15/05/2019 - 8:37
Há uma crença geral de que o louco vive num mundo seu, particular e fechado, e vê coisas a que ninguém tem acesso. Mas o psiquiatra americano Wilson van Dusen anotou, durante 16 anos, as narrativas das alucinações de doentes mentais e demonstrou que todos eles veem basicamente a mesma coisa: espíritos. “Todos os delírios são iguais e não são amontoados caóticos de visões e palavras, mas a descrição organizada de um mundo invisível, fantasticamente coerente”, afirma ele.
Esse mundo invisível corresponde, ponto por ponto, ao “mundo dos espíritos” descrito pelo teólogo sueco Emmanuel Swedenborg (1688-1772), e não é exclusivo dos doentes mentais. Existe potencialmente em cada um de nós e, para ficar louco, basta afrouxar o controle da vontade e permitir que os espíritos adquiram existência independente. Uma vez “despertos”, eles anulam a vontade do doente e passam a persegui-lo e atormentá-lo, e o obrigam a fazer todo tipo de coisas sem sentido aparente. Por isso, a maioria das pessoas jamais os vê. Só os médiuns e clarividentes notáveis, como o próprio Swedenborg, conseguem penetrar nesse “outro mundo” e depois voltar, sadios e fortes, para desempenhar suas tarefas na vida corrente. Para os outros, é quase sempre uma viagem sem retorno.
O dr. Van Dusen trabalhou e fez experiências no Mendocino State Hospital, da Califórnia, considerado uma das melhores instituições psiquiátricas dos Estados Unidos. Ele já conhecia os escritos de Swedenborg e ficou chocado com a semelhança entre a descrição do mundo dos espíritos pelo teólogo sueco e as alucinações dos doentes.
A hipótese de que o próprio Swedenborg estivesse louco foi afastada logo de início, porque uma vida tão produtiva e equilibrada como a dele seria impossível sob a pressão de uma doença mental, e também porque os pacientes temem suas experiências interiores e fogem delas, enquanto o teólogo se deixava deliberadamente “possuir” pelos espíritos, interrompendo as experiências quando queria.
Preparo prévio
Além disso, o próprio Swedenborg deixara muito claro que ninguém deveria buscar um contato com o mundo dos espíritos se não estivesse preparado para sair dele e retomar suas atividades. Normalmente, esse mundo permanecia fechado (as pessoas ignorando a existência dos espíritos e estes ignorando a experiência das pessoas) e só se abria durante a loucura, quando a barreira da consciência era enfraquecida e quebrada.
Na época de Swedenborg não havia conhecimento científico sobre a esquizofrenia, mas ele teve uma intuição maravilhosa sobre o processo dessa doença, ao declarar que a quebra da barreira consciente ocorria quando a pessoa começava a dar excessiva atenção às próprias fantasias, por ser demasiado orgulhosa para buscar as satisfações normais da vida ou por não desejar mais ser útil socialmente. Hoje, a ciência reconhece que a fuga da responsabilidade social é um componente fundamental da esquizofrenia e que a aquisição de um papel útil na comunidade pode ser um caminho para a recuperação.
Assim, Van Dusen concluiu que valia a pena investigar mais a fundo as hipóteses de Swedenborg e adotou, para isso, um método puramente descritivo, observando e relatando as alucinações sem julgá-las, aceitando a palavra dos doentes que viam nelas a pura verdade.
Após coletar um volume impressionante de depoimentos, Van Dusen notou que as diferenças entre as alucinações de alcoólatras, esquizofrênicos, epiléticos e drogados eram mínimas, se comparadas às semelhanças. Quase todos eles contam ter tido contatos com figuras ou personagens de “um outro mundo”, que irrompem em suas vidas repentinamente, atormentando-os, fazendo ameaças e promessas e alterando seu comportamento.
Embora ninguém mais os veja, esses personagens surgem para os doentes como dotados de existência real, independente da sua vontade. Referem-se a eles dizendo “eles”, “os outros”, “as vozes”, “os espíritos”. No entanto, nenhuma das figuras tem uma identidade precisa: adotam a forma de uma pessoa, logo a seguir de outra, desaparecem repentinamente ou então deixam de ter formas e passam a ter somente vozes, de modo que é impossível “pegá-las”. Há momentos em que o paciente não distingue mais entre ele mesmo e os espíritos, tão enfraquecida está a sua vontade. E, em algumas dessas ocasiões, o “espírito” conversou diretamente com Van Dusen.
Níveis baixo e alto
“Logo descobri”, afirmou o psiquiatra em entrevista à revista “Bres”, da Holanda, “que há dois tipos de experiências nesse sentido, e também dois tipos de vozes: vozes de nível baixo e de nível alto. As primeiras parecem vozes de bêbados que gostam de amolar os outros num bar. Elas propõem ações degradantes e, quando o paciente obedece, elas o xingam. Procuram achar um ponto fraco na consciência do paciente e começam a atacá-lo sem parar. Às vezes ‘roubam’ recordações ou ideias da memória do doente, anunciam que ele vai morrer logo ou o induzem a fazer coisas idiotas, como ficar com o braço levantado, ameaçando-o de coisas terríveis se ele não o fizer, e rindo dele quando obedece. É algo horrível, porque o paciente não tem alternativa”.
“Às vezes”, prossegue Van Dusen, “os espíritos tentam se apoderar de uma parte do corpo do paciente – um olho, uma orelha –, e ele então perde o controle dessa parte ou jura que ela não lhe pertence. Caso contrário, eles o perseguem, anunciando sua morte ou ameaçando causar-lhe dores, que realmente ocorrem, só para mostrar sua força. Um paciente viu uma corda descendo do nada, enquanto ouvia vozes que discutiam a melhor maneira de enforcá-lo”.
Esses espíritos apresentam vocabulário e ideias limitados, não têm raciocínio lógico e, muitas vezes, nem memória própria. Mas segundo os espíritos mais elevados, afirma Van Dusen, a tarefa dos espíritos de baixo nível é precisamente revelar as fraquezas da pessoa, e isso eles fazem com uma paciência insuperável. Eles perseguem o paciente repetindo sempre as mesmas coisas (um deles repetiu durante meses somente a palavra “olá”), e para isso não é preciso mesmo muita inteligência. Parecem estar presos às partes mais inferiores da mente do paciente, nunca mostrando um pensamento individual de nível mais elevado.
Distância da religião
Outra característica permanente dos espíritos de nível baixo é sua ausência de religiosidade. Eles procuram atrapalhar de todas as maneiras as práticas religiosas do paciente e alguns até afirmam provir diretamente do inferno. Quando Van Dusen perguntou a um paciente totalmente possuído por uma dessas vozes se era um espírito que falava por ele, a voz respondeu: “O único espírito que conhecemos é o das garrafas”.
As alucinações com espíritos de ordem superior são mais raras. Um dos pacientes de Van Dusen tinha sido perturbado durante muito tempo por espíritos que discutiam o melhor modo de matá-lo. Um dia, ele viu uma luz grande, como o Sol, e soube imediatamente que ela era de ordem superior, porque o respeitava e se retirava sempre que ele sentia medo, ao contrário dos outros, que o atacavam com mais intensidade justamente quando ele ficava com medo.
Ao contrário dos de ordem inferior, que tagarelam sem parar, os espíritos superiores só se comunicam através de símbolos, que às vezes escapam à compreensão humana. Parecem, diz Van Dusen, residir na camada do inconsciente, estudada por Jung, enquanto os espíritos inferiores estariam na camada dos instintos, estudada por Freud.
“Aprendi a ensinar os pacientes a se aproximarem da ordem superior”, diz Van Dusen, “porque os espíritos dessa camada procuram fortalecer os valores da individualidade. Aconselhei aquele paciente a aproximar-se do Sol que havia visto e ele foi penetrando num mundo de novas experiências luminosas, que de certo modo lhe davam mais medo que o tagarelar idiota das vozes assassinas. Numa alucinação, ele estava estendido no chão ao longo de um caminho que tinha uma porta no fim. Atrás dessa porta, ele sabia que estavam trancadas as forças do inferno. Ele estava a ponto de abri-la quando apareceu uma figura imponente, que o aconselhou, através da telepatia, a deixá-la fechada e a acompanhá-lo a uma região onde ele teve outras experiências, que o ajudaram a sarar”.
Conhecimento superior
Van Dusen prossegue: “Em outro paciente, as forças superiores se manifestaram através da figura de uma linda mulher. O paciente era um encanador com curso secundário e a visão mostrou possuir conhecimento de mitos e religiões num nível superior ao da capacidade de compreensão do paciente”.
“Alguns pacientes”, continua, “têm durante certo tempo experiências inferiores e superiores e se sentem presos entre o céu e o inferno. Outros têm somente experiências de nível inferior. Os superiores declaram que podem dominar os inferiores e de vez em quando mostram que isso é verdade, mas nunca na intensidade que os pacientes desejam: só na medida em que o próprio paciente se identifica com a ordem superior, perdendo o medo, é que os inferiores são dominados e calam-se. Essas narrativas apresentam uma notável semelhança com as raras passagens da ‘Bíblia’ sobre a obsessão, de modo que meus pacientes tinham as mesmas experiências que outros haviam tido milênios atrás”.
“A obsessão”, prossegue o psiquiatra, “ocorre quando os espíritos são libertados, deixam de ser inconscientes e adquirem uma percepção de si enquanto entes separados. Embora se revelem sempre não religiosos, estou convencido de que a prática religiosa, em si, não é suficiente para dominá-los. Uma atividade socialmente útil ou a caridade efetiva ajudam muito mais”.
O mecanismo de obsessão observado por Van Dusen coincide plenamente com a descrição de Swedenborg. Segundo este último, a obsessão estava instalada no momento em que os espíritos emergiam de sua prisão nas trevas e se tornavam conscientes enquanto seres separados. Nas observações do psiquiatra, há sempre um momento em que os espíritos começam a agir independentemente da vontade do paciente e, em seguida, o dominam mediante ameaças, chantagens, promessas e perseguições, até que o doente perde toda vontade própria. Certa vez, Van Dusen perguntou a um paciente, durante uma alucinação, o que os espíritos queriam. “Lutar, sugar, dominar o mundo”, respondeu a voz, acrescentando que para isso recorrem a todo tipo de estratagema.
Crença na própria culpa
Em seu livro “Arcanos Celestes”, Swedenborg escreveu: “O Homem não faz coisas ruins e falsas por si mesmo: são os espíritos maus que cometem essas ações e o fazem acreditar que foi ele quem as fez. E, pior, quando o Homem realmente começa a acreditar na própria culpa, eles o acusam e condenam”. Van Dusen notou ainda que os espíritos induzem a pessoa a cometer asneiras e, em seguida, a fazem acreditar na própria culpa e a praticar absurdos rituais autopunitivos.
Além de notar que uma diferença fundamental entre espíritos superiores e inferiores reside na infinita riqueza criativa dos símbolos elaborados pelos primeiros e na pobreza mecânica e repetitiva das falas dos outros, Van Dusen observou que os espíritos inferiores não têm nenhum respeito pela individualidade do doente e o tratam como um autômato, uma máquina, procurando convencê-lo de que não passa de um objeto mecânico movido de fora.
A observação coincide integralmente com a afirmação de Swedenborg em seu “Diário Espiritual”: “Por isso as pessoas andam por aí como máquinas. Aos olhos dos espíritos, elas não são nada. Quando eles conhecem uma pessoa, que é um ser humano e também um espírito, acham que é uma máquina sem vida. Por seu lado, o Homem não esclarecido também vê o espírito como se fosse um nada”.
Paralelamente, o conteúdo das falas dos espíritos inferiores parecia estar limitado à memória do paciente, enquanto os espíritos superiores demonstravam conhecimentos que ultrapassavam tudo o que o paciente sabia. Swedenborg afirmava que os espíritos inferiores tinham perdido a memória, ao morrer, e tinham que se apoderar da memória do paciente, enquanto os espíritos superiores, embora não sendo divinos em si mesmos, transmitiam um conhecimento de ordem divina.
Lei de afinidade
Van Dusen também acha que os espíritos inferiores procuram inserir-se neste mundo apoderando-se de uma pessoa parecida com o que eles foram em vida, obedecendo, portanto, a uma lei de afinidade. Isso explica, segundo Swedenborg, por que o paciente acredita ter cometido atos que na realidade nunca praticou. Nesses casos, o espírito tem um domínio total sobre o paciente, que simbolicamente morre para o outro passar a viver em seu corpo.
A necessidade do espírito inferior de apoderar-se do corpo explicaria também os casos de relações sexuais com espíritos, abundantes na literatura medieval e em alguns rituais primitivos, como o vodu haitiano. Já os espíritos superiores não mexem com o físico do paciente, só se comunicam através de símbolos. Essa influência é silenciosa e seu aparecimento é muito mais raro, na proporção de um para cada seis alucinações, segundo o psiquiatra.
Na conclusão de seu estudo, Van Dusen afirma: “Tive sempre a impressão de que os espíritos, bons e ruins, representam dentro do paciente certas forças inconscientes. A parte infernal mostra suas falhas pessoais, sua bitolação e sua estupidez. A parte celestial representa seus desejos superiores – latentes e raramente usados. Alguns espíritos são muito mais inteligentes que os pacientes; outros, muito mais estúpidos. Parecem ser forças não realizadas, não vividas, e que por isso causam confusão e mal. Uma paciente muito piedosa via cenas imorais; um ladrão e bêbado, negro, via uma história linda e comovente sobre o heroísmo dos grupos minoritários. O mundo dos espíritos se parece muito com as descrições de Swedenborg, ele é realmente o céu e o inferno no nosso inconsciente. São mundos que existem ao mesmo tempo fora e dentro de nós”.