08/02/2022 - 12:49
Na Amazônia, quando o sol se põe às margens do alto rio Negro, uma deslumbrante paisagem com tons de rosa forma-se no horizonte. Ao longe, quase sempre surgem pequenas embarcações. Desta vez, elas traziam os comunicadores indígenas das áreas mais distantes da bacia do rio Negro até o município de São Gabriel da Cachoeira, uma cidade em plena floresta.
A região, ainda extensamente preservada e ameaçada há décadas pela devastação e pelo garimpo ilegal, enfrenta agora também fake news difundidas em meio à pandemia de covid-19. Usar a informação para combatê-las em plena floresta é a missão de comunicadores indígenas do alto rio Negro.
Quem conhece a região sabe que a locomoção só é possível pelos rios. Se uma “voadeira” – como são chamados os barcos locais – vira, é muito difícil sobreviver às fortes correntezas. Mas isso não impediu jovens da etnia Tukano, por exemplo, de sair das proximidades da fronteira com a Colômbia, numa viagem de cerca de quatro dias pelos rios, para participar do maior encontro de comunicadores indígenas da história da Rede Wayuri, realizado em janeiro de 2022.
A Rede “Wayuri”, que na língua Nheengatu significa “trabalho coletivo”, nasceu em 2017 e reúne jovens de várias etnias da região. Eles têm, em média, de 17 a 37 anos de idade e tentam conter o avanço do desmatamento, dao garimpo ilegal e das fake news que chegam cada vez mais às aldeias e comunidades através do WhatsApp.
Durante a pandemia, “quando percebemos que as pessoas acreditavam nas mentiras que chegavam pelo WhatsApp, e também passavam de parente a parente, começamos a pensar em estratégias de comunicação para combater essas informações falsas nas comunidades”, explica Raimundo Baniwa, coordenador da comunicação da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), uma das maiores organizações indígenas do país e que é responsável pela Rede Wayuri.
“Vacina era uma dose de serpente”
Moisés Baniwa é operador de câmera e membro da Rede Wayuri. Ele conta que ouviu a palavra fake news pela primeira vez de grupos evangélicos dizendo que a vacina contra o coronavírus “era uma dose de serpente” e que quem a tomasse “viraria Satanás”.
Foi no encontro dos comunicadores indígenas, em janeiro último, que ele descobriu que a expressão inglesa fake news significa Ixaattikhaa em Baniwa, uma das muitas línguas locais. Ele pretende usar essa tradução para facilitar as explicações sobre as notícias falsas aos membros da sua comunidade.
Como em muitas terras indígenas brasileiras, a tecnologia e o uso dos celulares são comuns nas comunidades do alto rio Negro, principalmente entre os jovens. Mesmo com a internet instável, mensagens de WhatsApp são cada vez mais difundidas. Foi através delas que se disseminou muita informação falsa durante a pandemia.
“Nas comunidades baniwa, a vacinação foi muito difícil. Boatos diziam que, no Instituto Butantã, em São Paulo, as pessoas tiravam o veneno da cobra para produzir as vacinas. Isso gerava muito medo entre os parentes”, conta Moisés Baniwa.
Moisés começou a usar câmeras aos 13 anos. “Era uma daquelas máquinas de revelar” que ganhou do pai, conta. Às vezes, esperava semanas para ter seus filmes revelados em viagens entre a cidade e a aldeia. Em 2010, já adulto, trabalhou no projeto de construção de uma maloca na sua comunidade, para a qual foram comprados novos equipamentos fotográficos. “Foi assim que pudemos desenvolver mais o tema do audiovisual com a galera”, explica.
Hoje, ele filma para a Rede Wayuri, mas também leva notícias apuradas à sua comunidade e diz que, lá, os jovens da comunicação preocupam-se cada vez mais em checar informações. “Chamamos os jovens e formamos um grupo com celular, câmera. Ensinamos e depois contamos histórias para o grupo.”
Encontro de jovens comunicadores
Durante a 4ª oficina de comunicação da Rede Wayuri, em janeiro, ele ouviu que textos e imagens podem ser falsos. E que há também as deepfakes, quando as vozes são manipuladas em vídeos e uma pessoa pode aparecer dizendo algo que, de fato, ela nunca afirmou.
Foi por isso também que os comunicadores indígenas debateram como as fake news e as deepfakes podem ser preocupantes no contexto das eleições de outubro, no Brasil. “Muito bom entender esta palavra chique, em inglês – as fake news”, disse uma das comunicadoras locais durante a oficina.
O encontro reuniu cerca de 50 jovens indígenas quase todas as 23 etnias da região do alto rio Negro, entre os 10 a 18 de janeiro. Foi assessorado pelo Instituto Socioambiental (ISA) e teve apoio do Instituto para Democracia, Mídia e Intercâmbio Cultural (IDEM), com sede na Alemanha.
Inclusão digital na Amazônia
Na Amazônia, grande parte da comunicação é feita por rádio, e atualmente há cerca 400 aparelhos instalados nas comunidades. Cada um deles pode ser sintonizado em qualquer ponto do país.
“Quem sintoniza na mesma frequência ouve o que todos falam, como um grupo de WhatsApp. Mas só é possível ligar o rádio no horário em que a frequência foi contratada”, explica Cláudia Ferraz no quarto podcast produzido pelos comunicadores durante o último encontro do grupo.
Mas as lideranças indígenas da região sabem que o melhor jeito de checar informações falsas é via internet. É por isso que pedem inclusão digital através de políticas públicas adequadas. Há atualmente 20 pontos de internet instalados nas 750 comunidades da região.
Quem circula pelos locais onde há internet pode também baixar os boletins de áudio em podcast da Rede Wayuri, ouvir e compartilhar por bluetooth. Ou reproduzi-las nas rádios-poste, que são como alto-falantes que informam ecoando as vozes pelas comunidades.
Além de produzir boletins de áudio, na fase mais aguda da pandemia de covid-19, o grupo de comunicadores da Rede Wayuri viajou semanas enfrentando as corredeiras e cachoeiras dos rios da região para levar informação apurada e combater, de aldeia em aldeia, notícias falsas sobre a vacinação. Seu trabalho ganhou notoriedade e eles foram reconhecidos pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras (RSF).
Notícias falsas e garimpo
Além de alertar sobre notícias falsas relacionadas à vacina contra a covid-19, os jornalistas indígenas do alto rio Negro também sabem que muitas fake news estão relacionadas à explosão da mineração nas suas terras. Nem sempre é fácil provar isso. Mas sabem que não há interesse do atual governo federal em protegê-los do avanço do garimpo.
Sob o presidente Jair Bolsonaro, o desmatamento da Floresta Amazônica alcançou um nível alarmante: de agosto de 2018 a julho de 2021 foi 56,6% maior do que no mesmo período trienal anterior, segundo dados recentes do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
E o desmatamento vem muitas vezes acompanhado do garimpo ilegal. Os indígenas da etnia Yanomami que vivem próximos ao rio Negro e à fronteira com a Venezuela são um dos três povos mais afetados em todo o país. Em 2020, segundo dados da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (Raisg), estimou-se que cerca de 20 mil garimpeiros invadiram a Terra Indígena Yanomami.
“A covid-19 e mineração são os temas mais presentes nas nossas redes sociais”, disse o jovem yanomami J. A. [identidade preservada], que saiu da comunidade indígena de Maturacá, numa viagem de seis horas, para participar da oficina de comunicadores da Rede Wayuri, em São Gabriel da Cachoeira.
O garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami lembra cenas vistas em Serra Pelada, no Pará, na década de 1980, com muitas crateras, acampamentos colados a aldeias e comércios de garimpeiros. Uma atividade que gera forte pressão e consequências drásticas para as populações locais, como a contaminação da água de rios por mercúrio, que impacta a pesca e a saúde.
No ano passado, Bolsonaro visitou a TI Yanomami e, na ocasião, as lideranças indígenas pediram o fim do garimpo.
“Sabemos que o atual governo brasileiro entrou com a promessa de liberar o garimpo. Percebemos a presença de pessoas interessadas, principalmente manifestam-se pró-mineração”, disse uma das lideranças indígenas locais [identidade preservada] à DW Brasil.
Nesse contexto, comunicadores indígenas destacam a importância de seu papel de proteger o meio ambiente por meio da informação e reconhecem os desafios. Raimundo Baniwa, coordenador de comunicação da Foirn, diz que sua esperança “é incentivar institucionalmente o combate às fake news, porque quando elas chegam às comunidades, é muito difícil combatê-las”.
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A repórter Tainã Mansani viajou a São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, para participar da 4ª Oficina de Formação em Comunicação da Rede Wayuri como convidada do Instituto do Socioambiental (ISA) e do Instituto para Democracia, Mídia e Intercâmbio Cultural (IDEM).