27/07/2022 - 7:44
Naquele Brasil do início do século 19, havia um impedimento para que Maria Quitéria de Jesus (1792-1853), uma mulher que sabia atirar muito bem, cavalgar, caçar e pescar, engrossasse as fileiras do Exército. Antes mesmo da avaliação das habilidades dela, o veto vinha por uma questão de gênero: Maria Quitéria poderia até ser uma excelente guerreira, mas era mulher.
Quando a guerra de independência tomava corpo na Bahia, em setembro de 1822, emissários da junta do governo provisório ali instalados passaram a percorrer fazendas em busca de voluntários para as batalhas de expulsão dos portugueses. Chegaram à propriedade da família de Maria Quitéria, cujo pai era produtor de algodão e gado, no atual município de Feira de Santana, interior do estado. Era uma fazenda de porte médio, que contava com 27 trabalhadores escravizados.
“O pai não tinha filhos homens maiores de idade, e o emissário partiu de mãos abanando. Maria Quitéria ouviu a conversa e ficou com vontade de participar da luta armada que se formava. A partir disso, ela empreende toda uma estratégia de fuga, disfarçada de homem”, conta o historiador da arte e curador Nathan Gomes, cujo mestrado no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP) foi sobre o papel dessa combatente na formação do imaginário nacional.
Maria Quitéria contou com a cumplicidade e a ajuda da irmã, Josefa, para conseguir se alistar. Ela se vestiu como homem, utilizando o fardamento do cunhado e assumindo a identidade dele, José Medeiros. Josefa ainda cortou os cabelos da irmã. E foi assim que ela se apresentou, como soldado Medeiros, ao batalhão instalado na região.
“Ocupou um espaço então dos homens”
A maior parte das informações biográficas a respeito de Maria Quitéria chegou aos tempos atuais graças ao registro feito pela pintora e historiadora inglesa Maria Graham (1785-1842), que viveu alguns anos no Brasil, encontrou-se com a combatente e relatou sua história em seu diário de viagens publicado em Londres em 1824.
“Maria Quitéria acabou se tornando um dos nomes femininos mais reconhecidos da história brasileira”, pontua a historiadora Giovanna Trevelin, que pesquisa história e gênero em grupo da Universidade Estadual de Feira de Santana.
“Foi a primeira mulher militar conhecida a se alistar para lutar numa guerra. Ocupou um espaço público que era então destinado a homens, um espaço onde mulheres não podiam estar.”
Como soldado Medeiros, ela não só foi aceita, como logo chamou a atenção de superiores pelas habilidades no tiro.
Cai o disfarce
“Quando o pai descobriu que ela estava lá, foi atrás. O comandante do Exército então, mesmo informado sobre o fato de ela ser mulher, se recusou a tirá-la, argumentando que ela era uma atiradora muito melhor do que os demais recrutas”, narra o pesquisador e escritor Paulo Rezzutti, autor de, entre outros livros, Independência: a história não contada: A construção do Brasil: 1500-1825.
“Suas habilidades foram reconhecidas como preciosas para aquele momento, e nem mesmo a contestação do pai fez com que ela desistisse e retornasse para casa”, afirma a historiadora Noely Zuleica Oliveira Raphanelli, doutora pela USP. “O comando [do batalhão] percebeu o quanto ela iria ajudar na trajetória de lutas, ela bateu o pé e não voltou com o pai.”
Se o pai não conseguiu resgatar a filha, o episódio serviu para revelar seu gênero. E não só Maria Quitéria foi acolhida pelos seus superiores como conquistou o direito de seguir lutando devidamente identificada como mulher, sem precisar mais se vestir e se comportar como homem.
De acordo com o pesquisador Gomes, o ofício do batalhão solicitando tecido para que “ela costurasse uma saia para sua farda” é datado de março de 1823. “Não se sabe exatamente quando ela se alistou, mas muito provavelmente entre setembro de outubro de 1822. Provavelmente, então, foram esses cinco ou seis meses o período em que ela esteve sob o disfarce masculino”, contextualiza ele.
Condecorada por Dom Pedro 1º
Depois de consolidada a Independência, Maria Quitéria teve sua trajetória valorizada institucionalmente. “Seu nome se tornou mais popular do que de outras mulheres que lutaram, primeiramente por ter sido reconhecida pelo próprio Dom Pedro 1º”, ressalta Trevelin.
Ela já havia sido alçada ao posto de cadete do Exército quando, em 20 de agosto de 1823, foi recebida no Rio de Janeiro pelo imperador, que a condecorou com o grau de cavaleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro.
“Querendo conceder a Dona Maria Quitéria de Jesus o distintivo que assinala os serviços militares que com denodo raro, entre as mais do seu sexo, prestara à causa da Independência deste Império, na porfiosa restauração da capital da Bahia, hei de permitir-lhe o uso da insígnia de cavaleiro na Ordem Imperial do Cruzeiro”, declarou Dom Pedro.
Em 1920, nos preparativos para a comemoração do primeiro centenário da Independência, uma tela com seu retrato foi encomendada pelo Museu do Ipiranga ao artista italiano Domenico Failutti (1872-1923). A obra passou a compor o acervo da instituição.
No centenário de sua morte, em 1953, Salvador ganhou uma estátua em sua memória. E em 1996, tornou-se patrona do quadro complementar de oficiais do Exército Brasileiro. Teve seu nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria em 2018.
Embora não haja um consenso, por falta de documentação, sobre sua data de nascimento, o mais aceito é que tenha sido em 27 de julho de 1792, há exatos 230 anos.