22/04/2024 - 6:07
Quando na fuga das tropas napoleônicas o então príncipe dom João 6° (1767-1826) transferiu a corte de Lisboa para o Rio de Janeiro, em 1808, ele trouxe em sua bagagem aquele que pode ter sido o primeiro livro sobre a filosofia de Immanuel Kant(1724-1804) a aportar em terras brasileiras.
Foi a obra Philosophie de Kant ou Principes Fondamentaux de la Philosophie Trascendental, publicada pelo francês Charles Villers (1765-1815). De acordo como filósofo Luiz Armando Bagolin, professor no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP), este pode ser considerado o marco da inserção kantiana no país.
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“Depois, em 1829, reflexões sobre a obra do filósofo aparecem nos Cadernos de Filosofia do padre Diogo Antônio Feijó [(1784-1843)]”, aponta ele. Conhecido como Regente Feijó, o sacerdote, além de religioso, também foi filósofo e político.
Mas sem dúvida a influência no Brasil mais visível e conhecida da filosofia desse alemão nascido há exatos 300 anos esteja em um desdobramento de sua filosofia iluminista, pragmática e racional: o positivismo, corrente capitaneada pelo francês Auguste Comte (1798-1857).
“Comte foi um grande leitor de Kant e o lema da bandeira brasileira, ‘ordem e progresso’, tem inspiração positivista. Comte não tirou isso do nada: ele quis dizer que quanto maiores fossem os progressos técnicos, científicos e industriais, mais harmônica e perfeita, com mais ordem será a sociedade”, afirma o filósofo e sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia de d Paulo (FESPSP) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Essa ideia originalmente tem ponto de partida nas obras de Kant.”
Era um pensamento que saudava a ideia de que as sociedades humanas estavam substituindo a superstição e a religião pela eficácia científica. “O próprio Kant usa a ideia de que abandonaremos a minoridade para alcançarmos a maioridade, com o saber científico, prático e empírico”, detalha Ramirez.
Política e direito
A filosofia kantiana está na base da organização política e do direito no Brasil. “Porque não há como falar de positivismo sem falar de Kant, e não há como falar da Proclamação da República [ocorrida em 1889], sem pensar na influência social do pensamento kantiano. Inclusive em ideais presentes hoje nos militares, como exaltação ao progresso, à técnica, os militares que tanto ovacionam o lema da bandeira”, diz o filósofo e sociólogo.
“Não à toa falamos permanentemente da busca pelo progresso, sobretudo em campanhas eleitorais”, acrescenta ele.
Ao longo do século 20, diversos autores brasileiros se debruçaram sobre a filosofia de Kant para compreender, explicar e teorizar o país. E essa interação entre academia e sociedade também influencia a organização da nação.
“A noção kantiana de política e de direito é fundamental para os tempos atuais porque se fundamenta no princípio de que a ação política somente atribui sentido à história como uma doutrina executiva do direito”, argumenta Bagolin. “Este, por sua vez, leva em consideração a moderação ou prudência como aquilo que permite a paz e garante o direito público, de todos, como o fim de toda a sociedade. Em outras palavras, a política visa ao bem-estar de todos, mas a ação deve ter sempre como ponto de partida a prudência resguardada pelo direito.”
Ramirez lembra que a prática do “direito consensual” também se fundamenta, no Brasil, em Kant. “É a ideia otimista dele de que os sujeitos dotados de racionalidade e de ciência poderiam promover o que ele chamava de imperativo categórico, a ideia de que a gente tem de tornar universais, portanto transformar em leis, premissas racionais como usar o cinto de segurança ou questões ambientais”, explica. “A sociedade civil, conceito inventado por Kant, tem a capacidade de pressionar os poderes públicos para que hajam leis em benefício da humanidade.”
Ele também salienta que Kant está no cerne do chamado “direito positivo”, em que a ideia é promover a resolução de conflitos entre partes divergentes por meio de acordos racionais, mediados pelos seus advogados.
Nas universidades e na arte
Professor na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o filósofo Diego Kosbiau Trevisan lembra que “a recepção inicial mais substancial do pensamento de Kant [no Brasil] se deu prioritariamente nas faculdades de direito”.
Segundo obra do jurista Tercio Sampaio Ferraz Jr., professor na USP, a “doutrina de Kant já era […] de algum modo conhecida” quando a Faculdade de Direito foi criada em São Paulo em 1727 — atual USP.
“Já na primeira metade do século 20, Kant […] foi influência central do [jurista] Miguel Reale [(1910-2006)] e seu ‘historicismo axiológico’ e sua ‘teoria tridimensional do direito’”, ressalta Trevisan.
“Atualmente, a comunidade de pesquisadores kantianos é uma das maiores, senão a maior, na filosofia brasileira”, comenta a filósofa Silvia Altmann, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente da Sociedade Kant Brasileira.
Ela afirma que “o pensamento de Kant marcou e ainda marca profundamente em particular o ensino e a pesquisa em filosofia no Brasil”. Isto desde o início dos cursos de graduação, a partir dos anos 1930, “intensificando-se a partir do final da década de 50 e, em um segundo momento, quando a estruturação do sistema de pós-graduação no país a partir da década de 70”.
A sociedade que ela preside foi criada em 1988 e mantém publicações regulares, como a revista Studia Kantiana.
Mas a filosofia de Kant, lembra Altmann, também está presente em outras áreas, como sociologia, história e direito, além da “interação com áreas ligadas à ciência cognitiva”.
Segundo a professora, isso ocorre, entre outras razões, porque se pode “utilizar as contribuições kantianas para investigações contemporâneas em ciências da natureza e ciência cognitiva, em problemas clássicos de fundamentação da ciência e na investigação das funções cognitivas humanas”.
“Em filosofia prática, essa influência se manifesta no tratamento de questões morais e de teoria política e jurídica, procurando aplicar aos diferentes desafios políticos e sociais o esclarecimento sistemático de suas fundamentações mais básicas”, contextualiza.
Na ciência de modo geral, a influência kantiana aparece “em vários segmentos da pesquisa acadêmica” e pode ser verificada na “proposta de superação da tensão entre racionalismo e empirismo”, avalia o filósofo e teólogo Junio Cezar da Rocha, professor na Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília.
Bagolin também vê a influência de Kant no campo da estética, sendo uma ferramenta teórica do mercado artístico. “A filosofia kantiana é fundamental, pois ela se estrutura em torno de uma argumentação que busca justificar que uma obra seja ‘arte’ desde que produzida por um indivíduo singular, o ‘gênio, visto como a disposição natural inata pela qual a natureza dá a regra à arte”, explica.
“Kant afirma que a verdade arte é a ‘arte desinteressada’ ou livre, à qual opõe o artesanato. Numa perspectiva pós-kantiana, quase sempre, e mesmo hoje, a crítica de arte sempre parte da possibilidade de justificar o trabalho artístico a partir da condição de singularidade do artista, que acaba por determinar aspectos ou qualidades em sua obra, nem sempre racionais ou compreendidos pelo próprio artista, mas que merecem ser partilhados universal e racionalmente, através do juízo, a outrem”, complementa.
“Ou seja, ainda que tratemos hoje em dia da arte contemporânea em contextos locais, brasileiros, internacionais ou do assim falado ‘sul global’, a argumentação parte quase sempre da apresentação e valoração das obras de arte seguindo uma direção pensada no final do século 18 por um filósofo alemão”, comenta ele.
Brasil como referência
Os estudos kantianos têm ganhado mais importância no país nas décadas recentes. E isto tem despertado reconhecimento internacional da comunidade científica. Prova disso é o fato de que, em 2005, o Congresso Kant Internacional, considerado o mais importante evento de pesquisadores do filósofo, foi realizado no Brasil — pela primeira vez, não na Alemanha ou nos Estados Unidos.
“Além disso, uma série de eventos internacionais dedicados à filosofia de Kant foi sediada no Brasil. Alguns deles já se tornaram regulares, como o Congresso da Sociedade Kant Brasileira, o Colóquio Kant Multilateral, os Colóquios Kantianos de Marília, os Encontros do Centro de Investigações Kantianas e o Colóquio Kant de Campinas”, destaca a física e filósofa Patricia Maria Kauark Leite, professora na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Para Leite, como o “impacto de Kant na filosofia e na ciência em geral é enorme”, com influência no pensamento de “filósofos, cientistas sociais, juristas, epistemólogos e teóricos políticos”, os estudos produzidos no Brasil “têm muito a oferecer em tempos de resultados originais”.
A trajetória da própria professora é um exemplo bem-sucedido de reconhecimento internacional. Em 2012, seu trabalho de pesquisa que mostra conexões teóricas entre a filosofia transcendental de Kant e a física quântica lhe rendeu o prêmio Louis Liard da Academia Francesa de Ciências Morais e Políticas.