01/07/2025 - 6:32
Confinados em navios, bois e vacas enfrentam jornadas exaustivas, muitas vezes cobertos por fezes e urina. Ativistas dizem que todos os animais sofrem maus-tratos nesse comércio.Com quase 23 mil bois e vacas a bordo, o navio Nada, de bandeira panamenha, zarpou do porto de Rio Grande (RS), em março de 2024, rumo à Turquia e ao Iraque. Durante a travessia de uma semana, 108 animais morreram – o maior número registrado em uma viagem de exportação de gado vivo no Brasil desde 2020. Nesse período, mais de 2,3 mil bois morreram durante o transporte marítimo.
A grande maioria dos animais vivos é exportada para países do Oriente Médio e Norte da África, como Turquia, Iraque, Egito e Líbano, onde são abatidos, geralmente, pelo método Halal. O abatedor precisa ser muçulmano e cortar a garganta do animal, ainda consciente, com uma faca afiada.
A exportação de animais vivos, também chamada de exportação de gado em pé, é uma atividade que recebe cada vez mais críticas devido aos maus-tratos. Embora esteja sendo restringida ou proibida em outros países, a atividade cresce no Brasil. No ano passado, o envio dos bichos ao exterior bateu recorde: foram exportados mais de 1 milhão de bois e vacas.
O número de mortes de animais durante a exportação foi obtido por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) junto ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). A reportagem também solicitou a quantidade de bois e vacas feridos durante as viagens e o nome das empresas exportadoras, mas não obteve as informações. Das 393 viagens realizadas entre janeiro de 2020 e março de 2025, 306 registraram mortes de animais, representando cerca de 77,8% das travessias.
“Os dados confirmam o que as organizações e ativistas da causa animal já sabiam e já vinham denunciando há muito tempo: a exportação de animais vivos é uma atividade intrinsecamente prejudicial à saúde e ao bem-estar dos animais. E, por essa razão, ela deve ser proibida”, avaliou George Sturaro, diretor de Relações Governamentais e Políticas Públicas da Mercy For Animals no Brasil.
O número de mortes, no entanto, deve ser muito maior, alertou Sturaro. Primeiro, porque os dados são fornecidos pelas próprias empresas, sem nenhum tipo de fiscalização do Mapa. Segundo, porque não entram no cálculo as mortes que ocorreram após o desembarque. “Estamos pensando não apenas nos animais que morrem durante a travessia, mas nos animais que morrem em decorrência de lesões, doenças e outras complicações adquiridas durante a viagem”, explicou.
Triturador de animais mortos
A causa das mortes durante a exportação é um ponto central a ser discutido, disse Vania Plaza Nunes, médica-veterinária e diretora técnica do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal. A ONG atua desde 2005 para proibir esse comércio, inclusive com ações na Justiça.
“Eles morreram do quê? Cadê a descrição do caso clínico que esses animais tiveram? Cadê o material de necrópsia?”, questionou Nunes. “Porque nunca ninguém permite que você entre num navio, seja aqui, seja durante uma parte da viagem, seja quando os animais chegam no exterior, para verificar as condições.”
Entre suas hipóteses para as mortes estão a inanição por falta de alimentos, doenças infecciosas, pisoteamento e fraturas. A DW perguntou ao Mapa quais foram as causas dos óbitos, assim como outras questões, mas não obteve retorno até a publicação da reportagem.
Uma das exceções que possibilitou entender o que se passa dentro dos navios ocorreu em 2018, justamente com o Nada. Após protestos de ativistas, a embarcação foi proibida pela Justiça, em caráter liminar, de zarpar com cerca de 27 mil bois do Porto de Santos.
A médica-veterinária Magda Regina entrou no navio para produzir um laudo a pedido da Justiça. De acordo com o documento, a embarcação era composta por 13 pisos, divididos em baias. Nos andares acima da linha da água, a situação era até moderada. Mas à medida que ela se dirigia aos andares inferiores, a situação piorava bastante.
“A imensa quantidade de urina e excrementos produzida e acumulada nesse período, propiciou impressionante deposição no assoalho de uma camada de dejetos lamacenta. O odor amoniacal nesses andares era extremamente intenso tornando difícil a respiração. Em alguns desses andares, o sistema de ventilação artificial buscava atenuar o efeito do acúmulo de gases e odores, resultado também da decomposição do material orgânico bovino”, relatou.
A médica veterinária descreveu que em um setor do navio conhecido como Graxaria havia “um equipamento destinado a triturar os animais mortos, cujo resultado do trituramento é também lançado ao mar”.
A liminar foi derrubada nas instâncias superiores, fazendo com que o Nada pudesse partir. O Mapa e representantes do setor alegaram que a atividade era regulamentada e que a suspensão da viagem traria grandes prejuízos econômicos.
O navio da morte
Outra exceção que também permitiu conhecer o que se passa dentro dos navios ocorreu em fevereiro de 2024. O Al Kuwait partiu do Porto de Rio Grande (RS) com 19 mil bois e precisou parar na Cidade do Cabo, na África do Sul. E causou um “fedor inimaginável” na cidade.
O Conselho Nacional de Sociedades para a Prevenção da Crueldade contra Animais, organização sul-africana, subiu a bordo e encontrou situações semelhantes ao do Nada em 2018: “As cenas a bordo do navio eram horríveis, com um acúmulo extremo de fezes e urina, e os animais não tinham outra opção a não ser descansar em seus próprios excrementos”, descreveu o conselho em sua página.
Ainda de acordo com o conselho, foram encontrados animais feridos, doentes e mortos. O médico-veterinário da organização precisou fazer oito eutanásias em vacas devido ao sofrimento pelo qual passavam. Por isso, ativistas apelidaram a embarcação de “navio da morte”.
Conforme os dados obtidos com o Mapa, 30 animais morreram naquela viagem. Somando todas as travessias, o Al Kuwait foi o navio que mais registrou óbitos de animais: 198 entre junho de 2023 e dezembro de 2024.
Violação das liberdades
“Eu não estou discutindo se a gente tem que comer carne ou não”, disse a diretora técnica do Fórum Animal. “Não é disso que se trata. Mas já que eu vou explorar a vida dos animais, que eu faça isso de uma forma onde o bem-estar durante o tempo que ele está vivo e até o momento da morte seja garantido. Isso é o que diz a ciência do bem-estar animal.”
Na década de 1960, foi desenvolvido no Reino Unido um conjunto de princípios para definir o bem-estar dos animais sob cuidados dos seres humanos. Chamada de “as cinco liberdades”, essas ideias passaram a ser consideradas pela ciência e por organizações médico-veterinárias, inclusive a Organização Mundial de Saúde Animal.
Os animais precisam estar livres de fome e sede; de desconforto; de medo e estresse; de dor, ferimentos e doenças; além de poderem expressar seu comportamento natural.
Nos navios, a ração em vez do pasto e a água dessalinizada impactam na fome e sede, avaliou Sturaro, da Mercy For Animals. A superlotação, as condições precárias de higiene, o ar impregnado de amônia e o calor elevado geram enormes desconfortos. A operação de embarque e desembarque, o balanço do mar e o medo do desconhecido causam medo e ansiedade. Espremidos em baias com fezes e urina, os animais também não conseguem expressar seu comportamento natural.
“E, por fim, as doenças e as lesões que podem levar à morte mostram que a mais fundamental das liberdades do bem-estar animal é patentemente violada durante essas travessias marítimas. Quando olhamos para essa atividade a partir dessa perspectiva, fica evidente que ela não poderia estar ocorrendo e deve ser proibida”, defendeu Sturaro