11/07/2021 - 15:33
Há pouco mais de dois meses, pela primeira vez a humanidade pôde ouvir sons do vento da superfície de Marte, o vizinho mais próximo da Terra no Sistema Solar. Os áudios foram captados dentro da cratera Jezero pelo rover Perseverance (perseverança). Esse veículo exploratório é o quinto e mais sofisticado jipe-robô construído pela Nasa, a agência espacial norte-americana, e sua missão é encontrar vestígios de vida microbiana que possa ter existido no planeta. Para isso, conta com instrumentos de última geração, entre eles um aparelho que faz imagens em alta resolução, captura áudios e identifica os elementos químicos e os minerais presentes nas rochas e no solo marciano (ver infográfico abaixo).
O desenvolvimento do instrumento, batizado de SuperCam, teve participação decisiva do físico e engenheiro brasileiro Ivair Gontijo. “Fui o responsável por todas as interfaces entre o aparelho e o veículo, protagonista da missão Marte 2020. Fiz a ponte entre um grupo internacional de pesquisadores encarregado de desenvolver o aparelho e meus colegas na Nasa que projetaram e construíram o Perseverance”, diz Gontijo. Desde que o rover pousou, ele trabalha no fuso marciano, monitorando as imagens e os dados enviados pelo instrumento.
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Essa é a segunda participação do cientista em missões da Nasa a Marte. Apaixonado desde criança por astronomia, Gontijo nasceu há 60 anos em Moema, cidade de 4 mil habitantes em Minas Gerais, e iniciou a vida profissional em uma fazenda de criação de gado e cavalos. Nesta entrevista concedida por WhatsApp a Pesquisa Fapesp, ele conta como mudou o foco de sua carreira para ser um dos líderes de uma das missões espaciais mais avançadas em curso.
Como você entrou na Nasa?
Comecei a trabalhar lá há quase 15 anos, em 2006. A história da minha contratação é tão longa, complicada e cheia de obstáculos que virou um livro, chamado A Caminho de Marte [Editora Sextante, 2018]. Posso dizer que não foi nem na primeira, nem na segunda, nem na terceira vez que eu bati à porta da Nasa que deu certo. Depois de muitas tentativas, fui recrutado quando encontraram meu currículo no website de uma conferência da área de lasers e fibra óptica. O engenheiro que me contratou disse que procurava alguém exatamente com minha experiência e background em lasers e fabricação de dispositivos optoeletrônicos.
Foi preciso muita persistência e paciência.
Sim. Quando temos planos ambiciosos, precisamos insistir para transformar os muitos “não” que recebemos em “sim”. Conto no livro [vencedor do Prêmio Jabuti em 2019] toda a minha história, desde que saí de Moema, uma remota cidade do interior de Minas Gerais, e fui parar na Nasa. Também falo sobre os 25 séculos de conhecimento acumulado em astronomia em geral e sobre Marte em particular e explico como se projeta, constrói, lança e opera um veículo em Marte. Trabalho no Laboratório de Propulsão a Jato [JPL], que fica na região de Los Angeles, Califórnia. Dedico-me integralmente ao projeto da sonda Perseverance. Começamos a trabalhar quando é o período da tarde em Marte, pois é nesse horário que o veículo manda os dados para nós. Minha rotina, portanto, segue o fuso marciano. Como o dia lá tem cerca de 40 minutos a mais do que o nosso, Marte não tem um fuso horário fixo em relação a nós. A cada três dias a diferença de horário marciano e o nosso aqui na Terra cresce duas horas. Em alguns momentos, meu turno de trabalho se estende pela madrugada.
Qual é o seu papel na missão do Perseverance?
A partir de 2015, coordenei um grupo internacional encarregado de construir um dos instrumentos embarcados no veículo, a SuperCam ou Supercâmera, que examina o solo e as rochas de Marte em busca de compostos associados à existência de vida no planeta. Fui o responsável pelas interfaces entre o aparelho e o veículo. Os pesquisadores que desenvolveram o instrumento pertencem a instituições de três países: sete instituições francesas, entre elas o Museu Nacional de História Natural, em Paris, uma universidade espanhola, a de Valladolid, e o Laboratório Nacional de Los Alamos, no Novo México, nos Estados Unidos. Fiz a ponte entre os cientistas desses três grupos e meus colegas na Nasa responsáveis por projetar e construir o veículo. Garanti que o instrumento teria volume e massa adequados para caber no veículo, que seu software seria compatível com o do rover, que a demanda de energia elétrica seria suficiente para funcionar em Marte, e mais um milhão de outros detalhes. Trabalhei por cinco anos até que finalizamos o instrumento, testamos todas as suas funcionalidades e o integramos com o veículo Perseverance.
Quais foram os principais desafios enfrentados para construir a sonda e seus sistemas?
Construir um veículo com as características do Perseverance é algo muito complexo e que envolve um grande número de pessoas. Tudo é difícil e o que pode dar errado acaba dando. Por isso, testamos uma quantidade enorme de coisas para garantir que tudo vai funcionar bem em Marte. Os testes são feitos em condições muito mais rigorosas do que aquelas que a sonda e seus equipamentos vão encontrar em solo marciano. Talvez a maior dificuldade tenha sido trabalhar com um deadline rígido, um limite de tempo que não podia ser removido. Brincamos que a mecânica celeste não espera por ninguém. O veículo tinha que estar montado para ser lançado entre julho e agosto de 2020 [o lançamento ocorreu em 30 de julho]. Se falhássemos, teríamos que aguardar 26 meses por uma nova janela em que os dois planetas estariam nas posições corretas de suas órbitas que permitiria o lançamento.
Como avalia os resultados do projeto até agora?
Recebemos os resultados do pouso em Marte no começo da tarde, horário da Califórnia, de 18 de fevereiro. Ali pelas 15 horas fui dormir e descansei umas três ou quatro horas porque depois iria trabalhar à noite. Participei do grupo que recebeu os dados enviados pela sonda na primeira manhã lá em Marte. Começamos a receber as primeiras imagens do paraquedas abrindo e do pouso em Marte, algo absolutamente espetacular. Por isso, trabalhamos das 21 horas às 6 da manhã do dia seguinte. Foi uma jornada longa, mas muito emocionante. Os resultados até agora são muito bons. Ainda estamos na fase de testes para garantir que tudo esteja funcionando bem. No dia 19 de abril, liberamos um helicóptero, Ingenuity [engenhosidade], que foi enviado dobrado e embutido na sonda. Ele foi solto no chão, por baixo do Perseverance. O rover se afastou dele e, em seguida, o Ingenuity ficou livre para fazer o primeiro voo em Marte.
De que outras missões a Marte você já participou?
Trabalhei na missão do rover Curiosity [curiosidade], que foi lançado em 2011 e chegou em Marte em agosto de 2012. Atuei na equipe encarregada do radar que controlou o pouso do veículo. Fui o engenheiro responsável pelos transmissores e receptores do radar. O legal dessa história é que o radar do Perseverance é uma cópia do radar do Curiosity. De certa forma, eu estou indiretamente envolvido nesse outro sistema do Perseverance.
Você é o único engenheiro brasileiro na missão?
Não, tem também o engenheiro carioca Daniel Nunes, um dos cientistas do instrumento Rimfax, um radar que faz medidas abaixo da superfície do solo marciano, a até 10 metros de profundidade. Além do Daniel, vários outros brasileiros trabalham no JPL. Temos um grupo de e-mail dos lusófonos, formado principalmente por brasileiros, mas também com alguns portugueses e americanos que falam nosso idioma. Antes da pandemia, a gente se encontrava de vez em quando para falar em português.
O que falta para enviarmos naves tripuladas a Marte?
Os desafios são gigantescos e ainda falta muita coisa. Por exemplo, a produção de oxigênio para ser consumido durante a viagem e em Marte é um problema para o qual ainda não temos solução. O mesmo vale para a comida. Uma viagem tripulada para Marte vai levar 26 meses, que é o intervalo de tempo em que as órbitas dos dois planetas estão alinhadas, permitindo o lançamento da nave em direção ao planeta e o voo de volta. Não sei quando isso vai acontecer e acho que ninguém consegue responder a essa pergunta no momento. Mas espero estar vivo para ver os primeiros humanos pisando o solo de Marte.
Como é sua vida em Los Angeles?
Acordo sempre às 5 horas e tenho uma rotina corrida, com muito trabalho. Antes da pandemia ia diariamente ao JPL, que fica a mais de 50 quilômetros da minha casa. Se tem uma coisa boa nessa pandemia é que não estou mais dirigindo 106 quilômetros todos os dias. Em geral, caminho todas as noites no bairro por uma hora e, nos finais de semana, gosto de andar na praia. De vez em quando, vou passear nas montanhas aqui perto de Los Angeles, um lugar muito bonito.
Onde trabalhou antes de ser contratado pela Nasa?
A Nasa é o meu quinto emprego nos Estados Unidos. Além do Brasil, morei na Escócia, onde fiz meu doutorado. Nos Estados Unidos, inicialmente, fiz um pós-doutorado na Ucla, a Universidade da Califórnia em Los Angeles. Depois, trabalhei em empresas de telecomunicações por fibras ópticas e em uma companhia de biotecnologia, projetando lentes para cirurgia de catarata. Só depois fui contratado pela Nasa.
Como foi sua formação acadêmica?
Estudei somente em escolas públicas no Brasil. O segundo grau foi um curso técnico em agropecuária e eu exerci essa carreira por três anos. Administrei uma fazenda de criação de gado e cavalos e plantio de arroz e feijão no norte de Minas Gerais. Não tinha energia elétrica e a cidade mais próxima ficava a 100 quilômetros. Depois disso é que fui para Belo Horizonte, onde cursei a graduação em física na UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais] e o mestrado em óptica. Fiz doutorado em engenharia elétrica na Universidade de Glasgow, na Escócia. Desde criança fui fascinado por ciência e tecnologia, especialmente por astronomia. A primeira vez que vi televisão foi em 1969, na transmissão da chegada do homem à Lua. Sempre pensei em trabalhar na área espacial. Por isso tentei com tanta obstinação um emprego na Nasa.
O que você diria para jovens brasileiros que sonham em trabalhar lá?
Se até eu consegui um emprego na Nasa, creio que isso está ao alcance da maioria das pessoas. Quando somos jovens, quase tudo é possível. Devemos, claro, insistir e ter sonhos grandes e planos de longo prazo. É preciso também ser paciente, pois essas oportunidades não acontecem de uma hora para outra. Planos ambiciosos não se concretizam em seis meses, um ou cinco anos. Às vezes levam 10 ou mais. Meu livro tem um caderno de fotos coloridas com uma montagem interessante no final do álbum. A parte de cima da página mostra uma foto minha na frente do jipe na fazenda onde trabalhava em Minas e a de baixo é uma imagem minha no JPL, num lugar conhecido como Jardim de Marte, ao lado do jipe-robô Curiosity. Entre as duas fotos, passaram-se 30 anos. É uma prova de que se mantivermos o foco e perseverarmos podemos atingir nossos objetivos.
* Este artigo foi republicado do site Revista Pesquisa Fapesp sob uma licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o artigo original aqui.