John, Paul, George e Ringo se apresentaram juntos pela primeira vez numa cidadezinha da Inglaterra e iniciaram o processo que mudou a forma como o mundo consome música.

Hulme Hall é um complexo de construções vitorianas situado em Wirral, no noroeste da Inglaterra. Seu salão central tem capacidade para 450 pessoas, espaço mais do que suficiente para acomodar com conforto os convidados nas atuais festas de casamento dos endinheirados de Liverpool, a 16 quilômetros dali. Na noite de 22 de agosto de 1962, no entanto, ele ficou pequeno. Realizou-se ali, há 50 anos, o 17º baile anual da Sociedade Horticultural da região. Com terninhos e saias rodadas, 500 meninos e meninas se apertaram para ver uma banda que já era um sucesso local. De quebra, testemunharam a estreia de um novo baterista. Britanicamente às 22h, o estreante contou até quatro, as guitarras soltaram os primeiros acordes e a música nunca mais foi a mesma. O baterista era Ringo Starr e a banda, The Beatles, tocava em público com a formação clássica pela primeira vez.

Mais do que um músico de talento, Ringo era um jovem de sorte. Aos 6 anos, teve uma apendicite cujas complicações o levaram a um coma. Aos 13, uma inflamação crônica no pulmão o obrigou a passar dois anos em um sanatório. Atrasado na escola, ele foi incentivado pelo padrasto a tentar a sorte com a música. O ritmo da moda era o skiffle, uma mistura de country e blues tranquila para quem estivesse empunhando as baquetas. Com algumas lições e treinos, Ringo assumiu a bateria da banda Rory Storm and the Hurricanes. Em 13 de março de 1959, esse grupo dividiu a noite com os Quarrymen, que reunia John Lennon, Paul McCartney e George Harrison. Nascia ali a amizade que desembocaria no convite feito três anos depois.

Não foi sem luta que o menino que derrotara duas doenças graves assumiria o banco no fundo do palco dos Beatles. Na noite seguinte ao show no Hulme Hall, a banda se apresentou no mitológico Cavern Club de Liverpool. Do lado de fora, vários fãs da banda protestavam contra a saída de Pete Best, o baterista que, semanas antes, integrava a banda nos testes na gravadora EMI. Gritavam frases como “Pete forever, Ringo never!” O concerto acabou em pancadaria e o saldo foi um hematoma no olho direito de Geor­ge, vítima de um cruzado desferido por um defensor do baterista defenestrado.
A reação violenta não fez os rapazes mudarem de ideia. Em primeiro lugar, porque Ringo, nascido em 7 de julho de 1940, era um ano mais velho que John, tinha dois a mais que Paul e três a mais que George, o que fazia dele o mais “rodado” entre os jovens músicos. Em segundo, porque o baterista era o mais cool entre eles e já desfilava por Liverpool exibindo desavergonhadamente topetes que eram muito mais comuns do outro lado do Atlântico. Por fim, e mais importante, o produtor do grupo não gostou da (falta de) musicalidade de Pete Best e decidiu por sua saída. O produtor era George Martin. A troca de baterista foi a primeira de uma série de decisões que fizeram dele um dos responsáveis pelo mundo se perguntar por que os Beatles continuam tão populares meio século depois daquela noite de agosto de 1962.

Ecletismo

Para encontrar a resposta, é preciso recuar no tempo. No fim dos anos 1950 e ainda sem Ringo, os demais integrantes do que viria a ser os Beatles desenvolveram seus dotes musicais animando bailes de debutantes, festas em igrejas, encontros dançantes em clubes e noites quentes nos inferninhos de Hamburgo, na Alemanha. Como jovens no mundo todo, eles queriam tocar o rock’n’roll de Elvis Presley e Chuck Berry, mas a variedade dos estabelecimentos onde se apresentavam os forçou a ampliar as cores de sua paleta sonora. Assim, clássicos saltitantes compostos por Berry, como “Roll Over Beethoven” e “Little Queenie”, eram executados com a mesma intensidade que o bolero “Besame Mucho” ou a balada “A Taste of Honey”. Era o embrião da versatilidade que tornou os quadrantes do rock’n’roll pequenos demais para os rapazes. Mas essa amplitude estilística não foi suficiente para que as portas das gravadoras se escancarassem para a banda.

Nesse ponto entra em cena um empresário que, antes de todos, vislumbrou o diamante bruto que tinha nas mãos. Dono de uma loja de discos em Liverpool, Brian Epstein aceitou cuidar do destino da banda no fim de 1961. Graças à intervenção dele, os Beatles pararam de comer e fumar no palco, trocaram os jeans pelos ternos, substituíram os topetes pelas franjas e passaram a zelar para que pontas de cordas não ficassem expostas nas guitarras. Foi de Epstein também a ideia de todos se curvarem diante do público após o final de cada música. Apesar de bem embalado e com conteúdo, o produto encontrou resistências. Pudera, a concorrência era brutal. Que gravadora iria contratar mais um bando de cabeludos quando o mercado já estava dominado por nomes como Gerry and the Pacemakers e The Shadows?
Uma das portas nas quais o empresário bateu foi a da Decca Records.­ Pacientemente, Dick Howe, diretor da gravadora, ouviu o grupo interpretar 15 canções. Ao final da audição, vaticinou: “Grupos de guitarra estão saindo de moda, senhor Epstein.” E entrou para a história como o homem que deixou de vender 1 bilhão de discos e teve como consolo o prestígio de ter erguido a “casa da música clássica”.
Mais antenados, os diretores da EMI resolveram dar uma chance à banda, mas sob a tutela de George Martin, que era um produtor da segunda divisão interna. “Não davam para ele os artistas sérios, só osso. Éramos osso duro”, disse Paul. Já com Ringo a bordo, gravaram o primeiro compacto em setembro de 1962. De um lado foi prensada a canção “Love Me Do”. Do outro, “P.S. I Love You”. Foi um Big Bang musical. Em maio do ano seguinte, “Love Me Do” se tornou a primeira das 27 músicas que os Beatles emplacaram no primeiro lugar das paradas inglesa e americana.

Quem levou esse compacto para casa acompanhou o estágio inicial de características estruturais do quarteto de Liverpool. Está lá, ainda em estado bruto, o encontro do discurso de John com as melodias de Paul, a criatividade musical de George e a batida simples, mas eficaz, de Ringo. Tudo encapsulado pelo talento de Martin. Uma audição comparativa entre as versões ao vivo e as de estúdio mostram a mão delicada e firme do produtor. Enquanto no palco os Beatles competiam em estridência com suas fãs, sob o comando de Martin nas salas de gravação eles soam coesos, límpidos e, em uma palavra, harmoniosos. Principalmente nos vocais em coro, momentos em que a experiência musical se aproxima da religiosa.

Quantidade com qualidade

A soma dessa união de talentos com uma disposição de workaholic e aquela versatilidade dos primeiros anos formou o alicerce para que os Beatles construíssem uma obra inicialmente linear, mas que se tornou sinuosa, aberta a experimentalismos e jamais monótona. Sob a batuta de Martin, eles foram os primeiros a misturar pop com clássicos e a levar para o estúdio instrumentos como a flauta de “You’ve Got to Hide Your Love Away” e a cítara de “Norwegian Wood”. Poucas vezes na história qualidade e quantidade andaram tanto de mãos dadas. Nos 33 primeiros meses de existência, os Beatles gravaram seis álbuns: Please Please Me (1963), With the Beatles (1963), A Hard Day’s Night (1964), Beatles for Sale (1964), Help! (1965) e Rubber Soul (1965). Entre um LP e outro, muitos shows no Hemisfério Norte.
Eles só se concederam as primeiras férias em 1966. Passaram três meses preparando o próximo grande passo. O resultado foi Revolver, gravado em abril de 1966. Agora, além do discurso, das melodias, da criatividade e do ritmo, os Beatles entregavam um pacote que incluía orquestrações, ruídos, climas e traços orientais, cortesia do experimentalismo de George Harrison. Para muitos, essa é a obra-prima. Para outros, é Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band, disco lançado no ano seguinte. Numa coisa todos concordam: foi o apogeu da banda.
Com a sofisticação musical, a situação ficou um pouco mais complicada para o baterista. Mas Ringo é um homem de sorte. Em vez de demiti-lo, Martin chamava bateristas de aluguel. Tudo bem, os Beatles já não tocavam mais ao vivo mesmo.

Apesar de clássicos posteriores como o Álbum Branco (oficialmente, The Beatles), Abbey Road e Let It Be, os Beatles definhavam como um agrupamento de jovens dispostos a mudar o mundo por meio da música. O fim começou a se desenhar no dia 27 de agosto de 1967. Vítima de uma insônia implacável, Brian Epstein errou na dose de tarjas-pretas que embalavam algumas de suas noites e dormiu para sempre. Nessa época, os Beatles também atravessavam seu próprio inferno com o uso excessivo de drogas. Disso resultaram visitas a gurus e experiências controvertidas como o álbum Magical Mistery Tour (1967), trilha sonora de um filme que o quarteto adoraria apagar da biografia. E veio o amor de John pela artista plástica japonesa Yoko Ono. A paixão era tamanha que, quando ela ficou doente, o beatle mandou instalar uma cama no estúdio. Era mais do que os outros integrantes da banda poderiam aturar.
Passaram a gravar separadamente no estúdio. Mesmo assim, surpreendentemente, ainda soavam como grupo. E, o futuro viria provar, é assim que eles funcionavam melhor. Com o fim dos Beatles, sobraram o discurso cada vez mais engajado de John, as melodias envolventes de Paul, a guitarra substantiva de George. E Ringo segue como um homem com a mesma sorte daquele garoto que, há meio século, foi colocado no banco da bateria da maior banda da história.