27/02/2013 - 17:44
No século 7, monges irlandeses em busca de isolamento empreendiam excursões esporádicas às desabitadas Ilhas Faroe, isoladas em meio às águas geladas do Atlântico Norte. Às vezes, iam adiante e prosseguiam até uma grande ilha desabitada ainda mais ao Norte, à qual chamavam de Thule – a atual Islândia.
Levas sucessivas de vikings que aportaram nas Faroe acabaram com o sossego dos irlandeses e marcaram o início da colonização do pequeno arquipélago de 18 ilhas e 1.399 quilômetros quadrados de área, onde vivem 50 mil pessoas, atualmente. A capital é a pequena Tórshavn (pronuncia-se “torxáum”), com 16 mil habitantes, situada na ilha de Vágar.
O nome Faroe deriva de uma palavra no idioma local, originário do nórdico antigo, Færeyjar, que significa “ilhas das ovelhas”. Os primeiros navegadores que aportaram na região encontraram uma espécie de cabra ou ovelha nativa, atualmente extinta. A geografia é acidentada e rochosa, com costas recortadas e fiordes profundos e estreitos, a tal ponto que nenhum lugar das ilhas está a mais de 5 quilômetros de distância do mar. O frio é intenso.
Desde 1948 as Ilhas Faroe tornaram-se um país autônomo, com governo próprio, associado ao Reino da Dinamarca, que protege o arquipélago desde 1388. Ao longo dos anos, os faroenses assumiram o controle da maior parte de seus assuntos. São da responsabilidade da Dinamarca a defesa militar, a polícia, a justiça, a moeda e os assuntos externos.
As ilhas permaneceriam ignoradas pelo resto do mundo se nos últimos anos os ambientalistas não tivessem chamado a atenção para uma prática ancestral dos seus habitantes que causa repulsa e contrariedade na opinião pública fora do arquipélago. Trata-se do grindadráp, mais conhecido como grind, evento que acontece algumas vezes na primavera, em que os habitantes matam centenas de baleias-piloto, cetáceos do gênero Globicephala, também conhecidos como golfinhos-piloto.
Presentes em todos os mares do planeta, as baleias-piloto atingem nove metros de comprimento e proliferam nas águas frias do Atlântico Norte e do Mar da Noruega. A caça é uma tradição do povo faroense, tão antiga quanto a colonização viking. Embora os animais não se encontrem em risco de extinção, a matança choca qualquer observador.
Apesar de pressões, o ritual anual mantémse sem interrupção. O governo dinamarquês não tem soberania para proibir o costume e os faroenses não abrem mão dele. O argumento mais forte é que a caça fornece alimento para a população, uma vez que a produção agrícola é escassa devido às condições climáticas. A carne das baleias é o recurso alimentar básico da ilha há séculos e o óleo extraído dos animais sempre foi usado como combustível. A caça não é comercial, mas organizada em nível comunitário e regulada detalhadamente pelo governo desde 1938. Todo faroense pode participar do cerco. Trata-se, praticamente, de uma festa.
Todos os anos, os pescadores mobilizam dezenas de embarcações para cercar as baleias na costa e conduzi-las – “tangendo-as” – até as águas rasas das enseadas. Com o radar natural desorientado pela diminuição da profundidade, os animais aceleram em direção à areia e encalham. Na beira da praia, então, são degoladas, em um corpo a corpo com os pescadores armados com facas especiais, as grindaknívur, e arrastadas com ganchos.
A carne é distribuída gratuitamente entre a população que aprecia seu sabor forte e cor escura. O corte da nuca das baleias-piloto é uma técnica que visa diminuir a dor dos cetáceos, mas acarreta grande derramamento de sangue. Não é um cenário bonito de se ver. As águas tingem-se rapidamente de vermelho intenso, em meio à agitação frenética dos animais agonizantes, proporcionando imagens chocantes, que os ambientalistas usam à exaustão para barrar a prática do grind.
Prós e contras
As visões conflitantes não têm conciliação. Ingólfur Johanenssen, antropólogo e filho de uma dinastia de pescadores, diz: “Há mais de 800 anos praticamos a caça à baleia-piloto, uma espécie que jamais esteve sob risco de extinção. Recentemente, o mundo resolveu apontar o dedo para nós e nos tachar de vilões impiedosos e selvagens. O grind remonta às nossas mais antigas tradições. Pergunto: qual a diferença entre matar animais selvagens que não estão sob risco de extinção e matar animais de cativeiro, se o propósito é a alimentação? Não vejo diferença.”
Jákup Durhuus, advogado e neto de pescadores, acusa os ambientalistas de hipocrisia. “Matamos 600 a 800 baleias-piloto todos os anos, mas quantos milhões de bois, porcos e aves são mortos diariamente em matadouros, longe do sensacionalismo das câmeras do National Geographic e do clamor piedoso daqueles que se deliciam com as suas carnes? Há muita hipocrisia e alarmismo, e nenhuma racionalidade na crítica ao grind”, acusa Durhuus.
Os ambientalistas do Greenpeace tratam a matança como “assassinato bárbaro de extrema covardia”. A filantrópica Humane Society, da Grã-Bretanha, condena a “matança de golfinhos em pânico, sob grande sofrimento físico e psicológico, exterminados diante da sua comunidade social”.
Os faroenses alegam que o golpe na nuca mata os animais em 30 segundos, após o corte que secciona a cabeça do corpo. O método não contribui para arrefecer as críticas. A prática constitui um ritualde séculos. O grind é não apenas uma caça pela sobrevivência, mas uma cerimônia de passagem dos adolescentes faroenses para a vida adulta, com marcante valor antropológico e cultural. Os pescadores nativos não são povos indígenas, mas gostam de cultivar as tradições marinheiras fundadas pelos vikings.
Durante julho e agosto de 2011, a Sea Shepherd, organização internacional agressiva que defende animais marinhos como baleias, focas e tubarões, manteve os navios Steve Irwin e Brigitte Bardot nas águas do arquipélago. Durante esse tempo, nenhuma baleia foi morta. A polícia das Faroe aconselhou os habitantes a suspender a matança dos cetáceos enquanto as embarcações estivessem lá, para evitar confrontos e notícias desfavoráveis mundo afora.
Em contraste com a ausência de mortes no período em que o Sea Shepherd monitorou a região, cerca de 700 baleias-piloto foram mortas em 2010 e também em 2012. “Penso que os baleeiros das Faroe são covardes”, diz o capitão Paul Watson. “Por que esperaram nossa partida para recomeçar os massacres? Eles não mataram uma única baleia quando estávamos lá. Eles esperaram, sabendo que acabaríamos indo embora, e uma semana após a nossa saída, retomaram o ritual macabro e a matança. Só posso considerá-los covardes”, afirma Watson.
“É ridículo alegar que a prática persiste por necessidade de sobrevivência, num mundo tecnologizado e interligado. Ninguém mais precisa disso”, diz a australiana Laura Dakin, chef de cozinha e membro da tripulação do Sea Shepherd. A última matança revoltou a militante ambientalista: “Eles agora vão se fartar de carne gordurosa e contaminada com mercúrio, e sentirão orgulho de terem assassinado centenas de animais indefesos.”
Segundo Dakin, o desperdício de carne é enorme, pois as partes menos apreciadas da carne são descartadas em caçambas na praia. “No dia seguinte já estão impróprias para o consumo e são atiradas ao mar, em águas rasas. Já encontramos centenas de carcaças apodrecidas, o que torna essa matança algo ainda mais criminoso e absurdo”, pontifica.
Alheios aos apelos e às críticas, os faroenses não pensam em abrir mão das suas tradições. Também não gostam de ser chamados de covardes. Mas um fato novo pode induzir a tradição ao declínio. De fato, as baleias-piloto acumulam metais pesados nos tecidos, notadamente mercúrio, cancerígeno. As toxinas da carne também podem afetar mulheres grávidas e crianças, embora os faroenses rechacwem a alegação e continuem a comê-la.
Pesquisas recentes confirmaram a presença de mercúrio acumulado no sangue dos habitantes, 400 vezes acima do limite máximo tolerado, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. Esse pode ser o fator determinante do ocaso da tradição baleeira das Faroe.