20/08/2025 - 6:24
Após ser acusada de levar peças de pousada na Flip, escritora negra passou um pente fino no racismo, dando nome a todos os bois.”Prezados, gostaríamos de informar que a senhora Lilia Guerra levou um lençol e uma manta durante os dias em que esteve hospedada aqui por conta da Flip.”
Por algum tempo, fiquei pensando quais teriam sido as palavras exatas que os responsáveis da pousada onde a escritora Lilia Guerra esteve hospedada utilizaram para dizer que ela havia levado um lençol e uma manta quando deixou o local. Teria sido um tom deliberadamente acusatório? Teria sido uma leve suposição, dessas bem típicas do racismo à brasileira? Ou tentaram utilizar um tom protocolar para naturalizar mais uma violência a qual pessoas negras estão sujeitas nesse país?
Depois pensei que pouco importa o tom empregado. Para quem sabe ler nas entrelinhas, a mensagem era bem clara. E mais: exigia uma reparação. Manta e lençol deveriam ser ressarcidos fosse pela Lilia, fosse pela organização da Flip. Uma situação abjeta, que nos lembra que, até quando a “vida imita a arte”, o racismo não dá tréguas.
Para quem não a conhece (um problema em si), Lilia Guerra é uma escritora que vem se destacando no cenário literário brasileiro por livros como Perifobia e O Céu para os Bastardos. Um reconhecimento que, em alguma medida, se desdobrou no convite em fazer parte da programação oficial da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) neste ano.
O evento é um dos maiores e mais importantes festivais literários do Brasil, com grande repercussão internacional. E ainda que haja muito o que ser feito para que essa festa tenha realmente a cara do país – onde 56% da população é autodeclarada negra –, nos últimos anos tem havido um esforço dentre os curadores e editoras envolvidas para trazer vozes mais diversas da literatura brasileira.
Ah sim, Lilia Guerra é uma mulher e uma autora negra.
Momentos emocionantes na Flip
Pois bem, desfrutando do reconhecimento pelo seu trabalho, Lilia Guerra não só aceitou o convite, como fez uma bela mesa com a escritora chilena Alia Trabucco Zerán. O pano de fundo que permeou a conversa se centrava no fato de que, nos seus últimos romances, ambas tinham escolhido como protagonistas mulheres que trabalhavam em serviços domésticos – um “tipo de gente” que por muito tempo pareceu invisível nas sociedades latino-americanas, inclusive nas produções literárias.
Lilia Guerra contou um pouco sobre seu processo de escrita, sobre a importância de estar ali, naquele palco principal – usando um belo vestido que trazia uma foto de Carolina Maria de Jesus estampado bem no meio do peito –, e claro, falou sobre como o racismo foi uma sombra constante na sua vida, e como o matriarcado do qual ela faz parte (principalmente sua mãe e sua avó) lutou de diferentes formas para que ela tivesse uma vida que pudesse escolher.
Em certa altura, ela leu um trecho do seu livro, no qual a personagem principal é acusada de furto pela patroa. Uma personagem que, a partir de então e por ter que manter seu emprego, passa a usar uma bolsa pequena para evitar novas acusações.
Esse foi um dos momentos mais emocionantes da sua fala. E posso afirmar isso com propriedade porque fui testemunha ocular desta mesa e acompanhei a emoção salpicada de incômodo que se instalou na plateia quando ela descreveu com a pena da ficção uma situação vivida por milhares de mulheres (negras em sua maioria) que trabalham em “casas de família”.
O racismo
Logo em seguida, Lilia foi questionada se havia passado por situação semelhante, pois quando jovem ela foi empregada doméstica. Ao responder que “não”, a plateia soltou um suspiro aliviado. Todos baixamos a guarda neste momento, numa espécie de confraternização por conta de um final feliz.
Mas a volta do racismo veio rápida. Quinze dias depois, Lilia viveu exatamente o que ela mesma havia ficcionado para sua protagonista, com algum requinte de crueldade. Não sei se de forma torta ou direta Lilia foi acusada de roubo. Uma manta e um lençol. O recado estava dado: a nossa vigilância tem que ser constante, porque o que a população negra vive no Brasil é a presunção da culpa e nunca da inocência em absolutamente todos os lugares em que estivermos.
Por sermos “naturalmente” culpados, Lilia contou no seu texto-denúncia, que seu primeiro movimento foi dizer que “não, óbvio que ela não havia levado o lençol nem a manta”. Mas dizer o óbvio cansa e nem sempre resolve a questão. E Lilia, sabedora disso, fez algo que faz com maestria: passou um pente fino no racismo, dando nome a todos os bois.
Não basta estarmos em todos os lugares. É preciso que os lugares também sejam nossos, das pessoas negras. Seja a festa literária, a pousada e a própria literatura. É preciso que possamos estar nos lugares em que queremos estar sem ter que pedir licença, permissão ou desculpas.
Enquanto pousadas despreparadas – que, pasmem, não tinha coberta nem manta para todos os hóspedes numa cidade em que fazia menos de 10 graus à noite – seguirem o eficiente protocolo racista, nós nos manteremos em vigília.
Porque, como a própria Lilia nos ensina, o céu também é dos bastardos.