberdade para desenvolver novas tecnologias de IA. Essa política também deve reduzir os requisitos para que as empresas atenuem os riscos, à medida que desenvolvem aplicativos de uso cotidiano.

Até quanto a UE manterá política de segurança?

Essa política de não intervenção à regulamentação da IA contrasta fortemente com o ambiente regulatório do outro lado do Atlântico.

A União Europeia aprovou no ano passado a histórica Lei de Inteligência Artificial. Seu objetivo é proteger os cidadãos da UE dos danos potenciais da IA sem, no entanto, sufocar a inovação. Para atingir esse equilíbrio, a legislação impõe uma série de regras e requisitos aos sistemas de IA, do mínimo ao mais alto, dependendo do risco que esses sistemas representem aos direitos fundamentais dos usuários.

Mas, enquanto os defensores de regras mais rígidas aplaudem a UE por essa abordagem, que dizem ser necessária para proteger os usuários, os críticos apontam que ela colocará as empresas europeias em desvantagem em relação aos seus concorrentes no exterior.

Ao mesmo tempo, enquanto as autoridades em Bruxelas e os Estados-membros criam escritórios e equipes de funcionários para aplicar as regras, ganha corpo o debate sobre como os reguladores interpretarão as novas leis.

“Na UE, também vemos uma mudança de sentimento e muitas incertezas sobre o que é realmente viável e quão ambiciosa a UE pode ser com suas regras — por exemplo, que tipo de informação eles podem exigir das empresas”, disse Soder.

A corrida global pela IA

Especialistas esperam que a presidência de Trump tenha um impacto duradouro na corrida global pela IA: a competição internacional entre nações e empresas para desenvolver e implantar tecnologia de IA de ponta que lhes dará vantagens econômicas, militares e estratégicas.

Até agora, os Estados Unidos são os grandes favoritos, dominando tanto a pesquisa quanto o investimento em IA, e por ser o lar de gigantes da tecnologia como Google, Meta, Apple e OpenAI. Mas a China e suas empresas, classificadas em segundo lugar no desenvolvimento de IA, vem fazendo progressos rápidos – o lançamento recente do chatbot chinês DeepSeek surpreendeu seus concorrentes e investidores com um modelo de IA que diz entregar o mesmo desempenho da concorrência, só que com menos recursos.

Nos últimos anos, os esforços para desenvolver regras e barreiras vinculativas internacionalmente para as tecnologias de IA têm sido amplamente malsucedidos. Agora, com Trump na Casa Branca, eles parecem menos prováveis do que nunca.

Até mesmo os compromissos voluntários com o desenvolvimento e uso seguros de IA que muitas das grandes empresas de tecnologia assumiram no passado parecem ter sido deixados de lado, ressaltou Soder. “Quando um grande número de CEOs se encontrarem com líderes mundiais em Paris, nos dias 10 e 11 de fevereiro, por ocasião da Cúpula de Ação em Inteligência Artificial, organizada pelo governo francês, será interessante ver o quanto eles se manterão fiéis aos compromissos assumidos”, afirmou a especialista.

“No passado, as empresas prometeram trabalhar muito em nome da segurança e da confiabilidade”, disse ela. “Agora que a situação geopolítica mudou, esta cúpula será um teste realmente importante para ver se elas continuarão a fazer isso.”