País aprovou leis que fortalecem atuação dos militares na segurança pública e enfraquecem controles civis. Especialistas falam em “retrocesso” para democracia e direitos humanos.O Congresso do México aprovou, no intervalo de uma semana, um pacote de leis que amplia a atuação dos militares na segurança pública do país, sob críticas de especialistas e organizações que defendem vítimas de abuso policial.

A reforma foi aprovada na virada do mês, em um contexto de pressão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que classificou seis cartéis mexicanos como grupos terroristas.

O pacote na prática militariza a Guarda Nacional, a polícia federal mexicana, amplia seu poder para acessar dados de inteligência e de comunicações privadas e abre mais caminho para que militares ocupem cargos civis na gestão da segurança pública.

Com a iniciativa, a presidente Claudia Sheinbaum se distancia de seu mentor e antecessor, Andrés Manuel López Obrador, que no seu governo adotou uma estratégia de menor confrontação, apelidada pelo próprio como “abraços, não balas” – que não trouxe a prometida pacificação de um país que enfrenta há duas décadas taxas alarmantes de violência.

Ela defendeu as mudanças e afirmou que, graças ao fortalecimento da Guarda Nacional, houve uma redução de 25% no número de homicídios dolosos em seis meses.

No entanto, a atuação dos militares na segurança pública do México é controversa e enfrenta acusações de execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados e uso desproporcional da força.

Fim da polícia civil nacional

As implicações das novas leis vão muito além da arquitetura de segurança interna do México, e levantam preocupações sobre transparência, prestação de contas e proteção dos direitos humanos, e ameaçam corroer a separação entre o poder civil e o militar, segundo especialistas ouvidos pela DW.

“O México ficou sem uma polícia civil nacional, atribuindo em nível federal toda a função de segurança pública a quatro corporações militares”, resume Lisa Sánchez, diretora-geral da organização México Unido Contra a Delinquência (MUCD). “Apenas um artigo diz que a Guarda Nacional deve responder à Presidência, mas isso não foi confirmado em outras leis e pode dar origem a confusões.”

O Alto Comissariado para os Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas também soou o alarme. “Além de consolidar sua natureza militar indevida, a nova Lei da Guarda Nacional concederia a seus membros amplos poderes de investigação e inteligência, sem os controles e mecanismos de prestação de contas adequados”, declarou o escritório no México via X.

Mais poder a uma força com “resultados péssimos”

Ernesto López Portillo, coordenador do Programa de Segurança Cidadã da Universidade Iberoamericana, avalia que a reforma legal aprofunda o caminho de militarização da segurança pública no país, que ele considera equivocado.

“As atribuições da autoridade militar aumentam, os mecanismos de prestação de contas enfraquecem, os ministérios públicos não são reformados e tudo isso em um contexto em que o Poder Judiciário se enfraquece”, resume.

“De 2006 até hoje, o envio de militares para tarefas policiais se multiplicou mais de cinco vezes. Ao mesmo tempo, passamos de 9 para 30 homicídios a cada 100 mil habitantes”, afirma.

Além disso, as reformas têm um desenho confuso, sem metas claras nem controles e avaliações independentes, aponta. Em sua opinião, isso é grave porque “vamos dar mais poder a uma Guarda Nacional que tem péssimos resultados”.

Como exemplo, ele menciona um estudo da Universidade Iberoamericana que revela que cada membro da Guarda Nacional prende 0,071 pessoas por ano, em comparação com 1,6 prisão por cada membro da Polícia Preventiva, extinta em 2019 após a criação da Guarda Nacional.

“E isso piora se falarmos da qualidade da formação das pessoas”, ressalta. “Temos muitos testemunhos de que os militares pedem aos civis para preencher os relatórios porque não se sentem capazes ou não querem se comprometer juridicamente.”

Tramitação apressada e sem consulta

Ambos os especialistas lamentam que a reforma tenha sido votada às pressas, sem consultar especialistas. A organização México Unido Contra a Delinquência, por exemplo, teve acesso às quase mil páginas dos projetos de lei algumas semanas antes do início das sessões no Congresso.

“O diagnóstico pareceu ser irrelevante e o escrutínio social é visto como um obstáculo”, afirma López Portillo. “Propusemos um órgão supervisor de especialistas ao Secretariado de Segurança Pública, enviamos uma proposta ao Morena (o partido de Sheinbaum), mas nunca nos responderam.”

Outro ponto obscuro são as consequências que as reformas podem ter sobre a perda de privacidade dos cidadãos.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos manifestou sua preocupação com “os poderes que seriam concedidos ao Exército para processar informações de inteligência, bem como outras disposições que, sem as salvaguardas adequadas, colocariam em risco o direito à privacidade”.

O pano de fundo é um histórico de espionagem por parte das Forças Armadas. O último escândalo eclodiu em 2019, com o vazamento de relatórios do sistema Pegasus, nome do software israelense com o qual o Ministério da Defesa Nacional e o Centro Militar de Inteligência vigiaram mais de 400 ativistas, jornalistas e defensores dos direitos humanos e do meio ambiente. Até o momento, ninguém foi condenado pelo uso ilegal do software espião.