As medidas de isolamento social adotadas para conter a covid-19 modificaram o comportamento alimentar das mulheres brasileiras independentemente de seu peso ou estado nutricional, revela pesquisa on-line feita entre os meses de junho e setembro, com 1.183 participantes.

De modo geral, tornaram-se mais comuns os hábitos de cozinhar (+28%), sentar-se à mesa para comer (+40%), beliscar entre as refeições (+24%) e pedir alimentos por delivery (+146%). Em contrapartida, caiu o número de adeptas das compras em supermercado (-34%) e das dietas para controle ou redução do peso (-41%).

As voluntárias com índice de massa corporal (IMC) considerado normal (eutróficas) apontaram preocupações com “saúde”, “origem natural” e “conforto afetivo” como os principais fatores que influenciaram a seleção dos alimentos consumidos durante a quarentena. Já as mulheres com sobrepeso mencionaram “prazer e “conveniência”, além de “saúde” e “origem natural”. Entre as obesas, “apelo visual” e “prazer” foram os dois principais determinantes da escolha alimentar. Os dados completos do estudo, que contou com apoio da Fapesp, estão disponíveis em artigo publicado na plataforma medRxiv, ainda sem revisão por pares.

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Permanência de motivadores

“A pesquisa revela que o confinamento alterou o comportamento de todas as participantes, independentemente do estado nutricional. Mas vale ressaltar que os motivadores da escolha alimentar entre as mulheres obesas e as eutróficas já eram diferentes antes da pandemia e isso permaneceu. O chamado ‘comer emocional’ aparece de forma mais marcante entre as voluntárias obesas ou com sobrepeso – algo que deve ser levado em conta ao pensarmos em políticas públicas para o novo normal da mulher brasileira”, diz Bruno Gualano, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e coautor do estudo, liderado por Carolina Nicoletti Ferreira, também da FM-USP.

De acordo com o pesquisador, o trabalho foi centrado nas mulheres por serem elas as principais responsáveis por definir o cardápio familiar no Brasil. Além disso, segundo Gualano, dados da literatura científica sugerem que o sexo feminino é mais propenso ao “comer emocional” do que o masculino, e também a vivenciar sentimentos de ansiedade, depressão e solidão em um contexto de isolamento, como o gerado pela pandemia.

Participaram da pesquisa voluntárias entre 18 e 72 anos (com mediana em torno de 34 anos) de diversas regiões do país, sendo a maioria branca (77,8%), solteira (55,5%) e com alta escolaridade (72,4%) – características que correspondem à população de classe média e média alta que teve mais condições de permanecer confinada nos meses em que o estudo foi realizado. Em relação ao IMC das participantes, 13,4% se declararam obesas, 26,2% afirmaram estar com sobrepeso e 60,4%, eutróficas.

Mudanças ainda mais prejudiciais

“A principal ressalva que faço ao estudo é ao fato de não termos conseguido acessar a população mais vulnerável e periférica, apesar de termos feito um grande esforço nesse sentido. Mulheres negras, pobres e de menor escolaridade estão pouco representadas em nossa amostra e é bem provável que, para elas, as mudanças alimentares causadas pela pandemia tenham sido ainda mais prejudiciais e motivadas principalmente pelo preço dos alimentos”, comenta Gualano.

O questionário foi divulgado com o auxílio de colaboradores do meio acadêmico, líderes comunitários, redes sociais, serviços de saúde e veículos de comunicação e de divulgação científica. Para participar era preciso apenas ter mais de 18 anos e responder a um questionário disponível on-line. O acesso limitado à internet e eventuais dificuldades de leitura e escrita podem ter contribuído para diminuir a adesão de mulheres com menor escolaridade, na avaliação de Gualano.

O trabalho foi financiado pela Fapesp por meio de diversos projetos (17/13552-2, 19/14820-6, 19/14819-815/26937-4 e 20/07860-9).

Estado de espírito x estado nutricional

Após analisarem as respostas das participantes por métodos estatísticos, os pesquisadores observaram uma forte correlação entre hábitos nutricionais considerados não salutares – como comer assistindo à televisão, substituir refeições por lanches ou beliscar entre as refeições – e sentimentos de depressão, ansiedade, estresse e solidão.

Um dado que chamou a atenção dos pesquisadores foi a queda de 41% na prática de dietas. A explicação otimista, segundo Gualano, é que as mulheres sabiamente teriam abandonado cardápios mais restritivos por serem estes um fator gerador de estresse.

“Mas isso também pode ser um sinal de desleixo com a saúde. Há estudos mostrando que, durante a quarentena, as mulheres estão passando mais tempo sentadas e praticando menos exercícios físicos vigorosos. Além disso, aumentou o consumo de bebidas alcoólicas, de produtos ultraprocessados e de cigarro. Há uma sensação de que tudo é permitido já que estamos na pandemia. O problema é que essa situação tem se prolongado e o teletrabalho parece ter vindo para ficar. As empresas já estão se adaptando e grande parte dessas mulheres vai continuar em casa. Por esse motivo, há risco de que esses hábitos temporários tornem-se permanentes”, avalia.

O pesquisador ressalta que há intervenções capazes de combater o problema e defende a necessidade de políticas públicas voltadas principalmente às populações mais vulneráveis, para as quais os impactos da pandemia tendem a ser mais severos e a incluir fatores como o agravamento de doenças crônicas, a insegurança alimentar e o desemprego.

Uma das alternativas seria treinar funcionários de hospitais, Unidades Básicas de Saúde (UBS) e agentes comunitários do Programa Saúde da Família (PSF) para que possam levar orientações nutricionais à população.

USP móvel

Além de investigar o impacto da quarentena sobre a saúde de indivíduos saudáveis, os pesquisadores da FM-USP têm acompanhado grupos de pacientes que antes da pandemia eram atendidos presencialmente no Hospital das Clínicas (HC-FM-USP) para tratar condições crônicas, como artrite reumatoide ou obesidade.

“Parte dessas pessoas tinha acabado de ser submetida à cirurgia bariátrica e, portanto, estava em um momento de vulnerabilidade. Precisava se acostumar com um corpo diferente, uma nova dieta e diversas mudanças em sua rotina. Mas o HC precisou abrir novos leitos para atender pacientes com a covid-19 e esses grupos ficaram desassistidos”, conta Gualano.

O pesquisador teve a ideia de alugar um carro – que ganhou a alcunha de USP móvel – e com a colaboração de pesquisadores e estudantes de pós-graduação, entre eles Diego Rezende, Sofia Sieczkowska, Gabriel Perris Esteves, Rafael Genário, Michele Nakahara-Melo, Karla Fabiana Goessler e Anthony Damiot, passou a fazer visitas domiciliares aos pacientes.

Durante esses encontros, a prática de atividade física era monitorada por meio de questionário e de um acelerômetro – aparelho que fica preso ao corpo e mede a movimentação ao longo do dia. Também foram avaliadas a rotina alimentar e a saúde mental.

Pressão arterial alta

A maioria dos pacientes avaliados apresentava aumento na pressão arterial. Do total, 25% tinham inflamação sistêmica e 20% não estavam seguindo as recomendações médicas para ingestão de suplementos vitamínicos e minerais. Além disso, um terço estava com sintomas depressivos e 40% apresentaram algum grau de ansiedade. Três pacientes relataram pensamentos suicidas e foram encaminhados para atendimento com especialista.

Cerca de 60% dos avaliados não atingiram a quantidade mínima de atividade física recomendada. Os mais inativos foram os que apresentaram pior saúde física e mental. Esses indivíduos foram submetidos a um programa remoto de exercícios ao longo de três meses. Os resultados dessa intervenção estão sendo analisados neste momento pelo grupo de pesquisa.

Os achados preliminares do trabalho – apoiado pela Fapesp e pela Disciplina de Reumatologia da FM-USP – foram divulgados nas revistas “Obesity”  e “Obesity Surgery”, na plataforma medRxiv e em um vídeo produzido pelo grupo da FM-USP.