Muitos alemães dizem que a Alemanha estava melhor quando Merkel governava. Elogiada por rivais e criticada dentro do próprio partido, ex-chanceler federal se mantém afastada da política desde que deixou o poder.De cada três alemães, dois acham que a situação da Alemanha está hoje pior do que há dois anos e meio, quando chegou ao fim o quarto governo da então chanceler federal, Angela Merkel, constatou recentemente uma pesquisa do instituto YouGov.

A pesquisa do YouGov ouviu 2.300 pessoas na Alemanha. Quando perguntados sobre as razões para sua avaliação da situação, 28% disseram que a culpa era do “governo ruim” da coalizão entre o Partido Social-Democrata (SPD), o Partido Verde e o partido liberal FDP, que sucedeu a grande coalizão entre os conservadores CDU/CSU e o SPD, liderada por Merkel, em dezembro de 2021. Para um quarto dos consultados, as condições de vida permaneceram mais ou menos as mesmas.

É possível que Merkel tenha recebido essa informação com o pragmatismo e a discrição que marcaram seu estilo de governo de 2005 a 2021.

Ela certamente está ciente de que quem a sucedeu tem de lidar com crises graves: a guerra da Rússia contra a Ucrânia, a inflação daí resultante, os altos preços da energia e a guerra no Oriente Médio. E ainda com a polarização cada vez maior da sociedade alemã, o avanço da extrema direita em toda a Europa, a burocracia paralisante e a infraestrutura defasada da Alemanha.

Símbolo da democracia alemã

Desde que deixou o poder, Merkel pouco apareceu em público – como ela, aliás, havia anunciado antes de sair. Ela foi a primeira chefe de governo na Alemanha do pós-Guerra a deixar voluntariamente o poder ao não se candidatar a uma nova reeleição em 2021. E ela é a primeira que, aparentemente, não sente falta dos holofotes.

Agora, quando ela faz 70 anos, nesta quarta-feira (17/07), muitas pessoas estão se lembrando dela e a parabenizando. Por exemplo o presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, que foi duas vezes ministro do Exterior de Merkel.

Numa saudação oficial de aniversário, Steinmeier disse que Merkel, que é oriunda da antiga Alemanha Oriental, é “um exemplo e um símbolo” da democracia alemã. O que a diferencia é que os seus 70 anos de vida podem ser divididos em duas fases de igual duração: “Os primeiros 35 anos até a queda do Muro de Berlim. E os segundos 35 anos na tão sonhada liberdade”, disse o chefe de Estado.

“Sempre foi importante para você enfatizar o valor da liberdade e o valor de uma sociedade esclarecida. Seus argumentos eram tão convincentes porque você sabia muito bem, por experiência própria, o valor inestimável de viver numa democracia liberal”, afirmou Steinmeier, dirigindo-se à antiga chanceler federal.

Guinada para a política na Reunificação

Merkel sempre foi confrontada com suas origens na Alemanha Oriental, sua história como cientista física, afastada da política, que só se voltou para a política em meio às mudanças sociais após a queda do Muro de Berlim – ou seja, bem depois do que os seus contemporâneos políticos ocidentais, em sua maioria homens. Isso também fica claro num novo documentário de cinco partes que está disponível no site da emissora alemã ARD, chamado Os anos fatídicos de uma chanceler federal.

Nele, a própria Merkel conta como se mudou para um apartamento velho e decadente na então Berlim Oriental em seu aniversário de 30 anos, em 1984. Seu primeiro casamento havia acabado de fracassar. Seu pai, um pastor luterano, foi visitá-la. “Ele olha em volta e, em vez de me parabenizar, diz: ‘Muito longe na vida você ainda não chegou'”, relembra Merkel, 40 anos depois.

E como ela chegaria nos anos que se seguiram: em retrospecto, o caminho de Merkel – de vice-porta-voz do primeiro governante democraticamente eleito da Alemanha Oriental a ministra e à longa era de seu governo – parece uma fábula, quase irreal. Só mesmo os anos da Reunificação poderiam dar início a uma carreira singular como essa.

Depois que deixou o poder, Merkel apareceu em público apenas algumas poucas vezes. Uma delas foi em maio deste ano, quando o ex-ministro do Meio Ambiente Jürgen Trittin, do Partido Verde, encerrou sua carreira política – um gesto surpreendente, pois pouco os uniu durante seus anos de atividade política.

E um encontro entre Merkel e o ex-presidente dos EUA Barack Obama, em Berlim, em maio de 2023, chegou a fazer algumas manchetes na imprensa alemã. Longe dos olhos do público, sabe-se que Merkel está ocupada escrevendo suas memórias, que devem ser publicadas ainda em 2024 na Alemanha.

Críticas na CDU, elogios de rivais

Merkel se mantém amplamente afastada de seu partido, a conservadora União Democrata Cristã (CDU). Ela não compareceu a nenhuma conferência partidária desde que deixou o poder. Neste aniversário dela, o atual vice-líder da bancada conservadora no Bundestag (Parlamento), Jens Spahn, deu uma entrevista à imprensa alemã na qual saudou as realizações da ex-chanceler federal, mas também disse que ela cometeu três grandes erros: “A migração irregular em massa desde 2015 desestabilizou e sobrecarregou a sociedade alemã”, disse o ex-ministro da Saúde de Merkel. “Deveríamos ter lidado com a Rússia de Putin de forma muito diferente no mais tardar a partir de 2014”. O terceiro erro, segundo Spahn, foi o abandono da energia nuclear após a tragédia de Fukushima, em 2011.

Membros da atual coalizão de governo, formada por SPD, Partido Verde e FDP, dizem que a era Merkel foi marcada por uma atitude de querer impor o mínimo possível de mudanças aos alemães e, agora, essas mudanças precisam ser feitas às pressas: digitalização, transição energética, falta de trabalhadores qualificados. E num mundo no qual os sentimentos nacionalistas são cada vez mais agressivos e ameaçadores, a Alemanha precisa ainda aprender rapidamente a se defender, inclusive militarmente.

Mesmo assim, até rivais políticos, como o vice-chanceler Robert Habeck, do Partido Verde, encontram palavras favoráveis ao falar da mulher que liderou o país durante as crises financeira e do euro e a pandemia do coronavírus. Em junho, Habeck escreveu sobre a ex-chanceler federal na edição alemã da revista Rolling Stone. Ele disse que, em Merkel, era possível sentir uma normalidade e uma proximidade raras em políticos.

“Você podia imaginar Merkel fazendo um bolo, descascando batatas ou assistindo ao Tatort [popular programa de televisão na Alemanha] e sabia que ela, mesmo sendo chefe de governo, também ia ao supermercado, ao cinema e ao teatro” – um óbvio elogio à famosa aversão de Merkel pela ostentação e pela vaidade.