Operação com mais de 100 mortos reacende debate sobre modelo bélico de combate à violência no Brasil e abre impasse entre União e estados. Especialistas apontam que combate à violência exige abordagem sistêmica.Com um saldo oficial de 119 mortos até a tarde desta quarta-feira (29/10), a megaoperação contra o Comando Vermelho no Complexo do Alemão é a mais letal da história do Rio de Janeiro. Apesar de seu tamanho inédito, ela repete uma antiga fórmula de esgotar o combate ao crime organizado no enfrentamento a seu domínio territorial. A ação ocorre 15 anos após policiais entrarem na mesma comunidade sob a promessa de livrá-la do tráfico – objetivo que a investida da terça-feira (28/10) indica que não foi alcançado.

A ação expôs visões políticas distintas sobre a gestão da segurança pública no Brasil. O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, avaliou que a incursão foi um “sucesso” e afirmou que o estado está “sozinho na luta” contra o crime, já que, segundo ele, teve pedidos de apoio logístico, como o fornecimento de blindados, negados pelo governo federal em operações anteriores. À TV Globo, seu secretário de Segurança, Victor Santos, defendeu que o Rio vive um “estado de guerra”.

O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, rebateu. Ele argumenta que a pasta acatou pedidos feitos por Castro, mas que a responsabilidade pela segurança pública é “exclusiva dos governadores”, conforme prevê a Constituição Federal. “Combate à criminalidade, seja ela comum, seja ela organizada, se faz com planejamento, com inteligência, com coordenação das forças”, disse.

Após a operação, o Congresso se mobilizou para aprovar projetos voltados à segurança pública. O presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, diz que a Casa pauta “semanalmente” propostas deste tipo, a maioria voltada para o endurecimento de penas. Na última semana, por exemplo, aumentou a pena para homicídios de policiais e para crimes vinculados ao domínio territorial das cidades, prática conhecida como “novo cangaço”. A abordagem dos atores políticos, porém, mostra um impasse na gestão da segurança pública no Brasil.

Abordagem sistêmica

Para especialistas ouvidos pela DW, combater o crime organizado no Brasil e a violência no Rio de Janeiro exige uma abordagem sistêmica, que mire as cadeias produtivas como um todo. Isso porque as facções se fortalecem pela diversificação de sua atuação em outros mercados.

“O domínio territorial é gravíssimo, mas é uma parte da questão do crime organizado. A gente precisa ampliar a visão, entender que existem muitas cadeias produtivas que passam pelo domínio territorial, mas não se esgotam nele”, afirma Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.

“O Comando Vermelho tem conexão com mercados de produção de ouro, garimpo, uso da terra, pesca. Outros mercados criminais que têm conexão com mercado legal. No caso do PCC, o mercado de combustível. Não precisa de tanque na rua para fazer isso”, pontua.

Para isso, o combate à violência precisa partir da ação integrada de outros órgãos, como a Receita Federal, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), além da própria Polícia Federal, argumenta.

Para Ricardo, parte deste esforço exige o enfrentamento ao poder bélico das facções, colocando o tráfico de armas no centro do combate ao crime organizado. Levantamento do Sou da Paz mostra que as facções no Brasil recorrem cada vez mais às armas de fogo de estilo militar, como fuzis, submetralhadoras e metralhadoras.

Para Janaina Maldonado, socióloga e pesquisadora do Instituto de Estudos Latino Americanos do Instituto para Estudos Globais e Regionais (Giga), isso leva à necessidade de operações centradas em integração e inteligência.

“Precisamos de operações que desestabilizem as redes de enriquecimento, favorecimento, e proteção vinculados aos grupos criminais”, argumenta. “Uma política alternativa de segurança pública precisa considerar a regulamentação desses mercados como forma de debilitar o crescimento e fortalecimento de grupos criminais.”

Governo aposta em PEC da Segurança e PL “antifacção”

Os projetos aprovados na Câmara até o momento, porém, têm caráter menos estrutural do que a principal aposta da União para combater a violência de forma integrada no Brasil, a PEC da Segurança, que voltou a ser defendida por membros do governo como saída para a falta de articulação entre atores políticos.

O Palácio do Planalto apresentou a PEC em abril. O objetivo é ampliar as atribuições da União sobre o combate à violência. Ela constitucionaliza o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), exige a execução de fundos de financiamento, amplia a autonomia das corregedorias e fortalece a integração de inteligência, diante da atuação de facções que ultrapassam fronteiras estaduais. Também dá mais poder à Polícia Rodoviária Federal e aos guardas municipais.

Na prática, a União passaria a coordenar um sistema nacional para padronizar a atuação das forças de segurança no território nacional, inclusive de policiais militares, civis e penais, segundo aponta a Agência Senado.

“A PEC tenta dar forma e normatividade ao conjunto de forças que hoje já atuam no país de maneira desintegrada e, por vezes, fora dos protocolos, como vimos no Rio de Janeiro ontem”, avalia Janaina Maldonado.

A proposta, porém, está parada no Congresso e enfrenta resistência de governos estaduais, entre eles o do próprio Rio de Janeiro, que veem na PEC uma tentativa de reduzir a autonomia dos estados.

Apesar de apresentar um desenho jurídico para a cooperação entre os entes federativos, a PEC não se traduz em uma política nacional de fato. À época de sua apresentação, Lewandowski assumiu que o projeto não seria a solução, mas “apenas uma tentativa de organizar o jogo”.

“O que a PEC não nos mostra, como demonstram pesquisas diversas é um conjunto de políticas públicas que rompa com a lógica bélica de combate ao crime organizado presente no Brasil há décadas, e, que como vimos ontem, fracassa a cada nova atualização. Não só fracassa, como aumenta sua letalidade e horror”, argumenta Maldonado.

Na última semana, Lewandowski também apresentou um projeto de lei “antifacção”, que estabelece um novo tipo penal, o de “organização criminosa qualificada”, endurecendo as penas para o crime quando há domínio territorial. Também amplia o poder do Ministério Público para abrir investigações e permite à Polícia criar empresas fictícias para investigações. O projeto ainda cria um banco nacional de dados de organizações criminosas.

Após a operação no Rio de Janeiro, um gabinete de crise foi montado no governo federal, que passou a considerar o PL prioritário.

O endurecimento de penas, porém, não leva a uma mudança radical da segurança pública no país, argumenta Maldonado. “As facções no Brasil nasceram, se fortaleceram e expandiram dentro e através do sistema prisional. Aumentar penas e criar novos tipos penais não rompe com essa lógica e está fadado à repetição do mesmo enquadramento dado ao problema da expansão das facções no país.”

GLOs e “narcoterrorismo” na mira da oposição

A aposta da oposição no Congresso é a de avançar com um PL que equipara as organizações criminosas a grupos terroristas. A proposta altera a Lei Antiterrorismo e aumentaria a pena de comandantes e líderes de facções.

Declarações de Cláudio Castro após a operação vão na esteira dessa perspectiva. Ele classificou a resposta dos criminosos, que usaram drones e bombas no confronto com policiais, como “narcoterrorismo”. O governador também apontou que a ação policial que avançou sobre o Complexo do Alemão em 2010, durante o segundo governo Lula, recebeu apoio de blindados da Marinha, algo que tem sido rechaçado pela atual gestão federal.

O argumento da União é que a ação exigiria uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que autoriza o emprego por decreto de tropas das Forças Armadas em situações excepcionais.

“A GLO é um dispositivo constitucional previsto, mas está condicionado à incapacidade dos estados de resolverem seus próprios problemas”, afirma Daniel Hirata, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador visitante da Sciences Po. “Do ponto de vista do governo federal, isso oferece muito mais riscos do que possibilidades de obter algum tipo de vantagem. O governo sabe que a polícia do Rio de Janeiro é extremamente violenta”, afirma.

Em 2010, a operação no Complexo do Alemão ficou marcada por imagens aéreas captadas pela TV Globo que mostravam dezenas de pessoas fugindo por uma estrada de terra. A investida fazia parte de um esforço de implementação das Unidades de Polícia Pacificadora em comunidades no Rio de Janeiro. Apesar do avanço inicial do projeto, problemas estruturais dificultaram sua continuidade.

Como a DW mostrou, desde os anos 1990, todos os presidentes fizeram uso das Forças Armadas para conter violência no Rio de Janeiro, com resultados decepcionantes.

Intervenções pontuais mais amplas, a nível federal, também não apresentam resultados duradouros, diz Hirata. “As operações policiais são instrumentos, não são políticas públicas. Você atua de forma pontual, e não contínua. É diferente de ter planejamentos e metas”, afirma Hirata.

Este também foi um dos achados do Tribunal de Contas da União (TCU), que avaliou a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, em vigor entre fevereiro e dezembro de 2018.

Segundo a Corte, a “adoção desse instrumento tem baixa capacidade de geração de resultados de longo prazo”. Isso porque o interventor, em regra, deve ficar pelo menor período possível, diz o TCU, até cessar a causa que levou à decretação da medida interventiva. Na prática, a redução da criminalidade se registrou apenas durante a implementação da medida.

“A intervenção federal de 2018 foi um fracasso retumbante. O Exército não tem condições de coordenar as ações policiais, ele não exerce influência dessa maneira. Pela natureza da instituição, ela não é preparada para atuar no papel do policiamento”, defende Hirata.

Para os especialistas, a ação contra a violência no Brasil exige uma abordagem multifatorial, que não se restringe a ações pontuais sobre o território ou endurecimento de penas .

“Massacres como o de ontem não deveriam estar no horizonte de plausibilidade de um Estado democrático de Direito. Combater o crime organizado demanda investimento em inteligência, esclarecimento de homicídios, regulação de mercados ilegais, além, de uma atuação fundamental no rompimento das redes de infiltração e de conluio entre crime e política”, conclui Maldonado.