01/08/2010 - 0:00
O verde rege o destino da pequena e charmosa cidade colonial, encravada no sopé da Serra Dourada. Ontem, Vila Boa, antiga capital do Estado. Hoje, Cidade de Goiás. Foi seduzido pelo verde das esmeraldas que, no passado, o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, desbravou o sertão goiano, carregando com ele o filho de 10 anos de idade. O menino, conhecido como o Anhanguera Moço, voltou já idoso, deixando São Paulo à frente de uma bandeira de 500 homens. Só 40 chegaram vivos ao vale cortado pelo Rio Vermelho, onde está a cidade, entre eles o Anhanguera Moço.
Das esmeraldas já não há nem sombra. Atualmente, o verde que, a cada junho, atrai milhares de visitantes de todos os continentes é o da mãe natureza. Há 12 anos a Cidade de Goiás é cenário do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental, o Fica, um dos mais importantes eventos mundiais no gênero. E foi o festival que devolveu o brilho à chamada Goiás Velho desde a mudança da capital para Goiânia, em 1937. Com o Fica, holofotes do País e do mundo se voltaram para a bela senhora, redescobrindo a beleza poética de sua arquitetura colonial. Tanto que, desde 2001, é tombada pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade.
O Fica está incluído no restrito círculo do Fórum Internacional de Festival de Cinemas Ambientais. Seu prestígio é capaz de mobilizar realizadores tanto de países com tradição cinematográfica, como França, Itália e Estados Unidos, quanto os de estreantes, como Botsuana, Mongólia e Usbequistão. O volume de filmes inscritos segue em escala crescente, surpreendendo. Este ano, 552 produções (204 nacionais e 348 estrangeiras), de 67 países, concorreram na primeira etapa de seleção. Curtas, médias, longas e séries televisivas, compondo um autêntico painel dos problemas ambientais que estão levando nosso planeta a ultrapassar os limites suportáveis de aquecimento global.
Em tão extenso mostruário, difícil foi selecionar as 28 obras classificadas para a mostra competitiva do 12º Fica, realizada entre 8 e 13 de junho. Em festival temático, conta não somente a qualidade da obra, mas também a pertinência do conteúdo e, nesse caso, os jurados se deparam com outra dificuldade: definir com exatidão o que é cinema ambiental.
Ao contrário de fechar a questão, o psicanalista e crítico de cinema Roberto Mello, presidente do júri de seleção do 12º Fica, desiste de encontrar um conceito exato. “Não chegaremos a um consenso e a graça da coisa está aí: cinema, portanto arte e não ciência exata, ainda que rigorosa.” Integrante do júri de premiação, Inácio Araújo, considerado um dos grandes teóricos de cinema do País, também só faz ampliar a discussão. “Depois de ver aproximadamente 21 horas de filmes ambientais no 12º Fica, a dúvida para mim, que não sou militante, é inevitável: o que é um filme ambiental?”, escreveu em seu blog.
De qualquer modo, foi preciso optar entre temas tão variados quanto a matança de golfinhos no Japão e a vida de um singular catador de lixo de São Paulo. Algumas, produções de diretores premiados, como Jangadeiros, do inglês Adrian Cowell, Quebradeiras, de Evaldo Morcarzel, ou A Enseada (The Cove), de Louie Pshoyos, vencedor do Oscar 2009 na categoria documentário. Outras, obras de novos cineastas, como Heavy Metal, do chinês Hu Xiao Jin Shu, ou Caçando Capivara, dos índios Tikmu Derli, Marilton, Fernando, João Duro, Janaína, Joanina, Juninha e Zé Ca. “O Fica tem densidade e conteúdo, mas não é um festival de glamour”, afirma Lisandro Nogueira, consultor de cinema do evento. “Sua proposta é ultrapassar as fronteiras da unilateralidade.”
O FICA É UM PAINEL DOS MAIS IMPORTANTES PROBLEMAS AMBIENTAIS QUE ENFRENTAMOS NA ATUALIDADE
E assim, mais uma vez surpreendendo, o 12º Fica deu o prêmio de maior destaque ao médiametragem chinês Heavy Metal, denunciando a indústria de reciclagem que explora milhares de trabalhadores em situação de miséria. Diariamente, entre gemidos e suspiros, eles são contaminados pelo lixo eletrônico do país ou importado dos EUA ou da Austrália. O prêmio de melhor longa-metragem ficou com Efeito Reciclagem, do diretor canadense radicado em São Paulo Sean Walsh. O filme narra a história de seu Claudinês, personagem cativante, pai de 30 ou mais filhos com quatro mulheres diferentes, que faz a vida catando lixo pelas ruas da metrópole.
Os índios Tikmu levaram o prêmio de melhor média-metragem. De forma poética, mostram como a destruição do meio ambiente interfere nas tradições indígenas. O divertido Recife Frio, dirigido pelo pernambucano Kleber Mendonça Filho, venceu na categoria de melhor curta. Na ficção, as anunciadas mudanças climáticas transformam o ensolarado Recife em uma terra gelada. Com Trazendo Vida ao Espaço, sobre o projeto Biosfera 2, pela terceira vez, o dinamarquês Jakob Gottshau mereceu o prêmio de melhor série televisiva. Já os jornalistas que cobriram o evento, concederam o Troféu Imprensa ao comovente Um Negócio Florescente, do diretor holandês Ton van Zantvoort. O longa-metragem mostra que, por trás das belas plantações de flores na região africana do Quênia, trabalhadores são escravizados e o meio ambiente sacrificado, um negócio adubado por lágrimas.
Acima, na ordem, Bhig Vilas Boas, diretor do belíssimo O Último Kuarup; Marilton Maxakali, do premiado Caçando Capivara; vários shows ocupam o palco do Cine São Joaquim durante o festival.
Futuros ativistas
O Fica não se limita a ser um palco abalizado de denúncias ecológicas e avança em outras direções. “Nossa proposta é romper a sensação de impotência que, muitas vezes, sentimos diante das agressões ao meio ambiente testemunhadas nos filmes”, esclarece Linda Monteiro, coordenadora do festival e presidente da Agência Goiana de Cultura, órgão do governo de Goiás responsável pelo evento. O Fica Animado, mostra paralela de filmes infantis com temática ambiental, introduzido na programação em 2009, confirma o caráter educativo, conscientizador e proativo do festival goiano. “Estamos formando uma geração mais consciente e preparada para lidar com as questões ambientais, disposta a buscar soluções para salvar a natureza da destruição e criar um mundo melhor”, observa Linda, que este ano conquistou importantes aliados para sua causa.
Empolgados com a proposta, dois diretores estrangeiros se ofereceram para ministrar oficinas para o público infantil: Élène Dallaire, que nesse 12º Fica recebeu menção honrosa pela animação Os Anjos dos Dejetos, e o espanhol Daniel la Calle, diretor de Uma Mudança no Mar, premiado na edição anterior como o melhor longa. Dallaire, que há 20 anos produz animações, ensinou técnicas básicas às crianças, apresentando maquetes e distribuindo massinha para que fizessem personagens, criando suas próprias produções. Com uma experiência simples, usando giz, um copo de água e vinagre, La Calle mostrou a seus pequenos espectadores como acontece a acidificação oceânica, tema de Uma Mudança no Mar.
O FICA ESTÁ CONSOLIDADO E CREDENCIADO NACIONAL E INTERNACIONALMENTE COMO IMPORTANTE ARENA PARA O DEBATE SÉRIO E PROPOSITIVO DOS GRANDES TEMAS AMBIENTAIS
Ton van Zantvoort, diretor do comovente Um Negócio Florescente; o jovem chinês Zhifeng Fu, representante de Hu Xiao Jin Shu, diretor de Heavy Metal, prêmio de Melhor Filme; cena do Encontro de Violeiros;
Ela marcou mais um tento: Linda Monteiro, coordenadora do festival e presidente da Agência Goiana de Cultura. Abaixo, panorama do centro histórico da Cidade de Goiás.
Foco no Código Florestal
Para os adultos, o Fica oferece oportunidade de formação com um diversificado programa de cursos de cinema e de meio ambiente. O Fórum Ambiental – outra novidade introduzida em 2009 – garante espaço para o debate de problemas e soluções relativos à biodiversidade, catástrofes ambientais, aquecimento global e mudanças climáticas. Laerte Ferreira Jr., consultor de meio ambiente do festival, é um entusiasta da iniciativa. “O Fica está consolidado e credenciado nacional e internacionalmente como importante arena para o debate sério e propositivo dos grandes temas ambientais que afligem a humanidade neste momento.”
Tendo como tema “Mudanças Ambientais Globais: Tendências, Cenários e Impactos”, o Fórum Ambiental do 12º Fica levantou temas polêmicos, como o novo Código Florestal Brasileiro, à época em discussão no Congresso Nacional. Os especialistas ali reunidos afirmaram unanimemente: a flexibilização proposta pode gerar sérios danos aos biomas brasileiros. Os pontos que mais acendem a polêmica entre ambientalistas e ruralistas são a anistia para os desmatamentos realizados até 2008, a autonomia dos Estados para limitar o tamanho das Áreas de Preservação Permanente e de Reservas Legais, o fim das reservas em pequenas propriedades e a regularização ambiental de terras já devastadas. “O Brasil tem um ativo ambiental enorme. Explorá-lo de maneira incorreta é jogar fora esse grande patrimônio econômico. Agredir o meio ambiente pode custar caro ao País”, advertiu a presidente do Comitê Científico do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, Suzana Kahn.
A questão ambiental não deve ser vista e tratada como um ideal romântico, pois é uma questão fundamentalmente econômica, concordaram os participantes do fórum. Atuando como moderador dos debates, Marcel Bursztyn, pesquisador do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB), alertou para a vulnerabilidade dos biomas brasileiros com a flexibilização das leis ambientais. “A proposta que está no Congresso claramente coloca em risco nossas florestas.” Já Mercedes Bustamante, do Departamento de Ecologia da UnB, também presente ao fórum, explicou: “Sai mais caro para o País reparar os recursos naturais do que conservá-los.” Mercedes acredita em um futuro verde, a partir da conscientização. Coisa que o Fica vem procurando fazer, aproximando do grande público temas considerados complexos, normalmente restritos às comunidades acadêmicas.
À esquerda , uma “namoradeira” com a cara de Cora Coralina, permanece na janela da casa que pertenceu à grande poeta. Indecisão na hora de escolher o prato: a gastronomia no Fica corre solta.
