15/07/2015 - 14:37
“Viver e deixar viver”, essa frase meio hippie, com vocação para letra de música, foi a base de fundação constitucional de um país, Liberland (“Liberlândia”), o mais recente território declarado estado soberano. Na prática, seria um país independente, que agora usa a frase como lema. “Nascida” em 15 de abril, a República Livre de Liberland não é resultado do desfecho de uma disputa de território, como no conflito na Faixa de Gaza, ou do sucesso de um movimento separatista, como os da Catalunha ou do País Basco, na Espanha. A bandeira amarela com uma faixa central preta que exibe no centro seu brasão de armas foi fincada e hasteada em uma área de 7 km² entre a Sérvia e a Croácia, no Leste Europeu, margeada a leste pelo rio Danúbio. Geopoliticamente, o território é croata, mas os fundadores de Liberland alegam que ele era considerado terra nullis, ou “terra de ninguém”, e que durante 25 anos nenhum país o reclamou.
O “presidente” Vít Jedlicka
Esse pedaço de terra não parece ser tão de “ninguém” assim. Antes de ser Liberland, ele era (ou é) Gonja Siga, e já figurava em mapas. Mas a área “sobrou” quando a Península dos Bálcãs se fragmentou após o colapso da Iugoslávia, nos anos 1990. Gonja Siga pareceu aos fundadores de Liberland o espaço ideal para pôr suas ideias em prática. O país se declara um Estado cujo pilar constitucional é a garantia das liberdades individual e econômica acima de tudo e exige que seus cidadãos respeitem os direitos individuais, as opiniões dos outros (independentemente de raça, etnia, orientação sexual ou religião), a propriedade privada, e que não tenham histórico criminal ou de participação em grupos nazistas ou comunistas.
“O cidadão modelo de Liberland seria Thomas Jefferson, por isso estabelecemos o país no dia de seu aniversário. Cidadãos poderão buscar a felicidade neste lugar onde podemos fazer tudo acontecer”, declarou o presidente e fundador de Liberland Vít Jedlicka, em coletiva de imprensa. O território nada mais tem que pequenas praias, floresta e alguns animais selvagens. Sua única construção, por enquanto, é uma casa em ruínas, que aguarda donativos para ser reformada e transformada em prédio histórico. A primeira infraestrutura organizada é um píer. Jedlicka garantiu que a internet está instalada, segundo ele, “antes dos banheiros”. Algumas tábuas sustentando uma cobertura de lona se tornaram o primeiro bar do local.
Segundo Jedlicka, a ideia para a nova nação veio do desejo de viver em um país onde pessoas honestas possam prosperar com o mínimo de interferência de um governo centralizado. Todos os serviços, como saúde, bombeiros ou alimentação, seriam operados voluntariamente. A ideia é que os cidadãos capacitados trabalhem sem tributação, em um nível de sociedade autorregulada. Apesar da liberdade acima de tudo, Jedlicka garante que há regras para a vida em sociedade que terão de ser respeitadas. “Claro que roubos, assassinatos e estupros são totalmente proibidos, mas uma grande gama de coisas reguladas ou ilegais em vários lugares serão perfeitamente legais em Liberland”, explicou à imprensa.
Um empreendimento
Liberland foi fundado por empresários da Associação de Colonização de Liberland, definida por eles como uma “associação idealista, dedicada ao trabalho prático de estabelecer um Estado livre e soberano e uma colonização permanente dentro dele”. O líder dessa associação é Vít Jedlicka. Eleito presidente de Liberland com dois votos – o da esposa (agora primeira-dama) e o de um colega –, esse político tcheco de 31 anos, anti-União Europeia, é membro do partido de extrema direita Cidadãos Livres da República Tcheca. Em 2014, ele tentou, sem êxito, eleger-se para o Parlamento Europeu.
Bosques e praias às margens do rio Danúbio compõem a paisagem de Liberland
Uma experiência-chave levou Jedlicka a criar Liberland: a falência da empresa de seu pai, após o banco central da República Tcheca ter elevado arbitrariamente sua taxa de juros em 25%. “Eu era muito jovem na época e foram tempos difíceis para minha família, então eu queria descobrir o que realmente estava por trás disso, e fui estudar na Cevro Institut, única universidade libertária da Europa Central”, conta. Pela página oficial do país no Facebook, a rotina de Jedlicka está mais próxima à de um homem de negócios do que à de um político ou pacifista. São seguidas reuniões para atrair investimentos.
Em uma conversa recente feita via uma rede social, Jedlicka se declarou presidente de Liberland e CEO de Liberland Corporation. Justamente por se declarar livre de taxas e impostos, Liberland tem sido vista como uma manobra para criar um paraíso fiscal. Jedli?ka aproveita suas viagens para reunir-se com grupos de pessoas que veem com entusiasmo a nova nação. Ele afirma ainda que está em contato com cerca de 50 países para obter reconhecimento.
Futuro incerto
Até o momento, Liberland diz ter sido reconhecido como país pela Sérvia (e pelo Google Maps). “Na verdade, como a área não pertence à Sérvia, [os sérvios] não se importam e devem encarar isso como uma brincadeira”, diz Leonardo Paz, professor do Ibmec e coordenador de Estudos e Debates do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri-FGV). “Não há um centímetro de território no mundo hoje que não seja reclamado por algum país”, afirma.
Liberland já enfrenta seu primeiro problema diplomático, com a Croácia. Para o governo croata, o novo país é, formalmente, uma invasão de território. Jedlicka chegou a passar uma noite na cadeia ao ser preso quando entrava em “seu” território. Autoridades croatas impediram um grupo de jornalistas de visitar o local. Pouco após a proclamação de Liberland, a bandeira fincada teria sido retirada da área. “Sem o aval da Croácia, não há viabilidade para a criação de Liberland”, afirma Paz. “Para ser reconhecida, uma nação precisa somar os fatores população, território, constituição e reconhecimento internacional, e Liberland parece não ter nenhum deles solidamente.”
A comitiva presidencial em uma visita à vizinha Sérvia
Apesar disso, Liberland tem sido vista como uma esperança de vida nova para muitos. Jedlicka e seus aliados alegam já ter recebido mais de 300 mil solicitações de cidadania até o fim de maio – curiosamente, boa parte delas vindas do Egito. Muitos foram atraídos pela promessa de um país livre. “Na verdade, essa liberdade anunciada de não intervenção do Estado é uma forma de se liberar das obrigações de um governo, como saúde e educação”, avalia Paz.
O universitário Gabriel Vogel, do Rio de Janeiro, é um dos que esperam com ansiedade um recomeço em Liberland. “Gostaria de morar lá não apenas pela oportunidade de começar uma vida nova em um lugar com menos impostos e pressões políticas, mas também de fazer parte da história, e de uma história bem bonita, pois, após uma guerra entre dois países, nasce no meio deles um cujo lema é a liberdade acima de tudo”, afirma. Se for aceito como cidadão, Vogel pensa em investir em uma livraria no local.
Jedlicka diz também que recebeu várias ofertas de aporte financeiro para a constituição de uma infraestrutura, inclusive de telecomunicações. Mas, em suas entrevistas, ele sempre tem de garantir que sua proposta não é uma piada. Restará à história contar se Liberland se tornou a pequena grande nação a que se propôs.