01/03/2010 - 0:00
PARATY (RJ)
Todo dia, a maré alta inunda ruas de um trecho da cidade. A população local se habituou a esse convívio forçado, que virou inclusive atração turística.
O litoral brasileiro tal como se conhece hoje surgiu há 7 mil anos, depois da última glaciação. Mas a linha costeira do País, que se estende por 8,5 mil quilômetros, não é assim tão imutável como costuma aparecer nos mapas. Ela sofre pequenas alterações ao longo do tempo. Em alguns pontos, avança continente adentro, abrindo caminho para a invasão do mar. É a erosão. Em outros, empurra o oceano, alargando as praias. É a progradação. É um vaivém eterno, que pode ter como origem causas naturais ou ação do homem, que, com suas cidades e construções, ocupa áreas vulneráveis. Essa situação tende a se agravar com o aquecimento global, que não só fará o nível do mar subir, alagando áreas baixas da costa, como alterará o fluxo e o sentido de correntes marinhas e intensificará e aumentará a frequência de fenômenos como tempestades e furacões.
Preocupados com essa situação, que causa grandes prejuízos econômicos, como a destruição de prédios, ruas, portos e outras construções, a comunidade científica brasileira e o governo começam a se mexer para entender o que acontece e encontrar soluções para resolver ou mitigar os problemas. Um exemplo dessa atitude foi a realização em Rio Grande (RS), em setembro de 2009, do I Workshop Brasileiro de Mudanças Climáticas em Zonas Costeiras. O evento reuniu cerca de 200 pesquisadores, professores e estudantes universitários de todo o País para avaliar o estado atual do conhecimento sobre os impactos das mudanças climáticas no litoral brasileiro.
Antes do seminário de Rio Grande, havia sido realizado, em outubro de 2008, no Recife, o I Simpósio Nacional sobre Erosão Costeira, organizado pelo Ministério do Meio (MMA). “Estiveram reunidas mais de 130 pessoas de mais de 50 instituições de governo, sociedade civil, universidades, empresas e outras instituições”, conta o geógrafo João Luiz Nicolodi, do Instituto Oceanográfico da Fundação Universidade Rio Grande (IO – Furg), coordenador técnico da iniciativa. “Esse evento gerou um documento denominado ‘Relatório Síntese’, no qual estão expostas as orientações para a atuação geral da sociedade sobre a questão.”
O aquecimento global tende a agravar o eterno vaivém da linha costeira
Na verdade, esses dois encontros são consequência de um trabalho de maior fôlego e mais antigo, que começou há mais de 10 anos e culminou no lançamento, em 2006, do livro Erosão e progradação do litoral brasileiro, publicado pelo MMA. Durante mais de uma década, cerca de 60 pesquisadores, entre geógrafos, geólogos e oceanógrafos, de 16 universidades de 16 dos 17 Estados banhados pelo Atlântico (só o Piauí ficou de fora), realizaram o maior diagnóstico da costa brasileira, desde a foz do Rio Oiapoque, no Amapá, até o Arroio Chuí, no Rio Grande do Sul. O levantamento constatou que em 40% do litoral há problemas de erosão ou progradação.
Praia do Hermenegildo (RS)
Foto do muro, que já foi refeito várias vezes. Agora, a estátua de Iemanjá está mais recuada.
Guamaré (RN)
Dutos da Petrobras expostos pela erosão, que progride a uma taxa de 25 metros por ano.
Segundo o também geógrafo Dieter Muehe, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador do projeto, o objetivo do estudo foi realizar um diagnóstico nos Estados litorâneos sobre as tendências de erosão e progradação da linha da costa, identificar áreas críticas para ser monitoradas a longo prazo e analisar as razões da ocorrência desses fenômenos. “O livro representa um marco no diagnóstico da vulnerabilidade costeira do País”, afirma. “Ele não se limitou ao mapeamento das áreas sob erosão ou progradação, mas também apresentou uma descrição das características geológicas, geomorfológicas e oceanográficas, para um melhor entendimento das características regionais de cada área estudada.”
Os exemplos de erosão e progradação encontrados durante as pesquisas são muitos. Um deles ocorre em Guamaré (RN). “Ali existe uma erosão acentuada”, diz a geóloga Helenice Vital, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), coordenadora das pesquisas nesse Estado. “O fenômeno está pondo em risco dutos da Petrobras. Eles foram instalados a 1,5 metro de profundidade e hoje estão expostos à erosão.”
O monitoramento mensal da área das tubulações desde 2000 revelou uma taxa de erosão de 25 metros por ano. Trabalhos mais recentes utilizando dados históricos mostraram que, entre 1872 e 2001, o mar “comeu” mais de um quilômetro do terreno local. As causas, segundo Helenice, são naturais. “Os estudos têm mostrado que esse é um fenômeno natural e está relacionado principalmente à morfologia do fundo marinho e à falta de entrada de sedimentos”, explica. “Nessa área não há rios que possam contribuir com material. O ser humano interfere apenas na medida em que constrói em áreas inadequadas ou realiza intervenções sem levar em consideração os processos costeiros locais.”
O mar também vem se mostrando insaciável em Sergipe e na Bahia. Uma equipe coordenada pelo pesquisador José Maria Landim Dominguez, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), percorreu os cerca de 1.200 quilômetros do litoral dos dois Estados, dois terços dos quais a pé, e encontrou vários locais com processo erosivo grave, a maioria deles por causas naturais. É o caso do trecho sul da planície de Caravelas, no extremo sul da Bahia. “Ali houve um recuo da linha de costa de mais de 200 metros nos últimos 40 anos”, explica Dominguez. “Também encontramos situação semelhante numa ilha na desembocadura do Rio Jequitinhonha e no pontal de Mangue Seco, na foz do Rio Real.”
Ponta negra (RN)
O comércio de uma das mais famosas praias de Natal sofre com o avanço das águas.
Mas foi o homem o responsável pelo caso mais grave de erosão. Trata-se da Vila do Cabeço, na foz do Rio São Francisco, em Sergipe. A vila, onde viviam mais de 100 famílias, foi tragada pelo mar em poucas semanas, em 1998. “A causa foram as barragens construídas no Rio São Francisco”, explica Dominguez. “Elas retiveram, além da água, os sedimentos, ou seja, a areia que repunha a que era levada pelo mar da desembocadura do rio. Sem essa reposição, a praia onde ficava a vila foi tragada pelo mar.”
Litoral Norte do RS
Entre Tramandaí e Cidreira, exemplo de má ocupação: casas construídas sobre as dunas frontais.
O que o mar tira de um local quase sempre devolve em outro. Um exemplo disso é visto no Rio Grande do Sul. Separadas pelos molhes do porto de Rio Grande, as praias do Cassino e de São José do Norte vivem situações opostas. A primeira, localizada ao sul de Rio Grande, sofreu progradação, ou seja, o mar recuou por causa da retenção de sedimentos pelos molhes, cujo comprimento é de cerca de quatro quilômetros. Segundo Lauro Calliari, da Fundação Universidade de Rio Grande (Furg), em certos locais, por exemplo, entre 9 quilômetros e 12 quilômetros ao sul dos molhes, a praia aumentou cerca de 400 metros nos últimos 50 anos. “Em contrapartida, a Praia de São José do Norte, chamada de Praia do Mar Grosso, diminuiu sua largura em torno de 120 metros nos últimos 30 anos”, explica Calliari. “Isso se deveu justamente à falta de sedimentos que deveriam passar para o outro lado e não passaram por conta dos molhes.”
Rio de janeiro
Ressaca no litoral carioca. Com a elevação do nível do mar, a população das áreas metropolitanas da costa brasileira demandará ações especiais.
Farol da Conceição (RS)
Farol preservado, na foto à esquerda, e tombado pela erosão após sucessivas tempestades, na foto à direita
Caso mais grave, no entanto, ocorreu na Praia de Hermenegildo, mais ao sul do litoral gaúcho, quase na fronteira com o Uruguai. “Lá a urbanização deu-se sobre as dunas frontais, o que agravou a erosão natural”, diz Calliari. “Hoje a praia desaparece a um ritmo de três metros por ano e muitas casas já foram derrubadas. Em abril de 1999, por exemplo, uma tempestade destruiu 22 casas construídas de frente para o mar. O problema se tornou crítico porque o homem construiu num lugar inadequado, sobre as dunas, pois na época de implantação do balneário do Hermenegildo não se conheciam esses fenômenos erosivos no Brasil.”
O lugar mais intrigante para os pesquisadores fica no litoral central gaúcho, nas proximidades do Farol da Conceição, em São José do Norte. Lá, a largura da praia já diminuiu cerca de 150 metros nos últimos 50 anos, o que causou a queda do farol e da casa do faroleiro. As pesquisas mostram que nesse lugar há uma concentração de energia de ondas maior (ou seja, maior altura de ondas) por conta de bancos de areia situados na plataforma marinha entre 12 e 30 metros de profundidade, cujo núcleo é feito de rochas, que formam “lajes” com altura de 3 a 4 metros sobre o assoalho marinho.
Segundo Calliari, esses bancos funcionam como lentes de aumento que fazem as ondas ficar mais altas. “Assim, numa tempestade elas causam maior erosão nesse local”, explica. “Para agravar o problema, a areia que sai da praia dificilmente vai voltar para reconstituí-la na frente desses bancos. Nesse caso, há uma conjunção de fatores, tempestades, mais a herança geológica, que contribuem para que ocorra a erosão.”
A largura da praia já caiu 150 metros em um trecho do litoral gaúcho
Casos como esses, que ocorrem em áreas desabitadas, não preocupam tanto e pouco há a fazer. O mesmo não se pode dizer das áreas ocupadas, que são muitas. Há cerca de 300 municípios perto do mar, ao longo da costa brasileira. “Vale lembrar ainda que existem 16 regiões metropolitanas no litoral brasileiro, abrigando mais de 35 milhões de habitantes”, alerta Alberto Costa Lopes, gerente da Área Marinha do MMA.
Por isso, segundo Lopes, o MMA considera o trabalho da comunidade científica estratégico para produzir conhecimento e balizar decisões de políticas públicas. Também servirá para os próprios cidadãos, que saberão quais são as melhores áreas para construir. Eles poderão evitar colocar seu patrimônio em local de risco. Além disso, as pesquisas servirão para subsidiar a elaboração de planos diretores de ocupação da orla do País. “A intenção é evitar a urbanização em áreas críticas e estabelecer a largura de uma faixa na qual não será permitido edificar”, diz Muehe. “Nosso trabalho também servirá para alertar sobre efeitos de intervenção do homem por obras de engenharia em segmentos costeiros vulneráveis.”
O que há para ler
Dieter Muehe (org.), Erosão e Progradação do Litoral Brasileiro, Ministério do Meio .