06/06/2025 - 8:55
Milhares de crianças brasileiras foram levadas de maneira irregular para fora do país nos anos 1980. Agora, Justiça determina que Estado seja responsabilizado por três casos ocorridos em Minas Gerais.Uma decisão judicial de reconhecer a responsabilidade do Estado por violações contra famílias que tiveram seus bebês levados para fora do país nos anos 1980 pode ser um marco para casos do tipo, que se somam pelo Brasil. Este precedente abre caminho para que mais vítimas procurem a justiça em busca de reparação, avaliam especialistas.
A decisão da Justiça Federal do final de abril é referente a três casos ocorridos no interior de Minas Gerais, no município de Santos Dumont. Na pequena cidade de 40 mil habitantes, entre 1985 e 1987, existem denúncias sobre 176 adoções forçadas, com grande parte das crianças sendo levadas para Itália e França. O julgamento determinou que a União e o estado de Minas Gerais paguem, ao todo, R$ 1,8 milhão em indenizações a três famílias que tiveram seus filhos mandados para a Europa nesse período.
O julgamento foi referente ao caso de sete crianças, de três famílias, que foram levadas à força de suas casas por autoridades. As mães foram eram presas, interditadas e impedidas de reagir à retirada de seus filhos.
Em primeira instância, o pedido foi negado. No entanto, na segunda instância, a decisão alterou a visão inicial de que o caso haveria prescrito, considerando que os danos às famílias justificam um regime excepcional e reconhecendo a atuação do estado de Minas Gerais nas adoções ilegais. Já a União foi condenada por omissão ao permitir a saída das crianças do país.
“Usamos a tese de que crimes contra a humanidade não prescrevem. A decisão na segunda instância foi unânime em favor da ação, e espero que não seja revertida”, conta o advogado do processo, Flávio Tavares. Segundo ele, sempre houve grande desconfiança das vítimas de que recorrer à justiça pudesse ter algum efeito, uma impressão que pode mudar com a recente decisão.
“É importante para consolidar a não prescrição em casos de desaparecimentos, seguindo o entendimento internacional do tema. Havia certa resistência sobre isso”, avalia a decisão a pesquisadora Simone Rodrigues Pinto, da Universidade de Brasília (UnB). Em sua visão, o ocorrido em Santos Dumont se trata de um caso paradigmático entre os sequestros institucionais.
Mercado relevante e grandes redes
Os registros de envios de crianças brasileiras ao exterior existem há décadas, mas o tema ganhou especial intensidade ao longo dos anos 1980, quando o país chegou a ser o quarto com maior fluxo de adoção por estrangeiros no mundo. Estima-se que, entre as décadas de 1970 e 1980, cerca de 30 mil crianças brasileiras tenham sido adotadas por estrangeiros, com a maioria delas levadas para o exterior.
Além de Santos Dumont, outras cidades contam com centenas de registros de adoções forçadas, em um mercado no qual casais chegavam a pagar 10 mil dólares por criança.
À época, foi comum o uso de força por parte dos agentes do Estado, com relatos de ameaças às famílias e populações apavoradas pelo medo de terem seus filhos levados, conta Andrea Cardarello, pesquisadora da Anthera – rede internacional de pesquisa sobre família e parentesco. Também era comum o envolvimento do judiciário, incluindo juízes e advogados, dando um status legal às adoções. Na saída das crianças para o exterior, agentes ligados à imigração também integraram as redes, facilitando os trâmites, incluindo documentações falsas.
Há também muitos casos de mães em estado de vulnerabilidade que eram induzidas a aceitar as adoções, acreditando que se trataria de uma oportunidade de oferecer condições melhores aos filhos.
Além de situações envolvendo autoridades, a adoção internacional contava também com outra face no país, como no caso da quadrilha de Arlete Hilú, que comandava um esquema que sequestrava bebês de maternidades. Na época, o crime de tráfico de crianças não era tipificado no código penal.
“Salvacionismo” e opinião pública
Retiradas em sua maioria de famílias vulneráveis, parte da opinião pública via a possibilidade destas crianças irem ao exterior como algo positivo, conta Cardarello, que descreve a percepção como “salvacionismo”. Segundo ela, à época juízes chegaram a reforçar a visão em entrevistas, alegando que os adotados poderiam obter melhor qualidade de vida, inclusive dizendo que o movimento teria potencial de reduzir a criminalidade no Brasil.
Na realidade, a pesquisadora lembra que houve um número relevante de devoluções das crianças adotadas, com dificuldade na adaptação. Tavares cita ainda os casos daquelas que sofreram abusos por parte das famílias adotivas, enquanto eram forçadas a acreditar que seus pais biológicos eram responsáveis por abandoná-las.
Nos anos 1990, segundo Cardarello, passou a haver uma preocupação com a imagem no exterior, o que mudou a situação. Naquela época, depois de sucessivos escândalos, medidas para combater o tráfico internacional foram tomadas. Em 2000, o Brasil ratificou a chamada Convenção de Haia, que trata sobre o sequestro internacional de crianças.
Precedente importante
O recente julgamento abre o precedente para responsabilizar a União em outros casos, avalia Tavares. Segundo o advogado, outras vítimas vêm entrando em contato com seu escritório para saber mais sobre o tema após a decisão, incluindo algumas que foram enviadas ao exterior. Por sua vez, ele prefere manter a cautela, e diz buscar não criar grandes expectativas sobre decisões favoráveis de reparação.
Rodrigues lembra que o caso demonstra como o acesso à justiça hoje está mais amplo. “A transição democrática foi importante, principalmente com a percepção da garantia dos direitos”, avalia a pesquisadora.
À época dos crimes, no contexto dos primeiros anos do retorno democrático, a visão entre a maioria das famílias foi a de que o Direito não ofereceria mecanismos para garantir justiça. A decisão pode mudar parte da percepção sobre a negligência institucional, acredita Cardarello. Segundo a pesquisadora, países como a Austrália vêm discutindo indenizações em casos de adoções irregulares internamente, enquanto outros que receberam crianças do exterior buscam tratar sobre formas de reparação.
“Chance de adotados conhecerem sua história”
Além das indenizações, a decisão é vista como uma possibilidade de que os adotados possam ter maior acesso ao seu passado, inclusive com eventual contato com as famílias biológicas. Cardarello acredita que uma maior força ao tema possa auxiliar na criação de bancos de dados que ajudem nas buscas daqueles que tentam reencontrar seus parentes.
“Hoje, é muito difícil fazer esse tipo de buscas, costuma ser muito frustrante. Há associações que ajudaram nos últimos anos, mas é um trabalho voluntário”, aponta. A pesquisadora lembra casos de adotados que vieram seguidas vezes ao Brasil para tentar encontrar seus parentes biológicos, mas que não obtiveram nenhum sucesso com as buscas. Com maior responsabilidade do Estado, ela vê uma possibilidade de alterar este quadro.
Rodrigues reforça a visão de que os bancos de dados atualmente são um gargalo no desaparecimento de pessoas no Brasil. “Há uma série de entraves tecnológicos e econômicos”, avalia citando especialmente as dificuldades nos cruzamentos entre informações de diferentes instituições.