01/05/2011 - 0:00
O oceanógrafo Neil Bruce, do Museu Tropical do Queensland, investiga novas espécies num aquário iluminado na Ilha da Lagartixa, no nordeste da Austrália.
O mais abrangente programa de investigação sobre a vida nos mares mostra que a ciência conhece muito pouco sobre os oceanos. Durante dez anos (de 2000 a 2010), o Censo da Vida Marinha mobilizou 2,7 mil pesquisadores de 80 países, promoveu 540 expedições e investiu US$ 650 milhões para descrever 1,2 mil espécies – aumentando para 230 mil o número de espécies marinhas conhecidas, plantas, invertebrados e peixes. O total deve aumentar porque ainda existem 5 mil organismos sob análise.
O verme Squidworm, descoberto no Mar de Celebes, na Oceania.
Os cientistas comprovaram que os mares com a história evolutiva mais antiga são os mais ricos em biodiversidade: os do Japão, com 33 mil espécies, e os da Austrália, também com 33 mil. Entretanto, até agora, apenas 1,75 milhão de seres dos 30 milhões existentes no planeta foram descritos. O oceano é uma caixa-preta.
Além de diminuir a ignorância humana sobre os oceanos – estampada nos mapas de navegação do século 16 pela expressão “Mar Incógnito” -, o programa multidisciplinar do censo ajudará a avaliar as ameaças sobre os ecossistemas marinhos, como mudanças climáticas, impacto da pesca industrial e vazamentos de petróleo, como o que atingiu o Golfo do México em 2010. O Censo da Vida Marinha é um projeto do Consórcio de Liderança Oceânica, instituição sediada em Washington (EUA), que conta com apoio da Organização das Nações Unidas (ONU), de agências governamentais de 80 países, da Escola de Oceanografia da Universidade de Rhode Island (EUA), do Laboratório de Ecologia Marinha da Universidade de Duke (EUA) e também de empresas privadas.
Os cientistas acharam criaturas vivas desconhecidas em fontes hidrotermais submarinas com temperatura de 400º centígrados, em mares congelados e em águas com pouca luz e oxigênio. Entre vários seres exóticos registraram um caranguejo de garras peludas, uma lagosta gigante, um peixe antártico sem nenhum pigmento vermelho no sangue e um hermafrodita que habita as águas do Oceano Índico e é um dos maiores peixes de recife do mundo.
Reino líquido
“Encontramos espécies vivas desconhecidas desde zonas costeiras rasas até as regiões mais profundas dos oceanos”, afirma Lucia Campos, uma das dez pesquisadoras brasileiras que participaram do censo. Segundo ela, a área total investigada em águas profundas equivale ao tamanho da Grécia: 131,9 mil quilômetros quadrados. Antes do projeto, o conhecimento dos cientistas não ultrapassava cerca de 1,5 mil quilômetros quadrados, uma área equivalente à do município de São Paulo.
O programa surgiu com a liderança do oceanólogo norte-americano Fred Grassle, diretor do Instituto de Ciências Marinhas da Universidade de Rutgers, a partir da constatação de que a diversidade de organismos em águas profundas era muito superior à de águas rasas. A diferença apontava para um vasto campo desconhecido. Grassle levou a ideia à fundação Alfred Sloan, que decidiu bancar os investimentos iniciais. Em 2000, os cientistas organizaram o projeto do censo para avaliar a diversidade, a distribuição e a abundância da vida marinha no mundo.
Desde o início, havia três questões para os cientistas responderem: o que já viveu nos oceanos, o que vive atualmente e o que viverá. O programa foi criado para explorar os limites do conhecimento, com data marcada para apresentar resultados, em 2010. Em outubro do ano passado, na Royal Institution, de Londres, foram apresentados os resultados. “Este é o inventário mais significativo já realizado nos oceanos”, disse Grassle no discurso de apresentação. “Os projetos englobados no censo revelam todo um reino do oceano. As descobertas chegaram com tanta rapidez que está sendo difícil assimilar.”
Das 30 milhões de espécies supostamente existentes no planeta, só 1,75 milhão foram descritas até hoje. Os oceanos ainda são caixas-pretas para a ciência
O dragão-marinho-folheado (Phycodurus eques) recorre à camuflagem para parecer uma folha.
Peixe hermafrodita da Nova Zelândia. O design da face lembra as tatuagens dos guerreiros maoris
Caranguejo de garras peludas da Ilha de Páscoa.
Uma nova anêmona descoberta em águas tropicais.
Peixe antártico destituído de pigmentos vermelhos no sangue, adaptado à baixa temperatura.
Cientistas estudando cardumes de atuns. A espécie está seriamente ameaçada pela pesca excessiva.
Desde seus primeiros passos a humanidade comunga com a vida marinha. Depois da Revolução Industrial, porém, a pesca excessiva e a destruição de ecossistemas pela poluição tornaram-se ameaças sérias à integridade dos mares e à preservação das espécies. Vários tipos de tubarões e baleias estão sob risco de extinção. No passado, quando a Bíblia se referia à pesca e o peixe era adotado como símbolo cristão, não havia riscos globais. Um dos primeiros empreendimentos pesqueiros transnacionais foi o comércio de bacalhau seco entre o norte e o sul da Europa, iniciado pelos vikings há mais de mil anos.
Com três quartos da superfície do planeta cobertos por água, os oceanos chegaram ao século 21 como a maior defesa da humanidade contra o aquecimento global. Os imensos volumes de águas profundas e de plâncton abundante constituem o maior sumidouro natural de gás carbono existente. Sem os oceanos, a temperatura do planeta já estaria muito mais elevada por conta da emissão dos gases de efeito estufa.
Aventura do conhecimento
O oceanógrafo brasileiro José Angel Alvarez Perez, da Universidade Federal do Rio Grande (RS), liderou uma das expedições de exploração da biodiversidade no Atlântico Sul. A primeira viagem para investigar a diversidade da Dorsal Mesoatlântica, entre a América do Sul e a África, aconteceu em novembro de 2009, em colaboração com o Instituto Shirshov de Oceanologia, da Rússia. “Aproveitamos a viagem anual para a Antártica do navio de pesquisa Akademik Ioffe. Durante 34 dias estivemos a bordo do navio, que investigou o mar desde as Ilhas Canárias até a Cidade do Cabo”, conta Perez.
Três anos de planejamento foram necessários para captar os recursos e articular a oportunidade de usar o navio russo. “Durante a viagem penamos para operar equipamentos a três mil metros de profundidade. Mesmo com a experiência da tripulação, sempre ocorrem imprevistos que ameaçam o sucesso das coletas.” Um dos piores, que poderia ter terminado em tragédia, aconteceu durante a madrugada de uma sexta-feira 13, quando o cabo de aço de uma rede se rompeu a mais de mil metros de profundidade. “Por sorte, o cabo ficou enrolado na estrutura do navio e pudemos recuperar a rede, o que exigiu toda uma noite de trabalho”, conta o biólogo. “Ninguém se machucou, mas poderia ter sido trágico para o navio e para nós.”
A bióloga venezuelana Patricia Miloslavich conta que as maiores dificuldades foram os longos dias no mar, muitas vezes em condições extremas e perigosas, com temperaturas baixas, ondas hostis e animais perigosos. Para ela, um dos momentos mais difíceis foi a perda de um robô submarino, na costa do Chile, equipado com câmeras e sensores sensíveis e caros, que acabou definitivamente com a missão regional de encontrar fontes hidrotermais no fundo do oceano. Outro imprevisto atingiu tragicamente uma pesquisadora da Nova Zelândia que trabalhava na Antártica: em plena expedição, foi informada da morte do marido. “Ela optou por concluir a missão”, lembra Patricia. “O marido também era cientista e ela imaginou que ele entenderia.”
Sem tecnologia de ponta, sondas e equipamentos operados por controle remoto, os pesquisadores não poderiam explorar águas profundas e geladas
O estranho peixe Psycorolutes microporos, descoberto ao largo da Nova Zelândia, a 1.340 metros de profundidade. Equipamentos de exploração por controle remoto (mais abaixo) permitiram aos cientistas investigar profundidades a três quilômetros da superfície.
Na primeira vez em que uma equipe de pesquisadores foi à Antártica, a estação de pesquisa brasileira na Baía do Almirantado teve de lidar com problemas difíceis por conta do congelamento do mar. “Imaginando dificuldades, previmos a utilização de uma câmera remota com imagem em branco e preto, para observar o fundo”, disse Lucia Campos. “Foi o que nos ajudou.” Independentemente das dificuldades, a região de águas geladas, com temperaturas negativas até no verão, surpreendeu a todos pela diversidade de organismos no fundo.
Crustáceos, moluscos e peixes
Três categorias de seres respondem por quase a metade das poucas espécies marinhas efetivamente conhecidas pela ciência. Os crustáceos, como as lagostas, os camarões e os siris, lideram o ranking de presença nos oceanos, representando 19% das espécies catalogadas. Os moluscos constituem 17% da população oceânica e os peixes, 12%. Os cetáceos e outros vertebrados, como leões-marinhos, focas, tartarugas e lontras-marinhas, representam apenas 2% do total de espécies das 25 regiões analisadas.
Na vida marinha há espécies “cosmopolitas”, que podem ser encontradas em todos os mares. Entre as mais habituais estão as algas microscópicas, os protozoários e os crustáceos que se alimentam de plânctons. Também são corriqueiros os animais que dependem da água para obter alimento, como aves e mamíferos, entre os quais as focas. O peixe-víbora, Chauliodus sloani, que povoa quase um quarto das 25 regiões estudadas, é o animal mais comum dos oceanos.
Algumas expedições não teriam sucesso sem tecnologia de ponta, principalmente em águas profundas e geladas. Graças a sondas sofisticadas, os pesquisadores do censo puderam observar dezenas de milhões de peixes reunirem-se rapidamente e nadarem em cardumes gigantescos. Viram grandes números de animais se movimentando em horários regulares a centenas de metros abaixo da superfície. Documentaram a pesca predatória do bacalhau e do atum, os impactos da poluição de petróleo na fauna e das mudanças climáticas nos bancos de coral. Na área atingida em 2010 pelo vazamento de petróleo de uma plataforma da British Petroleum (BP) no Golfo do México, o estudo contabilizou 8.332 espécies de peixes e mamíferos. Comparar a situação futura da região com o banco de dados do censo ajudará a avaliar os danos e calcular os gastos a serem indenizados pela BP.
Foram utilizados planadores automatizados para coletar amostras de materiais e para filmar sobrevoos em oceanos. Sistemas de sonar incumbidos de localizar submarinos durante as guerras foram usados para monitorar populações de peixes. Ao largo da costa da Nova Inglaterra (nordeste dos EUA) foi documentado um cardume de arenques maior do que a ilha de Manhattan, de 59 quilômetros quadrados. “Essa foi uma das maiores congregações de animais marinhos jamais observada”, ressalta Patricia Miloslavich.
Os equipamentos possibilitaram identificar itinerários e pontos de encontro das espécies. Foram monitorados salmões jovens em viagens dos rios até os oceanos. O atum-rabilho – uma das oito espécies do peixe – foi observado de perto, documentando-se toda a sua migração desde o Golfo do México até o Mediterrâneo.
Para identificar espécies desconhecidas, usouse uma técnica inovadora, batizada de Código de Barras de DNA, que possibilita identificar espécies com um rápido teste genético. Além disso, foram espalhados microfones acústicos pelo fundo do mar da Califórnia ao Alasca para monitorar a abundância de vida do Oceano Pacífico por milhares de quilômetros quadrados.
Base de dados
Além das descobertas, o Censo da Vida Marinha criou um banco de dados – www.iobis.org – que pode ser acessado gratuitamente por qualquer pessoa. O website acessa os nomes e os “endereços” das espécies compiladas. Segundo o professor Fabio Lang, da Universidade de São Paulo (USP), gestor do site no Brasil, se as novas descobertas permanecessem dentro do projeto, escondidas do resto da comunidade científica, os dados não causariam impacto nas pesquisas.
O primeiro Censo da Vida Marinha documentou um oceano em mudança, rico em diversidade, severamente impactado pelos seres humanos em algumas áreas, mas menos explorado do que se pensava. Ao analisarem observações feitas por navios oceânicos desde 1899, os cientistas descobriram que o fitoplâncton, a base alimentar da vida marinha perto da superfície, vem diminuindo globalmente, o que pode afetar toda a biodiversidade dos oceanos.
O censo não conseguiu estimar de forma segura o número total de espécies nem identificar todos os tipos de vida marinha, mas alargou a base de compreensão científica. “Se não conhecermos quais seres existem nos oceanos, como interagem entre si, como vivem, como se reproduzem e quanto tempo vivem, poderemos assistir à extinção de populações inteiras que poderão ser vitais para o futuro da ciência”, afirma Lucia Campos. Três quartos da superfície da Terra continuarão como mares incógnitos.
A elevação da temperatura do planeta gerada pelo efeito estufa seria muito maior sem a absorção de dióxido de carbono pelos oceanos
Medusas na Baía de Monterey, na Califórnia.
Uma minhoca-árvore-de-natal (Spirobranchus giganteus) da Ilha da Lagartixa, na Austrália.
Pepino do mar encontrado a 2.500 metros de profundidade, no Mar de Celebes.
O peixe-geleia (Crossota norvegica), do Ártico canadense.
Estrelas-do-mar subárticas da Ilha Knight, no Alasca.
O estudo das observações de navios desde 1899 mostra que vem diminuindo a quantidade de fitoplânctons nos oceanos, a base da alimentação marinha
O tubarão branco é o maior predador do oceano..
2A lula-vampiro vive com pouco oxigênio a 800 metros de profundidade, na Califórnia.
O polvo da Ilha da Lagartixa, na Austrália.
Lesma-flamingo das Índias Ocidentais, no Golfo do México.
Esse crustáceo do Ártico usa os tentáculos da boca para caçar.
Cadê a sardinha brasileira?
Ilustração do século 17 de Nicholas De Larmessian ironiza a obsessão dos pescadores com o seu ofício.
Quando o assunto é biodiversidade terrestre, o Brasil é o campeão das 17 nações que, juntas, abrigam cerca de 70% das espécies animais e vegetais do planeta. Já quanto à vida no mar não acontece o mesmo. De acordo com o Censo da Vida Marinha, o patrimônio brasileiro no ranking dos oceanos é modesto: o país detém 9.101 espécies marinhas – o equivalente a 4% do total.
Nossa Zona Costeira e Marinha se estende da foz do Rio Oiapoque (AP) à foz do Rio Chuí (RS), abrangendo áreas do Atol das Rocas (RN), dos arquipélagos de Fernando de Noronha (PE), de São Pedro e São Paulo (PE) e das ilhas de Trindade e Martim Vaz, situadas além do limite marinho. A extensa faixa terrestre se estende por 10,8 mil quilômetros ao longo da costa – computados os recortes de litoral e as reentrâncias naturais.
Embora o Brasil seja a nação que mais criou áreas de conservação nos últimos dez anos, seu patrimônio marinho é um dos menos protegidos. Apenas 1,57% dos 3,5 milhões de quilômetros quadrados de mar sob jurisdição brasileira está sob proteção de unidades de conservação. O Parque Nacional de Abrolhos, na Bahia, e o Atol das Rocas, em Fernando de Noronha, são dois dos mais conhecidos parques marinhos protegidos, famosos pelas aves, baleias, tartarugas e rica fauna marinha.
A plataforma continental brasileira é heterogênea e sua topografia, complexa, com ecossistemas diversificados como manguezais, recifes de coral, dunas, restingas, praias arenosas, costões rochosos, lagoas, estuários e mangues. As espécies mais constantes são os crustáceos (1.966 espécies), seguidos pelos moluscos (1.833 espécies), peixes (1.294) e poliquetas – vermes cobertos por cerdas (987 espécies) -, que juntos respondem por 66,79% do total da biota conhecida.
A América do Sul compartilha diversas espécies com a região antártica. “Vários processos que ocorrem na Antártica afetam a vida marinha no Sul do Brasil”, afirma Lucia Campos, especialista em estrelas-do-mar e ouriços. Segundo a pesquisadora, o Censo da Vida Marinha facilitou o trabalho de descobrir as conexões biológicas entre os continentes. Há cerca de 80 espécies compartilhadas, sendo 40% de águas profundas. “Muito dessa conectividade ainda precisa ser mais bem compreendida”, ressalta a pesquisadora.
Além de pouco conhecida e pouco estudada, a fauna marinha brasileira vem sendo sistematicamente depredada pelo aumento intensivo da pesca industrial. Segundo dados de 2009 do Ministério da Pesca e Aquicultura, cerca de 30% da atividade concentra-se na região Norte, com 263 mil toneladas ao ano. O Pará é um importante porto de embarque de pescado. As espécies mais capturadas são o bagre, a corvina, a sardinha, o peixe-serra, o pargo, a lagosta e os camarões. Outrora abundantes, as sardinhas e as corvinas têm desaparecido com frequência dos mercados.
A região Norte abriga um dos principais bancos de camarão do mundo, de Tutoia, no Maranhão, até Orinoco, na Guiana, sustentado por extensos manguezais. Os brejos e manguezais abrigam uma alta biodiversidade de organismos marinhos e constituem berçários vitais para muitas espécies de peixes e mamíferos. Além disso, absorvem cinco vezes mais gás carbono do que as florestas tropicais. Se não forem protegidos, o esgotamento dos estoques pesqueiros será acelerado ao longo da costa brasileira.