Disputas em torno da autenticidade das histórias, críticas à supressão de trechos e debates sobre como a realidade impacta as narrativas marcam a história do Livro das Mil e uma Noites, cujos manuscritos remontam ao século 9. Reflexo de estudo iniciado nos anos 1980, obra recém-lançada por Mariza Werneck, professora de antropologia e literatura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), aborda os meandros dessa trajetória, com ênfase nas traduções de autores europeus, a partir do século 18. Resultado de outro projeto iniciado há mais de 20 anos, em 2021 Mamede Mustafa Jarouche, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), concluiu o quinto volume da tradução das Noites direto do árabe para o português. O trabalho lança luzes sobre narrativas posteriores, que parecem ter sido escritas para rivalizar com o livro milenar, mas acabaram sendo incorporadas a ele. Em comum, os dois esforços evidenciam como, ao longo dos séculos, a história do livro se confunde com as próprias narrativas que reúne.

Obra sem autoria definida que tem suas origens em tradições orais populares persas e árabes, o Livro das Mil e uma Noites parte de um conto-moldura sobre a história do sultão Shahriar. Depois de descobrir que a mulher o trai com um escravo em meio a uma orgia, ele decide se casar, a cada noite, com uma jovem diferente, assassinada ao amanhecer. Um dia, Sherazade, filha do grão-vizir, se oferece para a noite seguinte com o propósito de interromper o ciclo de vingança. Contando histórias que cativam o sultão, ela adia sua morte indefinidamente. Registros históricos indicam a existência, durante o governo da dinastia sassânida na Pérsia (s. 3 a 7 d.C.), de uma obra chamada Hazar Afsan (“Mil Fábulas”), hoje perdida. Essa obra tinha um prólogo semelhante ao das Mil e uma Noites, mas nada se sabe a respeito das histórias que continha.

Ilustração presente na versão das “Noites” do francês Antoine Galland (1646-1715), publicada em 1785. Crédito: Wikimedia Commons

Histórias que se replicam infinitamente

“Desde o século 9 circulam manuscritos em árabe de uma obra chamada Mil Noites, ou Mil e uma Noites. Apesar do título, os documentos não contavam com essa quantidade de noites”, relata Jarouche, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Segundo ele, o uso do título Mil, ou Mil e uma, é uma forma de remeter à ideia de histórias que se replicam infinitamente. “Com o passar dos anos, escribas, compiladores e tradutores coletaram, inventaram e reuniram novas narrativas para chegar, de fato, às mil e uma noites”, conta. No começo do século 18I, o livro foi vertido para o francês e, em seguida, para o inglês e o alemão. Em um segundo momento, para o russo, italiano e espanhol. Mais tarde, as histórias passaram a ser traduzidas para outros inúmeros idiomas.

Interessada em compreender a história do livro e de suas traduções, Werneck tem analisado versões da obra para o francês e o inglês. Os achados do estudo foram publicados em O Livro das Noites: Memória-escritura-melancolia (Educ, 2021). “A história do livro caracteriza-se por relações belicosas entre os tradutores”, escreve, em um dos capítulos. Responsável por introduzir as histórias das Noites no Ocidente, o orientalista Antoine Galland (1646-1715) verteu os contos do árabe para o francês entre 1704 e 1717, no contexto da corte do rei Luís 14 (1638-1715). “Disseminado por conta do interesse da sociedade europeia em ler relatos de viagens a lugares exóticos, o trabalho de Galland foi considerado mais uma adaptação do que uma tradução, na medida em que suprimiu os poemas, porque os considerava obscuros, as longas enumerações usadas para descrever personagens e a paisagem, porque as achava excessivas, além de expurgar todo o conteúdo erótico, que julgava obsceno”, comenta Werneck.

Galland também incorporou narrativas que lhe foram contadas por Hanna, criado proveniente de Alepo, cidade situada no território que hoje corresponde à Síria. Em relação a esses contos, Jarouche explica que Hanna é quem teria relatado a Galland as histórias de Ali Babá, Aladim e Sindbad, algumas das mais famosas das Noites.

Gravura colorida do artista orientalista francês Léon Carré (1878-1942) feita para a história da princesa Budur, traduzida por Joseph Charles Mardrus (1868-1949) em sua edição das “Noites”. Crédito: Wikimedia Commons

Possível origem persa

Outra tradução para o francês estudada por Werneck foi a do médico e poeta Joseph Charles Mardrus (1868-1949), editada entre 1898 e 1904. Caracterizada pela “obsessão pelo íntegro e literal e a pretensão de aniquilar Galland”, a versão de Mardrus “carrega nas tintas em tudo o que diz respeito às tentações da carne”, escreve a pesquisadora em seu estudo.

As traduções para o inglês foram as primeiras a despertar a atenção de orientalistas para uma possível origem persa de algumas narrativas do livro. Tais versões acabaram por acirrar o caráter polêmico de sua história ao “transformar as Noites em um pretexto para reunir, ao seu redor, uma portentosa documentação”, observa Werneck. De acordo com ela, as notas foram crescendo nas sucessivas traduções, chegando a ocupar sete volumes suplementares no caso do trabalho do orientalista e diplomata britânico Richard Burton (1821-1890), concluído em 1888 e que enfatiza relatos eróticos e cenas obscenas.

Já o arabista sírio René Rizqallah Khawam (1917-2004) pesquisou e traduziu manuscritos do livro durante cerca de 40 anos – a primeira edição foi publicada em 1965. “Diferentemente dos que o precederam, Khawam não divide as histórias em noites, organiza os contos em ciclos temáticos e os nomeia de forma livre, sob a justificativa de que o trabalho foi elaborado a partir de manuscrito ao qual somente ele teria tido acesso”, conta Werneck. “Como elemento comum, todos esses tradutores pareciam estar mais preocupados em defender a autenticidade de suas versões, compreendendo-as mais como documentos históricos do que como textos literários”, sustenta a pesquisadora.

Ilustração do pintor iraniano Abul Hasan Ghaffari (1814-1866), de meados do século 19, para tradução persa. A obra integra acervo da biblioteca pública Golestān, em Teerã, no Irã. Crédito: Wikimedia Commons

Tentativa de controle do imaginário

No Brasil, o médico e poeta Jamil Almansur Haddad (1914-1988) prefaciou e organizou a tradução do Livro das Mil e uma Noites para o português a partir da versão em francês de Mardrus. O trabalho foi feito por uma equipe de tradutores sob sua coordenação. A obra foi publicada pela Editora Saraiva, em 1961.

“Mardrus e os tradutores brasileiros se valeram de recursos das artes mnemônicas da história oral, com relatos minuciosos da paisagem e dos personagens. Descrições de vestidos de princesas, por exemplo, podem ocupar 20 páginas, diferentemente de Galland, que optou pela economia da linguagem”, compara a pesquisadora.

Ao olhar para esse conjunto de traduções, Werneck sustenta que os esforços por enfatizar o caráter documental das Noites, mais acentuado em versões inglesas, acabaram por negar a ficcionalidade da obra. “A busca da verdade nas variantes das histórias ou nas traduções revela uma forma particular de desprezo pela natureza ficcional do livro. A insistência em transformar a literatura em documento, ou em prova de verdade, faz parte de uma tentativa de controle do imaginário”, sustenta a pesquisadora em um dos capítulos do livro.

Obra do inglês Albert Letchford Burton (1866-1905) para tradução de John Payne (1842-1916), publicada em 1901. Os 500 exemplares desse livro tornaram-se relíquias disputadas por colecionadores. Crédito: Wikimedia Commons

Os segredos dos manuscritos

As histórias do Livro das Mil e uma Noites começaram a circular no Brasil a partir de três traduções do francês, sendo uma delas a obra prefaciada por Haddad. A primeira tradução diretamente do árabe foi desenvolvida por Jarouche. Os primórdios desse trabalho remontam a uma bolsa de pesquisa concedida pela Fapesp em 2000. Naquele ano, Jarouche esteve na Universidade do Cairo, no Egito, estudando a obra e outro clássico árabe: o Livro de Kalila e Dimna. No ano seguinte, a convite da Editora Globo, passou a traduzir as histórias. O primeiro volume foi publicado em 2005.

Nele e nos outros dois volumes, Jarouche traduziu cronologicamente contos de manuscritos do século 15, chamados de ramo sírio. “Já no quarto, decidi fazer uma espécie de antologia, selecionando histórias com diferentes temas, origens e recortes temporais”, conta. “Lidar diretamente com manuscritos oferece mais opções de aproximações estéticas da língua original”, diz. O árabe utilizado nos manuscritos, conta o pesquisador, não tem vírgulas e pontos, oferecendo liberdade sintática ao tradutor, que ora pode optar por fazer frases curtas, ora frases subordinadas.

Esses documentos contam com expressões vulgares que não foram incorporadas às edições impressas. Um exemplo disso pode ser encontrado em uma das histórias mais antigas, localizada em manuscritos do ramo sírio, publicada no primeiro volume de sua tradução. Nela, um jovem carregador de Bagdá entra na casa em que viviam três moças, começa a beber e a se divertir em uma espécie de piscina, onde todos se despem. Apesar de o conto não trazer cenas explícitas de sexo, os personagens utilizam inúmeros vocábulos e expressões para designar o órgão sexual feminino. “Nas notas, transcrevi e traduzi todas essas palavras, algo que não é encontrado em outras edições impressas”, compara.

Publicado no ano passado, no quinto volume da tradução das Noites, Sherazade narra as histórias de ʿUmar Annuʿmān e seus filhos, três gerações de míticos reis muçulmanos que viviam entre Bagdá e Damasco e buscavam conquistar Constantinopla, cidade que hoje corresponde a Istambul, na Turquia. A disputa funciona como pano de fundo para várias histórias, que envolvem “viciados em haxixe, golpistas, loucos de amor e amantes mutilados por obra do jogo cego das paixões”, escreve Jarouche na introdução do tomo.

Manuscrito das “Noites” que integra acervo da biblioteca da Universidade de Tübingen, na Alemanha. Crédito: Tübingen Universitat

Fixação do texto em árabe

“Até hoje, em todo o mundo, as traduções dessa epopeia vêm sendo feitas a partir de edições em árabe, nas quais o texto original é censurado e reduzido em cerca de 40% do seu tamanho original”, explica Jarouche. Diferentemente de seus predecessores, Jarouche optou por verter essa história ao português valendo-se de manuscritos que datam dos séculos 14 a 19 e integram acervos de instituições como a John Rylands Library, em Manchester, na Inglaterra, a Biblioteca da Universidade de Tübingen, na Alemanha, a Biblioteca Nacional da França e a Real Academia de História, da Espanha.

“Esses manuscritos apresentam diferenças de extensão e qualidade, são repletos de lacunas e partes ilegíveis”, conta. “Por causa disso, antes de começar a tradução propriamente dita, precisei realizar a fixação do texto em árabe, ou seja, determinar que partes de cada documento seriam utilizadas para compor minha tradução. Para isso, realizei pesquisas em 12 manuscritos diferentes.” Jarouche explica ainda que, antes de serem incorporadas às Noites, as histórias de ʿUmar Annuʿmān circularam de forma autônoma. “Podemos estar diante de histórias criadas para rivalizar com as Noites, mas que acabaram sendo tragadas por ela e contribuíram decisivamente para completá-las”, considera.

Por fim, valendo-se de teorias formuladas pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), e considerando que na mitologia não é possível identificar originais, Werneck sustenta que as Noites são o conjunto de todas as suas versões e que não faz sentido considerar algum conto como falso. “As histórias seguem sendo inventadas para além do livro, seus intérpretes fazem novas reescrituras e todas elas integram a obra”, defende.

Formação de tradutores

Apesar de contar com poucos tradutores do árabe, o panorama brasileiro começa a mudar, a partir de esforços de um núcleo da FFLCH-USP. Funcionando como escolas preparatórias de estudiosos do árabe para os ofícios da tradução literária e reunindo alunos da graduação e da pós, o Grupo de Tradução da Poesia Árabe Contemporânea foi criado em 2012 por Michel Sleiman, enquanto o Tarjama foi constituído por Safa Jubran no ano seguinte. No caso deste último, as atividades partiram de micronarrativas e contos de autores contemporâneos, que são breves e apresentam sintaxe simples.

“O miniconto árabe constitui um microcosmo de procedimentos de linguagem que os tradutores em formação reencontrarão depois nos textos mais longos”, relatam os pesquisadores em artigo publicado em 2020. Na sequência, foram incorporadas narrativas mais longas, de autores de diversas origens.

“Os grupos estão formando uma nova geração de tradutores do árabe no Brasil”, explica Jubran, vencedora, em 2019, do prêmio Sheikh Hamad de Tradução e Entendimento Internacional, oferecido pelo governo do Qatar. Ela identifica interesse crescente do mercado editorial brasileiro pela literatura árabe, movimento impulsionado por países como Emirados Árabes e o próprio Qatar, que nos últimos 10 anos têm investido em prêmios e eventos literários. Além da USP, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) oferece cursos de bacharelado e licenciatura em português-árabe. Em 2019, a Universidade Federal de Sergipe (UFS) criou o Centro de Estudos Árabes e Islâmicos, que atua com linhas de pesquisa sobre a Palestina, geopolítica, história e presença árabe no Brasil.

PROJETO

A retórica nas transformações narrativas do livro de Kalila e Dimna e do livro As Mil e uma Noites (nº 99/08803-6); Modalidade Bolsa no Exterior ‒ Pesquisa; Pesquisador responsável Mamede Mustafa Jarouche (USP); Investimento R$ 71.366,99.

ARTIGO CIENTÍFICO

SLEIMAN, M. e JUBRAN, S. Mão na massa! A prática da tradução coletivaRevista Criação e Crítica. p. 5-18, ago. 2020.

LIVROS

Livro das mil e uma noites: volume 5. Ramo egípcio: A saga de ʿUmar Annuʿmān e fábulas de Sahrazad. Tradução de Mamede Mustafa Jarouche. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021.

WERNECK, M. O livro das noites: Memória – Escritura – Melancolia. São Paulo: Educ, 2021.

* Este artigo Revista Pesquisa Fapesp. Leia o artigo original aqui.