07/05/2022 - 7:47
Em 13 de abril, O Globo publicou uma crônica da médica Margareth Pretti Dalcolmo recapitulando os dois anos desde que começou a escrever para o jornal e, novamente, apresentando razões para inquietação, porque outras variedades do coronavírus ainda podem causar epidemias locais. “Devemos manter a atenção para as medidas de contenção, além de vacinar massivamente e aplicar a quarta dose a toda a população adulta”, ressaltou no texto.
Desde o início da pandemia, Dalcolmo não hesitou em exercer o papel que chama de “megera total”, até mesmo recomendando o cancelamento das festas natalinas em família em 2020, quando ainda não havia vacinas contra a covid-19 no Brasil. Sua habilidade em se comunicar com o público geral de maneira simples e cordial a tornou uma das principais porta-vozes da ciência durante a pandemia.
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Nesta entrevista, concedida por plataforma de vídeo em 12 de abril de sua sala na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), além de contar o que viveu durante a pandemia, Dalcolmo alerta para o provável aumento dos casos de tuberculose no Brasil, sua área de pesquisa, nos próximos anos, em consequência da redução no número de pessoas que procurou os centros médicos para fazer diagnósticos e continuar o tratamento em 2020 e 2021.
Durante a pandemia, além de estudos sobre a covid-19, a senhora não descuidou de sua linha de pesquisa sobre tuberculose.
Apenas continuei as pesquisas que estavam em curso, não comecei nenhuma nova. A tuberculose ainda é uma doença altamente prevalente no Brasil. Estamos na 19ª posição entre os países com mais casos no mundo, com aproximadamente 75 mil casos novos a cada ano. A mortalidade também é alta, ainda morrem anualmente quase 5 mil pessoas por causa da tuberculose no Brasil.
Como a covid-19 interferiu no tratamento da tuberculose?
O impacto foi devastador, em particular no Brasil. De acordo com o Ministério da Saúde, houve uma redução de 40% no número de testes moleculares diagnósticos aplicados no país, porque os serviços deixaram de funcionar durante a pandemia. Isso significa que pessoas com sintomas deixaram de ser diagnosticadas e outras, em tratamento, não foram controladas. Portanto, muitas possivelmente abandonaram o tratamento, que é longo, de no mínimo seis meses. Mais grave ainda: pessoas portadoras de formas resistentes de tuberculose, com tratamento mais longo, provavelmente deixaram de ser diagnosticadas e transmitiram a doença. A própria OMS [Organização Mundial da Saúde] assume que o retrocesso sobre o controle da tuberculose no mundo decorrente da covid-19 tenha sido de oito a 10 anos. A OMS já mudou o discurso e não fala mais em erradicação da doença no mundo nos próximos 30 anos, a despeito de os tratamentos terem avançado e de os métodos diagnósticos hoje, inclusive no Brasil, serem moleculares, implementados na rede do SUS [Sistema Único de Saúde], o que permite que uma pessoa com sintomas respiratórios procure o serviço de saúde e receba o diagnóstico em até 24 horas, ou, como aqui na Fiocruz, em três horas.
O que está falhando na rede de atendimento?
O tratamento é gratuito, inclusive com a oferta de medicamentos de alto custo. O problema é que não há diagnóstico tempestivo. As pessoas chegam tarde e não são alertadas sobre os riscos de transmissão. Os meios de comunicação e os órgãos do governo não chamam a atenção para o fato de que qualquer pessoa que tenha tosse com ou sem secreção por mais de duas semanas tem de procurar um serviço médico. A tuberculose é uma doença respiratória, que se transmite pela tosse ou por espirro, como a covid-19, por isso houve uma interação entre as duas doenças, embora uma seja bacteriana e a outra viral. Os sintomas se sobrepõem, então todos devem ser testados, hoje, para covid-19, mas também para tuberculose, se tiver sintomas persistentes, acompanhados de febre, perda de peso ou cansaço.
Quais os grupos de risco mais alto para a tuberculose?
Essa já foi uma doença associada a boêmios e poetas, mas perdeu o lirismo. A epidemia de Aids roubou-lhe a iconografia. Hoje se concentra entre a segunda e a quarta décadas de vida, portanto, gente jovem, na fase produtiva. Por isso tem um impacto social e econômico enorme. A OMS usa a expressão “custos catastróficos da doença”, que consome uma proporção alta da renda, cerca de 20% no caso da tuberculose. Muitos deixam de trabalhar. Os mais vulneráveis são os idosos e as crianças. Vacinamos as crianças ao nascer com a BCG, ainda na maternidade, e tínhamos cobertura exemplar, de 100%. Mas, por força da deterioração do SUS, o alcance da BCG caiu, o que é um escândalo [a taxa de vacinação dos recém-nascidos em 2020 foi de 75%, abaixo do mínimo esperado de 90%].
O que a senhora espera para os próximos anos?
Um aumento do número de casos nos próximos dois anos, porque tuberculose é uma doença lenta, não é como a covid-19, que deixa a pessoa doente em poucos dias. Quem se contamina com essa bactéria demora meses para apresentar os primeiros sintomas. Nos próximos anos vamos diagnosticar quem foi contaminado agora, durante o período pandêmico.
Como amenizar essa situação?
Alertar a população pelos meios de comunicação é muito importante. Temos de conscientizar as pessoas de que é preciso procurar o médico logo, não adianta esperar ficar doente e perder peso. Cada paciente diagnosticado com tuberculose gera pelo menos quatro contatos próximos que devem ser examinados. Entre esses quatro, em geral um está doente. É uma doença respiratória de transmissão muito fácil, o bacilo fica no ar muitas horas. A tuberculose tem um componente social grande porque a transmissão é diretamente ligada ao ambiente. O risco de contágio é maior para quem vive em um barraco com cinco pessoas do que para quem mora em uma casa ampla, com pé-direito alto. A tuberculose também ascendeu socialmente e não acomete mais somente as pessoas desvalidas. Hoje, quem é portador de imunodeficiência, que pode comprar medicamentos e tem seguro de saúde, faz parte de um grupo de risco importante. Os diabéticos também. Eles são propensos a se contaminar porque o diabetes é uma doença decorrente de falhas na imunidade celular. Atualmente representam cerca de 15% dos doentes com tuberculose. Quem tem artrite reumatoide, lúpus eritematoso, psoríase, doença de Crohn, enfim, quem usa medicamentos imunossupressores, também está mais sujeito a adquirir tuberculose.
A senhora foi uma das coordenadoras no Brasil de um teste da BCG para tratar pessoas com covid-19. Como está esse trabalho?
Já acabamos o estudo e estamos na fase de follow up [seguimento dos pacientes]. É um estudo multicêntrico internacional, com cinco países, Inglaterra, Holanda, Austrália, Brasil e Espanha. Julio Croda, também da Fiocruz, e eu somos os investigadores principais no Brasil. Fomos o país que mais arrolou voluntários, 2.700 profissionais da saúde, e agora estamos terminando de fazer a análise para publicar. Queríamos testar se a BCG, por provocar uma reação imunológica muito variada, poderia favorecer a imunidade contra o vírus, principalmente na população de mais idade. Particularmente, não acredito que a BCG possa impedir a covid-19, mas talvez seja útil para atenuar a gravidade dos casos. É uma hipótese. A análise final deve sair até o fim do ano.
O que a pandemia lhe ensinou sobre o país, sobre o ser humano e sobre si mesma?
Escrevi em um artigo que sai amanhã [13 de abril] no Globo com o título “Mais de dois anos, muitas cicatrizes”, porque faz dois anos que comecei a escrever as crônicas no jornal toda semana e a pandemia deixou muitas cicatrizes, para todos. Conheço epidemias, participei do grupo do Ministério da Saúde que tratou o H1N1 há 17 anos e vi outras epidemias de perto, como a do ebola na África Subsaariana. Mas, quando começou a pandemia de covid-19, ficou claro que, por ser uma doença de transmissão respiratória, o impacto seria dramático no Brasil e emularia o observado nos países que nos antecederam. Em minha primeira entrevista, no dia 13 de março de 2020, eu disse: “Temos duas armas: o SUS e o distanciamento social”. Mas não sabíamos, naquele momento, que enfrentaríamos o que eu chamo de uma tensão equivocada e desnecessária, que foi o embate entre a retórica política e o nosso discurso baseado em evidência científica. Convivemos com essa tensão desde o início.
A senhora se refere à defesa de medicamentos sem eficácia comprovada?
Em maio de 2020, quando os estudos de fase 3 para cloroquina estavam começando, um grupo de pesquisadores elaborou um documento mostrando, pelos estudos de reposicionamento de fármaco, que a cloroquina não funcionaria para a covid-19. Depois de um ano, revimos o documento e incluímos os dados dos estudos de fase 3 [ensaio clínico feito com grande número de pessoas para avaliar a eficácia do medicamento]. Mesmo assim, tivemos de conviver com essa ideia equivocada e lidar com as expectativas das famílias. Muitas vezes eu estava tratando um paciente e as famílias me abordavam: “A senhora não vai dar cloroquina para o meu filho, para o meu marido?”. E eu respondia que não, que não usava aquele remédio, porque sabia que não funcionava. Essa tensão foi deseducadora, nociva, eu diria mesmo perversa, e não foi só com a cloroquina, foi com a ivermectina também. Vários prefeitos compraram milhões de comprimidos e fizeram disso uma bandeira política, e agora já está sobejamente demonstrado que a ivermectina serve mesmo é para tratar piolho e verme, mas não para covid-19. O Brasil foi um palco de estudos de fase 3 de vacinas espetaculares, como a CoronaVac e as da Janssen, da AstraZeneca e da Pfizer. Por que não fizemos as encomendas no momento em que os estudos estavam sendo realizados? Por razão política. Não compramos vacina antecipadamente e, quando fomos comprar, não havia mais. A salvação foram os dois órgãos públicos nacionais, o Butantan com a CoronaVac e a Fiocruz com a transferência de tecnologia para produzir a da AstraZeneca no Brasil. Todo mundo começou a vacinar em dezembro de 2020 e o Brasil só no final de janeiro de 2021. Começou atrasado, a despeito de ter sido o país que mais colocou voluntários na fase 3 das pesquisas. Além desses paradoxos, correu a ideia de que não era preciso fazer distanciamento nem usar máscara.
Podem vir outras ondas de covid-19?
Não creio que teremos outras ondas devastadoras, mas vamos ter epidemias pela ômicron-2 ou novas variantes. Cada uma delas vai se comportar diferentemente em cada local. No Brasil, ainda morrem de 100 a 200 pessoas por dia de covid-19. É muita gente para uma doença que pode ser prevenida por meio de vacinas. Causadas pelos vírus SARS-CoV-1, que provoca a Síndrome Respiratória Aguda Grave, e pelo MERS-CoV, responsável pela Síndrome Respiratória do Oriente Médio, as duas coronaviroses que antecederam a atual praticamente sumiram. Hoje há um caso ou outro apenas na China e no Oriente Médio, onde essas doenças inicialmente emergiram, mas o SARS-CoV-2, causador da covid-19, não vai sumir das nossas vidas, vai aparecer caso em todo lugar do mundo, de maneira endêmica. Hoje esse vírus já está incorporado ao painel viral que usamos para testar paciente com suspeita de doença viral, junto com o H1N1, H3N2, influenza, adenovírus e rinovírus.
O que permite dizer que uma pandemia acabou?
Dizemos que terminou quando ela desaparece ou vira endêmica, como será com a covid-19, quando o número de mortes estiver muito perto de zero e quando o número de casos tiver uma redução absoluta quase vertical. Ainda não se pode dizer que a covid-19 é endêmica porque continua matando muita gente. Só conseguiremos uma boa proteção e evitaremos os surtos quando toda a população com mais de 18 anos estiver vacinada com quatro doses. Temos hoje no Brasil a chamada imunidade híbrida, com muita gente que sobreviveu à doença e foi vacinada. Infelizmente, o discurso antivax contaminou as famílias, porque a vacinação das crianças ainda é pífia, muito aquém do desejável. É uma pena, porque o brasileiro adora vacina. O Brasil havia recebido o certificado de erradicação do sarampo em 2016 e o perdeu em 2019, porque começamos a ter sarampo em adultos. A vacinação para o sarampo caiu muito no Brasil, por várias razões, a principal é o PNI [Programa Nacional de Imunizações] acéfalo. Teoricamente teríamos melhores condições para enfrentar a pandemia, mas na prática não foi assim.
Em uma apresentação em julho de 2020 no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, o IEA-USP, a senhora comentou que a pandemia desafiou a onipotência dos médicos, que achavam que poderiam salvar todos os pacientes.
É, porque começamos a perder pacientes. Tivemos de ser mais humildes diante de uma doença nova. Perdemos também muitos médicos e enfermeiros. Ao mesmo tempo, tínhamos de tratar os pacientes graves, lidar com o luto, consolar as famílias e conviver com nosso próprio medo. Os primeiros pacientes que internamos, e eventualmente perdemos, foram aqueles com pneumonias, evoluindo para síndromes respiratórias agudas graves ou tromboses e embolias, quadros sobre os quais não tínhamos clareza, não sabíamos o que era aquilo exatamente. Rapidamente – tanto os médicos mais experientes quanto os mais jovens, dedicados à terapia intensiva –, entramos em uma curva de aprendizado compulsória e intensa e permanente, até hoje.
O que vocês aprenderam?
Precisávamos entender por que um paciente que entrava em uma emergência andando e falando podia estar com apenas 85% de oxigenação, o que era quase incompatível com a vida. Ele não tinha pneumonia, tinha trombose. Logo depois, a cvid-19 foi denominada pela revista Nature como uma storm disease, uma doença tempestuosa, porque comprometia toda a microcirculação do corpo. Em seguida os patologistas a definiram como uma endotelite, uma doença do endotélio, que atinge a camada íntima da microcirculação. O vírus faz uma viremia [carga viral] brutal de início e depois diminui. Isso é o suficiente para afetar a circulação e até o sistema nervoso central, o que justifica os quadros de encefalite e as sequelas neurológicas da covid longa. Vimos que precisávamos tratar os doentes de outra maneira. É uma doença sistêmica, para a qual não havia remédios específicos. Salvávamos os pacientes graves com base nas chamadas boas práticas de terapia intensiva. A Alemanha apresentou uma mortalidade baixa por covid-19 porque tem muita estrutura de terapia intensiva e teve pacientes mais jovens no início da epidemia, vindos das estações de esqui. Já nos Estados Unidos, onde não têm um sistema público de saúde, as pessoas morriam em casa. Nos primeiros seis meses, muitos de nós ficávamos no hospital ou dormíamos em hotéis, com medo de ir para casa e levar o vírus para os familiares.
Em que momento a senhora teve medo?
Quando fiquei doente, em abril de 2020. A gente fica esperando o oitavo ou nono dia, porque sabe que é por ali que vai piorar. Não é uma doença que você espera passar porque vai melhorar, não, você espera passar para piorar. Quem teve covid-19 ou viu de perto quem teve sentiu esse medo, da ruptura definitiva, em consequência do isolamento. Quando um paciente vê fechar a porta da emergência ou da unidade de terapia intensiva, não sabe se vai voltar a ver as pessoas que ama e mergulha em uma solidão radical. Poucas pessoas entram ali, e sempre com equipamentos de proteção, para evitar o contágio. Tivemos de aprender outra maneira de nos comunicar com o paciente. Éramos só olhos, mais nada, e olhos atrás dos óculos de grau e dos shields [máscara transparente de acetato que cobre todo o rosto], com o mínimo de contato, sempre com luvas. Muitos que passaram por isso e ficavam acordados em máquina de alto fluxo de oxigênio, lúcidos o tempo inteiro, conviviam com aquele terror de ver as pessoas todas se aproximando, também com medo.
Como lidou com suas próprias perdas pessoais durante a pandemia?
Foi difícil. Minha irmã ficou gravemente doente com a covid-19 e quase morreu. Perdi quatro colegas de turma e amigos próximos, minha enteada querida morreu em novembro e meu marido [Candido Antônio José Francisco Mendes de Almeida, 1928-2022] agora, há um mês e meio, não de covid-19, mas de morte súbita. Estava lendo um livro que se chama L’avenir de la vie [O futuro da vida, de Michel Salomon, 1927-2020]. Foi o que Simone de Beauvoir [1908-1986] chamaria de uma morte suave. Esse é um momento de luto e reorganização da vida. Recebi demonstrações de afeto e de solidariedade de pessoas que jamais vi, fiquei muito impressionada. É uma experiência muito nova, porque estou acostumada a ter isso dos meus amigos, da minha família, dos meus pacientes, mas não de pessoas que eu nem conheço, mas que falam comigo com intimidade, como se tivessem me encontrado no dia anterior. Ando muito sensibilizada com esse afeto todo.
A senhora se tornou uma pessoa midiática. Como foi parar na televisão?
Foi outro aprendizado, eu não entendia nada disso. No início de março de 2020, participei do grupo que assessorou Luiz Henrique Mandetta [ministro da Saúde de janeiro de 2019 a abril de 2020]. Júlio Croda ainda estava no ministério [como diretor do Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde]. Ficamos três dias revisando as projeções de síndrome gripal e síndrome respiratória aguda grave para prever os rumos da pandemia no Brasil. De lá fui para uma reunião da Sociedade de Pneumologia em São Paulo e gravei uma live resumindo as primeiras medidas preventivas decididas pelo grupo de Brasília. Foi a primeira vez que usei a palavra tsunami: “Olha, o mar está recuando, que são os países que nos antecederam, e as ondas vão vir muito pesadas, vai ser uma catástrofe no Brasil”. Sete horas depois, eu estava indo dormir, meu colega pneumologista Mauro Gomes, com quem eu tinha gravado o vídeo, me mandou uma mensagem avisando que nossa entrevista já tinha 200 mil visualizações. Totalmente inocente, perguntei: “Isso é muito ou pouco?”. Ele caiu na gargalhada: “Você não tem ideia do que é isso”. No dia seguinte, estou em Congonhas, voltando para o Rio, e me liga a Camila Bonfim, repórter da TV Globo: “Doutora Margareth, a senhora gravou uma entrevista que está com 400 mil visualizações. Pode vir à emissora para entrar ao vivo?”. Aceitei. Foi a primeira entrevista grande sobre a covid-19, dia 14 de março. No dia seguinte começariam aqueles programas especiais com seis horas de duração. Passaram a chamar a mim e o virologista Amilcar Tanuri, da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], até que, em abril, eu disse ao pessoal do programa que não dava mais para ir ao estúdio, porque a taxa de transmissão da covid-19 estava muito alta, e deveríamos começar a fazer as coisas on-line. No final de abril fiquei doente, com covid-19. Depois voltei à televisão, mas on-line.
Como lidou com essa visibilidade?
É uma trabalheira danada. Em 2020, cheguei a dar oito entrevistas no mesmo dia, para jornais e televisão do Brasil e de fora. Às vezes, eu perdia um pouco a paciência e dizia que já havia falado a mesma coisa quatro vezes naquele dia. E me respondiam: “Mas, doutora, a senhora não falou comigo ainda”. Sempre trabalhei muito e costumo ser bastante reservada. Entrar no supermercado para fazer compras e as pessoas me reconhecerem e pedirem para tirar selfie é algo inusitado, mas muito simpático. Todas as vezes, disse a verdade. No final de 2020, me lembro de jornalista me perguntando: “Você vai mesmo dizer que não pode reunir a família no Natal?”. Respondi: “Vou dizer de maneira muito mais veemente do que estou contando a você”. E eu falei em público: “Não pode ter festa de Natal, não pode encontrar a família, não pode reunir mais de cinco pessoas. Mesmo tendo feito teste, tem que ficar de máscara, se tiver vovô e vovó, longe, se tiver criança, longe”. Megera total, mas eu soube dizer isso de uma maneira que as pessoas cumpriram, muitas me disseram: “Doutora, eu estava com tudo encomendado e cancelei porque a senhora pediu. Só recebi meus filhos, e de longe”. Naquela época ainda não havia vacina. Em 2021 não falei mais nada disso, mas, até que melhorasse, eu e vários colegas viemos a público dizer que a situação estava piorando, o número de casos era ascendente, a transmissão estava muito alta.
Essa postura é incomum entre médicos, que costumam ser moderados…
Não fui a única. Júlio Croda, Rosana Richtmann [do Instituto de Infectologia Emílio Ribas], Renato Kfouri [da Sociedade Brasileira de Imunizações], e Alexandre Naime Barbosa [da Universidade Estadual Paulista, a Unesp] e Marco Sáfadi [da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo] também são bastante francos. Formamos um bom time, inclusive botando para escanteio colegas que defendiam posições com que nunca concordamos, por não terem evidências consistentes. A mesma dureza eu tive quando fiz parte do grupo aqui do Rio de Janeiro nomeado pelo ex-governador Wilson Witzel em 2020 para tratar da covid-19. Faziam parte também desse grupo Paulo Buss, que já foi presidente da Fiocruz, José Temporão, que já foi ministro, Roberto Medronho e Amilcar Tanuri, ambos da UFRJ. Trabalhávamos à beça e elaboramos o documento que no fim de abril entregamos ao secretário da Saúde na ocasião, sem saber que ele estava metido naquelas coisas horríveis [de corrupção]. Ao contrário do governador de São Paulo, que se reunia todo dia com o grupo de médicos que o assessorava, no Rio nunca fomos recebidos pelo governador. Mesmo assim, elaboramos um documento e dissemos: “A situação está muito pior, vamos fazer um lockdown firme na cidade”. Por fim, decidimos dissolver o grupo e dois dias depois veio o escândalo do secretário da Saúde, Edmar Santos. Continuei só no grupo Com Ciência, coordenado por Jerson Lima, presidente da Faperj [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro]. Foi uma experiência dura. Por isso eu falo em cicatrizes.
Por que deixou o Rio quando era adolescente?
Meus antepassados e avós são do norte da Itália. Imigrantes que foram para o Espírito Santo. Meus pais nasceram no vale do Canaã e em Colatina, onde se casaram e eu nasci, mas viemos para o Rio de Janeiro quando eu tinha 2 anos. Estudei em colégio de freiras, o Divina Providência, e depois no Colégio Bennett, de alta classe média, era muito boa aluna e engajada também, numa época de movimento estudantil intenso. Meus pais ficaram com medo de eu ficar no Rio de Janeiro, quando voltaram para Vitória. Eu tinha 17 anos e fui para lá muito contrariada, fora a família não conhecia pessoas, meus amigos estavam no Rio. Aliás, amigos que tenho até hoje, cultivados como a melhor seiva da vida. Era o ano do vestibular. Passei muito tempo da minha adolescência dizendo que queria ser diplomata, mas mudei de ideia no ano do vestibular. Era época do governo militar, muito difícil. Sempre tive jeito para cuidar de gente, cuidar dos meus avós era um prazer para mim. Comuniquei aos meus pais que iria fazer vestibular para medicina no meio do ano e eles ficaram perplexos, porque eu vinha da área de humanas. Fiz uma troca: dava aula de inglês, história, geografia e português e meus colegas me ensinavam física e química. A faculdade foi uma experiência extraordinária, nunca tive hesitação, sempre gostei de tudo, mas isso não me fez perder o gosto que eu sempre tive pela literatura. Eu levava A montanha mágica na bolsa para o plantão e nos intervalos lia o Hans Castorp subindo a montanha mágica.
Que professores mais influenciaram suas escolhas?
Na faculdade, tive um ótimo chefe do serviço de pneumologia, que depois foi meu amigo até morrer, José Luís Loureiro Martins [1943-1998]. Também aprendi muito com Jayme dos Santos Neves [1909-1998], um sábio. Na residência, já no Rio, tive orientadores inesquecíveis, Haroldo Meyer, Germano Gerhardt e Newton Bethlen [1916-1998]. Quem também me inspirou, embora não tenha conhecido pessoalmente, foi Rita Levi-Montalcini [neurologista italiana, 1909-2012, Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1986], pela sua capacidade de conciliar a vida de mulher e pesquisadora em uma época muito mais difícil do que a nossa.
Como ficaram suas leituras durante a pandemia?
Li bem menos coisas do que gostaria, pela necessidade de estar em dia com tantos artigos médicos, mas os livros continuaram chegando, de amigos, de acadêmicos. Adoro ler um bom romance, adoro, mas acabei lendo muito sobre a história das epidemias, que na verdade é a história da própria humanidade, sobretudo no Ocidente. Sempre li muito. Agora mesmo estou lendo Leçons d’un siècle de vie, de Edgar Morin, e Um dia chegarei a Sagres, de Nélida Piñon, e já separei A grande gripe, de John Barry, e D’un siècle à l’autre, de Regis Debray, para ler em seguida. Em minha casa tem livro em tudo quanto é lugar, até no lavabo. Se uma visita demora lá, já sei que pegou algo para ler.
Margareth Dalcomo em perfil
Idade 67 anos
Especialidade Pneumologia
Instituição Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ)
Formação Graduação em medicina pela Escola de Medicina da Santa Casa de Misericórdia de Vitória (1978), doutorado em pneumologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp, 1999)
Produção 77 artigos, 2 livros técnicos (coautoria)
* Este artigo foi republicado do site Revista Pesquisa Fapesp sob uma licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o artigo original aqui.