31/10/2025 - 17:14
Especialistas entrevistados pela DW afirmam que policiais não seguiram ritos padrões básicos e que histórico de impunidade estimula operações de alta letalidade no Rio de Janeiro.Operação policial mais letal da história recente do Brasil, a entrada das forças de segurança nos Complexo do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, ocorreu às margens da legalidade, afirmam especialistas entrevistados pela DW. Segundo eles, os procedimentos adotados pelos policiais no curso da ação violaram tanto determinações do Supremo Tribunal Federal (STF) quanto desrespeitaram procedimentos policiais padrão, além de ferir consensos internacionais.
De acordo com a legislação brasileira, a polícia não pode matar sem que isso ocorra numa situação de legítima defesa. A legítima defesa é prevista no artigo 25 do Código Penal, mas o código também estabelece a chamada “exclusão de ilicitude”, que permite aos agentes de segurança usar da força letal, sem que isso configure crime, no exercício profissional para proteger a si e a terceiros.
Especialistas entrevistados pela DW, entretanto, alertam que a desproporção no número e perfil dos mortos cria dúvidas sobre o uso desse argumento como justificativa para o ocorrido. “Fica difícil sustentar que se trata de legítima defesa quando a gente teve uma operação em que quatro policiais e 117 civis foram mortos. A desproporção constitui um grave indício de que tenham ocorrido execuções sumárias ou que parte dessas mortes tenha se dado em situações acidentais”, afirma Carolina Grillo, coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade Federal Fluminense (UFF).
“Quando a gente vê corpos abandonados, não vê preservação do local do crime e ausência total de cuidado na cadeia de custódia, ou seja, na preservação das provas, não dá para falar de legalidade”, afirma Mariana Chies-Santos, professora de direito do Insper e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência, o NEV, da USP.
Violação da ADPF das Favelas
A ação ocorrida no Rio de Janeiro também vai contra regras estabelecidas pelo Supremo neste ano. Em abril, o STF validou um conjunto de medidas sobre como devem ser as operações policiais em favelas no Rio, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como ADPF das Favelas.
O Tribunal determinou como a polícia deve proceder quando essas ações resultarem em mortes, tanto de civis como de agentes da segurança. Muitas das determinações não foram cumpridas na Operação Contenção.
Entre as determinações da ADPF, estão a de preservação do local da ocorrência seguida de imediato aviso ao comandante do batalhão e à corregedoria da PM ou ao delegado de sobreaviso, o acionamento imediato do Ministério Público, bem como a realização obrigatória de autópsia nos corpos. Também estão previstos o uso proporcional da força e o uso de câmeras em fardas e viaturas. Por outro lado, a decisão do STF não prevê comunicação prévia à realização da operação.
A ADPF foi apresentada em 2019 pelo partido PSB, com o aval de entidades de direitos humanos, justamente para questionar a constitucionalidade e o uso sistemático da força, resultando em violações de direitos humanos, nas ações policiais no Rio.
Para entidades de direitos humanos, o documento não foi suficiente, já que o STF não reconheceu a inconstitucionalidade da situação e permitiu à polícia usar o argumento de excepcionalidade a qualquer momento. Medidas como a proibição de disparos em helicópteros com plataforma de tiro e a proteção do perímetro escolar e de unidades básicas de saúde foram vetadas na ADPF.
Pelos procedimentos administrativos, uma operação policial, caso ela seja pedida por um Batalhão de Polícia Militar, deveria preceder de uma ordem de operações expedida pelo batalhão, mas isso muitas vezes não ocorre. O Ministério Público do Rio de Janeiro também precisa ser avisado, e depois de realizada a ação, é preciso enviar um relatório do ocorrido.
Segundo Grillo, o abandono da maioria dos corpos e a retirada do local do fato configuram uma infração administrativa. “No entanto, essa é a prática. A polícia sempre vai argumentar que ela não possui condições de segurança o suficiente para preservar o local até a chegada das equipes de perícia”, diz.
Operação fere parâmetros internacionais e proporcionalidade, diz ONU
Os procedimentos adotados também ferem parâmetros internacionais, dos quais o Brasil é signatário, que regem o uso da força pelo Estado, conforme explica nota da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo.
Instrumentos como o Código de Conduta para Oficiais Responsáveis pela Aplicação da Lei (1979) e os Princípios Básicos sobre o Uso da Força e de Armas de Fogo (1990) determinam que a força letal só pode ser utilizada como último recurso.
Morris Tidball-Binz, Relator Especial da ONU sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, destaca que estes códigos funcionam como guias para funcionamento das polícias locais, mas não são de execução obrigatória.
No entanto, o Brasil é parte de outros instrumentos que são vinculantes, ou seja, têm força constitucional, entre eles o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, cujo artigo de número 6 proíbe a privação arbitrária da vida.
“[A operação no Rio] é inaceitável do ponto de vista de padrões internacionais, mas também, pelo fato de que a função da polícia é proteger a vida e os direitos dos cidadãos. A dimensão do que aconteceu é incompatível com uma função policial de qualquer tipo”, diz Tidball-Binz à DW. “Eu não estou nem sugerindo que a polícia não deve atuar contra criminosos. Mas não pode-se combater o crime com o crime; e o crime máximo é a privação arbitrária da vida.”
Para o relator, a operação não foi realizada sob os princípios que devem marcar a ação policial em todo o mundo, como a legalidade, a necessidade, a proporcionalidade e precaução.
“Isso é uma tragédia que não jamais devia ter ocorrido, que não teria ocorrido com a polícia atuando de acordo com a lei, uma polícia competente, profissional, que pode e deve controlar o crime organizado”, critica. Tidball-Binz também indica que a relação entre mortos, 121, e feridos, dez, “é característica de um padrão de execuções extrajudiciais de pessoas que não podem se defender”.
“É assim de simples. Isso não é uma especulação minha, isso é de acordo com a literatura disponível científica em base a estudos em diversos contextos em todo mundo”, pontua.
O padrão de atuação no Rio e a falta de punições
Apesar de ter sido a que mais deixou mortos, a operação policial que ocorreu no Complexo da Penha não foi isolada. Apenas durante a gestão do atual governador do estado, Cláudio Castro, há outros dois casos de assassinatos em sequência durante operações: um no Jacarezinho, em 2021, que resultou em 28 mortes, e outro também na Penha, em 2022, provocando 23 mortes.
O episódio mais recente expõe um padrão, explica Carolina Grillo. Operações policiais de incursão armada em territórios que se encontram sob domínio de grupos armados são o principal método adotado pelas autoridades públicas do Rio para combater o crime organizado.
Entre janeiro de 2007 e outubro deste ano, foram 707 ações policiais com morte na região metropolitana do Rio, com 2,9 mil civis e 31 policiais mortos, segundo levantamento do grupo de pesquisa Geni.
“Existe uma ênfase muito grande, uma mobilização de recursos humanos e materiais das polícias para realizar essas incursões, que se utilizam de veículos blindados, o chamado caveirão, de helicópteros, muitas vezes, como nesse caso, milhares de policiais”, explica Grillo.
As áreas sob domínio, consideradas sensíveis ou de risco, são principalmente favelas e bairros periféricos com atuação de facções do tráfico de drogas ou de milícias. As facções são o principal alvo das operações, ainda que, na visão da pesquisadora, tenha sido a própria negligência do Estado nesses territórios que levou esses grupos a se expandirem.
“Não é algo observado em todas as grandes cidades brasileiras, é algo que se deu em relação às políticas de segurança pública do Rio que, em vez de patrulhar rotineiramente esses territórios, deixava eles abandonados e fazia apenas essas incursões muito violentas em situações pontuais”, lembra a pesquisadora do Geni.
Outro fator que explicaria a predominância no método adotado para lidar com o crime organizado no Rio é a própria estrutura da polícia, que historicamente sempre teve dentro dos seus batalhões grupos de extermínio e execução sumária.
Ações como a que ocorreu no Rio de Janeiro são passíveis de investigação administrativa e criminal da Corregedoria, da Polícia Civil e do Ministério Público. Apesar do alto nível de letalidade, entretanto, operações como esta não costumam resultar em sanções. Até hoje casos emblemáticos, como a Chacina do Jacarezinho, não levaram a nenhuma punição.
Para Chies-Santos, há uma falha na ação do Ministério Público, o órgão que tem dever constitucional de fazer o controle externo da atividade policial. “É um absurdo o Ministério Público estar do lado, compactuando com esse tipo de ação da polícia, que é uma ação claramente de execução de pessoas”, diz a pesquisadora da USP.
O Estado brasileiro já foi condenado internacionalmente, em 2017, por falhas e pela demora na investigação e punição de execuções extrajudiciais em incursões policiais feitas no Rio de Janeiro na década de 1990.
Segundo o relator especial da ONU, Morris Tidball-Binz, o Brasil pode ser responsabilizado se for provado que violou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. O país está sujeito, por exemplo, a decisões do Comitê dos Direitos Humanos da ONU e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
A relatoria sobre Execuções Extrajudiciais da ONU também deve preparar uma comunicação oficial ao governo brasileiro sobre o caso, que é confidencial. Para Tidball-Binz, porém, a expectativa das Nações Unidas é que os próprios tribunais do Brasil sigam os padrões internacionais e julguem os responsáveis.
“Com a polícia assim, a segurança da população está em risco contínuo e ao menos que os responsáveis sejam levados à Justiça e penalizados, a segurança do Rio de Janeiro e os direitos humanos que o Brasil deve respeitar e cumprir vão seguir sendo violados”, conclui.
Resposta política no cerne da metodologia
Ignorando a letalidade da operação, o governador Cláudio Castro classificou, logo após o ocorrido, a ação policial na Penha como um “sucesso”. Mais do que uma intenção de combater o crime organizado, entretanto, as falas do governador expõem, para Carolina Grillo, que ações policiais cada vez mais centradas em extermínio atendem a um clamor popular por respostas na segurança pública.
“Em vez de serem elaboradas políticas eficientes ou propostas inteligentes, o investimento feito pelo governo do estado tem sido em operações espetaculosas, que produzem a sensação na população de que algo está sendo feito”, comenta Grillo.
Esse aumento da letalidade ocorre em paralelo à escalada da extrema direita e dos discursos de ódio, no Brasil, analisa Grillo, o que chancelaria esse modus operandi das operações policiais. “Há, digamos, ganhos eleitorais associados a essas práticas de extermínio”, alerta Grillo.
Para Chies-Santos, também é preciso olhar para os marcadores de desigualdade e raça no Brasil para compreender por que a polícia entra numa favela e a operação resulta em 121 pessoas mortas. “No Brasil, tem pessoas que são matáveis para a população em geral, para a sociedade, que é super punitivista. Tem esse olhar de que é mais fácil matar que resolver o problema.”
Extermínio em favelas são ineficientes, dizem pesquisadoras
A operação Contenção no Rio de Janeiro mirando o Comando Vermelho ocorreu dois meses depois da Operação Carbono Oculto, que utilizou uma metodologia diferente para atacar o crime organizado e não resultou em nenhuma morte. Em vez de trocas de tiros em favelas, a Carbono Oculto teve como alvo o sistema financeiro do crime organizado, fazendo buscas e apreensões em prédios da Avenida Faria Lima, o coração financeiro de São Paulo.
A discrepância entre as duas ações, na visão dos especialistas entrevistados pela DW, expõe ainda mais a ineficiência de operações policiais de alta letalidade. “O crime organizado não para na favela. Aliás, a parte mais desorganizada está ali. Para falar de desarticulação do crime organizado no Brasil, precisamos olhar para combustível, bebidas, não só álcool, falsificação de cigarro… A gente precisa falar de desmatamento, de prospecção de ouro”, alerta Chies-Santos.
Um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostra, por exemplo, que o crime organizado no país movimentou aproximadamente R$ 146,8 bilhões anualmente a partir de 2022, levando em consideração somente ouro, combustíveis, tabaco e bebidas.
“Quando a gente vai falar em droga, a gente tem que falar de cocaína. É a exportação disso, então eles [o crime organizado] estão atuando nas fronteiras, eles não estão atuando na favela para fazer as exportações de drogas”, pontua a pesquisadora da USP.
Para Grillo, é preciso também compreender que o crime organizado se articula em rede, então são os elos estratégicos – como a rede financeira que permite o reinvestimento de dinheiro na compra de armamentos – que precisam ser alvos das ações policiais, pois são mais difíceis de serem substituídos.
Além da Carbono Oculto, há outras operações recentes mirando essas estruturas, como a ação da Polícia Federal, também em outubro, contra uma fábrica de produção clandestina de fuzis que abastecia o Comando Vermelho. Na operação, chamada “Forja”, a Justiça Federal determinou o sequestro de R$ 40 milhões em bens e valores, e sete pessoas foram presas. “É preciso atacar as bases econômicas dessas organizações, as suas relações com o poder público e com os mecanismos de lavagem de dinheiro”, conclui Grillo.